Especial Surfe - O Príncipe das Mares
Com a paciência dos antigos monges zen, Kelly Slater chegou ao topo do olimpo prateado do surfe mundial. Esperando a onda perfeita na França, ele falou sobre aposentadoria, música e o sonho de respirar embaixo d’água
Por Matteo Maresi
Publicado em 16/06/2011, às 10h41Hossegor, frança, 25 de setembro de 2010. Começa a antepenúltima etapa do Campeonato Mundial de Surfe, o QuikSilver Pro France, em que os atletas terão 11 dias para desafiar as ondas do Oceano Atlântico.
Kelly Slater está em segundo lugar, permanecendo no topo da classificação e a dois passos de seu décimo título mundial.
Saio do banheiro com as mãos ainda molhadas e ele aparece. Aproveito a ocasião para me apresentar a ele, que devolve a saudação e enxuga as mãos em seu jeans. Slater está com o capuz do agasalho sobre o rosto, e é impossível desassociá-lo da aura de seus nove títulos mundiais de surfe. Agora que o encontro ao vivo, quero pedir-lhe desculpas por ter gozado de sua calvície prematura, quando ele namorava Pamela Anderson, Gisele Bündchen e tantas, tantas outras.
Kelly Slater tem um olhar centrado, magnânimo. Olhar em seus olhos é ver grandes filmes, mesmo se você é daqueles que só assistiram a filmes conversando com amigos sobre garotas. No meu filme, ele está no fundo do mar, metade homem e metade "sereio", como no longa-metragem Zoolander, quando Derek (personagem de Bem Stiller), em um comercial, sussurra ao pai: "A água é a essência da hidratação - glu-glu-glu-glu - e a hidratação é a essência da beleza". Isso porque Slater também é um ícone metrossexual, estampado em revistas como garoto-propaganda de um protetor solar. E é ao metamorfo Kelly Slater - não aquele entediantemente performático - que faço a primeira pergunta: "Você já se sentiu como um peixe?"
"Um peixe?", ele rebate, antes de responder. "Mais ou menos. Eu tenho um sonho recorrente: que eu consigo respirar embaixo d'água, mesmo com o corpo permanecendo humano. É uma sensação muito reconfortante."
Estamos ambos sentados em cima de dois halteres para peitoral, na academia do quartel-general da Quiksilver, em Hossegor, onde a partir do dia seguinte será disputada a sétima e antepenúltima etapa do Campeonato Mundial de Surfe. Slater foi o mais jovem (com 20 anos), e também o mais velho (com 36), atleta da história a vencer um título mundial de surfe e, com o décimo título quase em mãos, ele é capaz de dar aulas de puro estilo. Por exemplo, se lhe pergunto sobre o estresse pré-competição, ele afirma: "Aqui, sou o ancião do grupo, e perder para qualquer um mais jovem significa que as coisas estão mudando. Simbologia da mudança da nova-guarda". Mas por que ele não optou por se aposentar em grande estilo? "Penso nisso todos os dias, mas não acontecerá antes de um ano ou dois." Passamos ao registro evocativo, buscando entender se ele, o surfista perfeito, já conseguiu a onda perfeita. "É somente uma ideia, há tantas ondas perfeitas ao redor do mundo: grandes, pequenas, curtas, longas, depende de como sopra o vento, de como a onda muda enquanto você a domina." Slater pensa enquanto surfa? "Não, fico totalmente concentrado. Tenho um mapa mental da onda, penso como e onde encerrarei certas manobras."
Encontro-me com Eddie Vedder no Natal, montado sobre uma prancha em um beach break havaiano, enquanto assistia a aulas de surfe com Slater na companhia de Ben Harper e Jack Johnson: uma cena que se repete sempre, confirma Slater, dizendo que "quando os compromissos de trabalho de todos permitem, passamos o dia todo na água". Ele me conta também de seus trabalhos ambientais contra as ilhas flutuantes de plástico e sua paixão pela música. O homem-peixe toca violão e canta (quando venceu seu oitavo título, subiu ao palco do Pearl Jam cantando "Indifference" em dueto com Vedder, que lhe presenteou com um violão no qual está escrito "Sl8r"), mas não fala de gravar um álbum, por enquanto. Prefere apenas fazer performances para os íntimos.
Uma hora se passou, e um surfista profissional italiano que acabo de conhecer no balcão do bar me entretém com histórias de noites passadas nas camas das estagiárias da Quiksilver. Histórias de bêbado, madrugadas de amor e camisetas rasgadas barbaramente durante os amassos. Enquanto isso, na outra parte do salão, os jornalistas especializados estão hipnotizados por um extenuante workshop sobre ventos, dunas, solos oceânicos e as condições metereológicas: uma competição de surfe pode durar até 11 dias, o tempo necessário para os organizadores garantirem ao menos três dias de boas ondas. E é exatamente ao final dessa janela de tempo que uma noite recebo a notícia, por SMS, quando voltava para casa do trabalho, de que Slater ficou em segundo lugar. Assim, começo a imaginar nossas vidas paralelas nos últimos 11 dias: eu levando as crianças à escola, indo ao escritório e verificando e-mails. Ele, que a essa hora já está no mar, esperando a sua onda.