A luz pálida do fim de tarde de domingo esparrama-se para dentro da sala de estar escura. O cômodo ganha cores enquanto Marcelo Jeneci retira os lençóis coloridos que servem como cortinas para bloquear a claridade que entra pelas janelas enormes. Ainda assim, talvez pelo ar frio de agosto, uma melancolia reverbera no espaçoso cômodo e pouco mobiliado. Jeneci parece ter sido tragado por esse sentimento por alguns segundos. Olha fixo para o jardim convalescente, pouco cuidado nos últimos tempos. “Fico um tempo fora de casa... E aí as coisas mudam”, ele diz, pensativo. É a primeira vez que o músico de 31 anos volta ao lar desde o início das gravações do segundo álbum, De Graça. Há dois meses, ele fugiu do cinza paulistano para se enfurnar em estúdios cariocas. “Que vergonha receber vocês nesta casa vazia. Fiquei feliz em chegar, estar de volta. Mas, confesso, estou triste com o jardim.”
Jeneci passou pela transição dos 30 anos de forma sofrida, mas conseguiu se reerguer após o fim de um relacionamento de quase uma década. Perdeu um amor, mas ganhou vários outros: diz que a força para superar veio da companhia dos amigos. O reencontro consigo mesmo é o combustível para a mais nova criação dele, cujo lançamento está previsto para o fim deste mês.
O recomeço experimentado na vida pessoal agora esbarra no andamento da carreira de Jeneci. Antes desacostumado com os holofotes, o músico passou por uma terapia de choque, em 2008, quando a música “Amado”, parceria dele com a cantora Vanessa da Mata, invadiu as rádios após ser tocada à exaustão na novela A Favorita, da Globo. Jeneci se viu arremessado do fundo do palco para o lugar de maior destaque, e a nova realidade foi absorvida aos poucos por alguém que há pouco se descobria como compositor. Quando veio o disco de estreia, Feito pra Acabar, lançado em 2010, o músico não estava totalmente preparado para o papel principal: no encarte, por exemplo, havia uma única fotografia dele, e ele se posicionava de lado, sem olhar diretamente para a câmera.
A capa de De Graça evidencia a nova postura. O rosto de Jeneci ocupará o encarte todo, encarando o público de frente. O semblante já é diferente do daquele artista novato, cujo disco de estreia evidenciava uma efemeridade delicada, “feita pra acabar”. Os últimos três anos, ele não esconde, foram vividos de forma intensa: sofreu das dores do coração e enfrentou o terror de ter uma arma de fogo apontada para a cabeça – um episódio que não passou de um mal-entendido, ocorrido quando se dirigia a uma festa e quase entrou, por engano, na casa de um capitão da Rota. O Marcelo Jeneci de hoje não é mais caseiro e recluso; ele quer o palco e enfrentar a multidão.
Para seguir o cronograma de finalização de De Graça, Jeneci corre contra o tempo. O álbum é produzido por Alexandre Kassin, o mesmo que o acompanhou no primeiro, e coproduzido por Adriano Cintra, atual Madrid e ex-CSS. Naquele dia, ele veste camiseta preta e calça marrom, com a barba volumosa e o cabelo desarrumado. Está mais magro. “Perdi 13 quilos”, conta. “Mudei a minha alimentação, como carne uma vez por semana, parei com o pão e farinha branca. Tem a ver com esse momento de cuidar do jardim, entende? Naturalmente, com o sofrimento, fui emagrecendo. Agora, vou cuidar de mim. Entrei nesta fase mais leve.”
Jeneci interrompeu o trabalho no estúdio e voltou a São Paulo apenas para conceder a entrevista. Veio depois de uma noite sem dormir, de sábado para domingo, por causa de um show no Circo Voador, uma das despedidas da atual turnê. Retornaria ao Rio no dia seguinte, após a sessão de fotos, para encarar uma jornada dupla. “Vamos ter de dar uma pausa no projeto para gravarmos o disco do Erasmo Carlos”, conta, citando que ele e Kassin estão no time que acompanhará o Tremendão no próximo trabalho.
O quadro pendurado na parede, com uma dedicatória assinada pelo mesmo Erasmo, aliás, é um dos únicos sinais de vida da casa vazia. De resto, o ambiente é decorado com um sofá em formato de “U”, e uma mesinha de canto, com alguns DVDs dos Beatles e discos de Milton Nascimento e Pink Floyd empilhados. Não há televisor, e sim um projetor e uma tela enorme que cobre metade de uma parede – herança da paixão do pai por cinema. Jeneci mora em uma rua quase deserta do Alto da Lapa desde 2006, quando se casou com a pernambucana Verônica Pessoa, aos 23 anos, da forma como gostava de imaginar na infância, durante as férias em Sairé (PE), terra dos avós paternos. “Meu inconsciente trabalhou para que isso acontecesse”, brinca. O casal cresceu junto profissionalmente, ele como músico, ela como produtora cultural – foi a então esposa, aliás, que inscreveu o projeto de Feito pra Acabar no edital da Natura Cultural, que também financia De Graça. Com o fim do casamento, há quase dois anos, foram-se os móveis.
“Não tem nada para comer. Vocês aceitam um chá?”, ele pergunta, ao se virar para a cozinha. Enquanto coloca a água para ferver, ele explica que a ideia de levar as gravações para o Rio de Janeiro surgiu da vontade de se colocar em um ambiente diferente do que estava acostumado. “Passamos as primeiras semanas de julho gravando no [estúdio] Toca do Bandido. Na outra metade do mês, ficamos no estúdio do Kassin. Estamos finalizando a voz e os overdubs.” Antes de se sentar, busca algo na mochila. “É uma manta mexicana”, diz, se enrolando no tecido colorido, sem sapatos e de pernas cruzadas, segurando a xícara com as duas mãos. A manta foi presente de uma amiga e era usada para cobrir um piano de cauda comprado com o dinheiro da primeira turnê internacional, quando tinha 18 anos, acompanhando Chico César em 50 shows pela Europa, Estados Unidos e Canadá. Autodidata, Jeneci aprendeu a tocar sanfona por incentivo de Toninho Ferragutti, um dos clientes do pai dele, Manoel Jeneci, famoso entre sanfoneiros por ter criado um sistema de captação de som para o instrumento. “Toda vez que um músico ia à minha casa, meu pai me chamava e pedia para que eu tocasse teclado”, relembra Jeneci, sorrindo. Ferragutti, na época, integrava a banda de Chico César, mas estava de saída. “Ele me falou que o Chico precisava de alguém que tocasse teclado, piano e sanfona”, ele conta. “Eu disse que poderia aprender a tocar a sanfona. Aí, ele me indicou.”
“Ele era um garoto bem tímido”, relembra Chico César, com quem Jeneci conviveu continuamente por cinco anos. “Na entrevista que fizemos, quem respondia era o pai dele.” Jeneci é descrito como um virtuoso na época. “Ele tirou todas as harmonias, até mesmo os improvisos. Eu falava: ‘Não precisa repetir os improvisos, faz os seus’”, conta César. Naqueles três meses, Jeneci já mostrava uma grande capacidade de adaptação, exibida até hoje, como integrante da banda de artistas consagrados como Arnaldo Antunes e Erasmo Carlos.
Jeneci não sabia, mas ainda vivia preso dentro de uma bolha de realidade limitada à região onde morava, em Guaianases, na Cohab Juscelino, e ao cotidiano que envolvia ir à escola, praticar teclado e frequentar a igreja evangélica duas vezes por semana, ao lado da mãe. “Sempre fui o mais próximo, fui o parceirão dela”, diz ele, o segundo dos três filhos do casal. “Comecei a tocar na igreja, em casamentos. Tínhamos um grupo de jovens e ensaiávamos. Acompanhei a minha mãe até os 17 anos, vivendo uma forte ligação com a igreja evangélica.” Até então, as aspirações dele se limitavam a conseguir um emprego como pianista de praça de alimentação de shopping.
“Comecei a viajar pelo mundo, questionar todos os conceitos que haviam sido construídos, às vezes inseridos em mim sem muita escolha”, ele diz, dividindo a vida em Velho e Novo Testamento – ainda uma herança da antiga religiosidade. Quando voltou da turnê com Chico César, Jeneci foi recepcionado pelos amigos da igreja. “Minha mãe olhou para mim e não me reconheceu mais. O olhar mudou, segundo ela. ‘Perdi meu filho.’ Ela diz isso.” César confirma: “A mãe dele dizia que devolvemos a pessoa errada”.
Com o início da carreira de artista, Marcelo Jeneci perdeu a velha visão que tinha do mundo, mas encarou uma vida nova, em que até a figura de Deus é encarada de forma diferente. “Comecei a me desprender disso e me prender ao que acontece antes da religião”, ele teoriza. “É uma certeza de que tudo está sendo movido por algo maior, invisível, que tem contato direto com o que a gente faz. São laços invisíveis que sustentam o mundo.”
“Obviamente, existe um Deus”, ele continua, “um Deus no sentido dessa imensidão imensurável, que está regendo, dialogando com as coisas. No fundo, acabei me desligando da religião, fui conhecer outras, para matar a curiosidade. Vivo com esta convicção: estamos debaixo deste mesmo céu, cada um acreditando em uma tradução diferente, mas com consciência de que existe algo maior que a gente.”
Jeneci deixou Guaianases dois anos após a primeira viagem e mudou-se para a zona oeste de São Paulo, sem nunca esquecer as referências e os laços deixados para trás. Até por conta disso, é um dos poucos músicos que conseguem transitar com facilidade pela filosofia da cena underground e a linguagem popular das rádios e novelas. Ele faz graça com a ideia de uma linha imaginária que tradicionalmente divide os artistas em dois: aqueles que querem ser populares e aqueles que repudiam a possibilidade. “O mais importante é ser relevante enquanto compositor, e ver a música na boca do povo. São esses dois lados que tento unir. Tem uma linha que une as duas coisas, não que separa”, diz. Para ele, o sucesso não é algo desprezível, “como alguns dizem ser”. “É o que eu quero. Estou fazendo a música que eu quero, com a minha honestidade. É disso que me orgulho.”
Antes desconfortável e impensável, a posição de protagonista hoje é bem-vinda e aceita por Marcelo Jeneci. “Mesmo que fosse aquele pestinha na infância, como eu, você se desnuda quando canta na frente de todo mundo”, acredita. “É como aquele pesadelo de ir para a escola e perceber que está pelado ou só de cueca, sabe? Nos primeiros shows, tinha vergonha de ficar com o olho aberto, fugia da plateia. Eu me sentia em um lugar um pouco estranho.” Antes, o músico se comportava como se usasse uma capa de invisibilidade – escondido nas sombras, a face permanecia anônima, mesmo atuando em parcerias com Zélia Duncan, Arnaldo Antunes e Vanessa da Mata. Se o rosto dele ainda não é tão conhecido, as canções que escreveu se popularizaram: hoje, algumas estão entre as mais tocadas em cerimônias matrimoniais pelo país. Em uma delas, “Pra Sonhar”, há um verso particularmente autobiográfico: “Quem vai sorrir, quem vai chorar”. É uma reprodução fiel do que aconteceu no passado com Jeneci: no casamento, à beira-mar, a noiva sorria, enquanto o noivo não conseguia conter as lágrimas de felicidade.
Dona da voz feminina que ilumina quase todas as faixas do primeiro disco, a cantora Laura Lavieri viu de perto a transformação de Jeneci como artista. “Ele sempre teve, dentro dele, a necessidade de ocupar esse lugar, de se expressar”, diz a parceira musical desde 2008. A própria presença de Laura no palco comprova a necessidade de Jeneci de dividir a atenção e não tê-la toda para si. “Nunca assumi muito isso”, confessa ele, sobre a ideia de ser protagonista. “Acho que algumas músicas são mais conhecidas do que o meu rosto.”
Antes de entrar na atual fase de “querer os amigos bem próximos”, Jeneci preferiu o isolamento. Durante todo o segundo semestre de 2012, “ele entrou numas de reclusão”, diz Laura. “Ele nunca foi um cara que quis ficar sozinho.” Foi em janeiro deste ano, em uma nova temporada de férias em Sairé, que surgiu o clique para o novo disco, “trabalhando na terra, ao lado dos primos, com uma camiseta amarrada na cabeça e matando a sede com água de coco colhido na hora”, ele conta.
Se existe ou não uma fórmula para a felicidade, Marcelo Jeneci só tem a certeza de que ela não se encontra apenas na música, seja ela indie ou de apelo popular. A alegria pode estar nas pequenezas da vida, em um jardim pronto para florescer de novo, nos recomeços. Sentado na sala vazia, ele pensa no futuro e se imagina com o novo álbum em mãos. “Fico ouvindo as músicas e imaginando o dia, daqui a um mês, em que vou chegar à casa dos meus pais, sentarei com eles e vamos ouvir o disco”, promete, com a voz teimando em não sair. “Já vivi isso uma vez e sei que vai ser assim de novo. Chorei muito. O objetivo é esse. Saí de casa quando tinha 19 anos para fazer isso. O momento está chegando de novo e fico emocionado só de pensar.”