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Filhos da Floresta

Vítimas da expansão agropecuária, atacados por madeireiros e grileiros, índios ameaçados de extinção pedem socorro contra a destruição de seu território

Por André Pessoa Publicado em 11/05/2011, às 15h25

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<b>CAÇADOR E CAÇA</b> Índio da tribo awá-guajá utiliza arco e flecha para caçar - um hábito já quase extinto entre a maioria das tribos indígenas brasileiras. - fotos ANDRÉ PESSOA
<b>CAÇADOR E CAÇA</b> Índio da tribo awá-guajá utiliza arco e flecha para caçar - um hábito já quase extinto entre a maioria das tribos indígenas brasileiras. - fotos ANDRÉ PESSOA

Nem mesmo a força máxima do velho e barulhento arcondicionado era capaz de amenizar o calor de fim de tarde na imensa, violenta e caótica Imperatriz, no sul do Maranhão. Cercada por pistoleiros, grileiros e fazendeiros mal-encarados, ela é considerada a "capital" da terra sem lei na Amazônia Legal. Trancado em um quarto de hotel, aguardo por um telefonema do escritório da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Santa Inês, autorizando minha visita a uma das tribos indígenas mais desconhecidas e ameaçadas do Brasil.

Depois de cumprir todos os pré-requisitos exigidos pela direção do órgão em Brasília, entre eles uma série de exames médicos e documentos pessoais, espero apenas pelo aval do escritório da Funai no interior do Maranhão para documentar a vida dos awá-guajás, um dos últimos povos nômades das Américas. Homens que ainda vivem como há muitos milhares de anos: não conhecem a agricultura, caçam com arco e flecha, amamentam e criam os filhotes de animais como se fossem seus filhos e preferem andar nus, circulando pela mata sem moradia fixa em aldeias.

Considerados um dos povos primitivos mais interessantes do planeta, os awá-guajás se autodenominam awá - "homem, pessoa ou gente", no tupi-guarani que pronunciam. Inacreditavelmente, apesar de habitarem esse concorrido trecho do Nordeste que faz fronteira com a Amazônia, eles só foram contatados há pouco mais de 30 anos, quando a Funai, com o objetivo de proteger os índios dos saqueadores de seu território e, consequentemente, da fome, decidiu aldeá-los na década de 80 e lhes transmitir o aprendizado da agricultura. Porém, ainda hoje existem evidências da presença de alguns grupos que permanecem isolados.

As origens dos awá-guajás são obscuras. As informações mais antigas sobre a etnia foram reunidas e publicadas pelo etnólogo Curt Nimuendaju, em 1949. Acredita-se que eles sejam originários do Baixo Tocantins e limites com o Pará, parte de uma família maior dessas regiões. À medida que foram ocorrendo invasões da floresta, houve a dispersão desses povos. Alguns autores afirmam que a separação dos grupos teria acontecido durante a revolta da Cabanagem, em 1832, quando um grupo conseguiu migrar no sentido leste em direção ao rio Gurupi. Outros registros sobre esse povo estão no livro Os Índios e o Brasil, de Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai, que chegou a conviver uma parte de sua vida junto aos awá-guajás.

Segundo os antropólogos, já no primeiro contato com essa etnia, em 1973, de um total de 56 índios contatados, 26 morreram de gripe, pneumonia ou malária. Na segunda tentativa, em 1980, dos 26 contatados, seis morreram e quatro foram transferidos para a atual aldeia. Um ano depois, mais quatro índios também não resistiram. De acordo com um documento publicado por uma série de entidades, o impacto do contato deixou marcas irreparáveis na população awá-guajás.

Dirigido pelo cineasta Andrea Tonacci, o filme Serras da Desordem evidencia esse fato. É o relato de uma das histórias mais emocionantes sobre o massacre sofrido pelos guajás nas últimas décadas, estrelada por Cara pirú, um índio nômade que escapa de um ataque-surpresa de fazendeiros. Durante quase dez anos, ele viveu sozinho pelas florestas, até ser capturado. Levado para Brasília pelo sertanista Sydney Possuelo, ele se tornou manchete e gerou polêmica entre antropólogos e linguistas em relação à sua origem. Para ajudar no esclarecimento da questão, um jovem índio guajá foi levado para Brasília, na tentativa de reconhecer sua identidade, mas o que descobriu é que aquele tratava-se de seu próprio pai, desaparecido desde o massacre dos fazendeiros. Ao voltar para a aldeia dos awá-guajás, o que Carapirú encontra não estava mais de acordo com sua vida nômade.

Para quem sempre viveu perambulando pela floresta, vagando por longas distâncias, ocupando diferentes ecossistemas, vivendo da caça e da coleta de frutos e mel, o contato com a sociedade "branca" desencadeou uma crise no modo de viver desse povo. Logo, a vida nômade para parte desses índios perdeu força, e a dieta, constituída à base de animais silvestres e produtos florestais, ganhou outros sabores, nem sempre agradáveis. A tentativa de substituição da alimentação tradicional dos guajás até hoje não foi bem digerida. O arroz, a farinha e as verduras foram parcialmente aceitas, mas os índios ainda não se adaptaram ao feijão, tão comum aos brasileiros. Por outro lado, novas técnicas de pescaria deram resultados, e os peixes passaram a fazer parte da dieta. Porém, os hábitos de preparar a terra, semear e colher ainda são aprendidos com dificuldade, pois movimentar enxada, foice ou qualquer outro equipamento agrícola é um choque para quem nunca trabalhou com ferramentas tão "avançadas". No início, "eles ficavam bem longe, desconfiados, apenas observando como fazíamos as roças", lembra José Damasceno, um dos primeiros técnicos a trabalhar diretamente com os índios aldeados.

A mudança afetou também a organização social do povo guajá. As mulheres e crianças, que até então sempre integravam o grupo nas caçadas na floresta, agora ficam na aldeia, mais especificamente nas tapiris, como eles chamam as cabanas que são feitas com paredes de barro e cobertas com a palha do babaçu. Outra mudança negativa foi a permissão para os índios receberem roupas dos visitantes, o que alterou a cultura de viver completamente nus, protegidos apenas pelas fibras vegetais. O problema com as roupas é que, como eles não possuem o hábito de lavá-las, eles acabam por utilizar uma camiseta, por exemplo, até que ela vire um trapo. As consequências são doenças e a proliferação de fungos, ácaros e bactérias que afetam a saúde da tribo.

A situação de saúde dos awás-guajás merece destaque. Até mesmo o Ministério Público Federal no Maranhão já ingressou com uma ação solicitando que a Coordenação Regional da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Distrito Sanitário Especial Indígena assegurem aos índios os cuidados necessários com sua saúde e que políticas sociais garantidas pela Constituição sejam cumpridas, o que ainda não aconteceu.

Apesar de alguns antropólogos afirmarem não acreditar em grandes mudanças na vida social dos índios, pelos exemplos citados anteriormente, ficam claras a interferência e as mudanças de valores culturais. No entanto, na saga dos awá-guajás, nada parece mais ameaçador e preocupante do que a ineficiente fiscalização e não implementação definitiva de seu território de 118 mil hectares, reivindicados desde 1982.

O entrave se deve à ganância de empresários, madeireiros, fazendeiros, políticos insensíveis, grileiros, garimpeiros e toda sorte de foras-da-lei que sempre conseguem barrar a posse definitiva pelos índios e continuam alimentando as motosserras, clandestinas ou não. Nas poucas vezes que operações policiais foram desencadeadas na região, grandes quantidades de madeira e máquinas utilizadas nos desmatamentos foram apreendidas. Na maior parte dos casos, são equipamentos avaliados em milhões de reais, o que demonstra o tamanho do poder dessa nova onda desenvolvimentista.

Parte das áreas que estão sendo destruídas ficam na fronteira entre o Pará e o Maranhão, e são fazendas ainda não desapropriadas pelo governo federal após a criação da Reserva Biológica do Gurupi e das terras indígenas homologadas na área do Turiaçu, entre elas o trecho destinado pela Justiça aos índios guajás. Pela lei, os supostos "ex-proprietários" não podem mais desmatar nem usar a madeira. Na região, só é permitida a atividade de pesquisa, mas isso acontece apenas no papel e nos gabinetes de Brasília.

Enquanto o poder judiciário não pratica a justiça, o cerco aos índios se fecha. Associado a todo tipo de agressões a seu ambiente natural, os guajás também convivem com o gigantesco Projeto Grande Carajás, administrado pela Companhia Vale do Rio Doce, que chegou à área causando um impacto de proporções alarmantes, afetando diretamente a vida da etnia. O primeiro e maior prejuízo foi a instalação da ferrovia Carajás, que liga São Luís (MA) às minas de Carajás (PA).

Apesar de oferecer transporte aos moradores dessa isolada região maranhense e de um trecho do Pará, seus trens, além de minério de ferro, transportam todo tipo de gente, entre eles, caçadores, traficantes, garimpeiros e desmatadores que já derrubaram grande parte das florestas originais da região, atingindo não apenas o povo guajá como uma série de outras etnias que também possuem terras indígenas na área.

Desde sua inauguração, a linha de trem permite aos criminosos chegar perto dos índios. O resultado são os inevitáveis conflitos, sempre sangrentos e injustos. Ainda como o impacto da ferrovia, é preciso citar o barulho dos trens ecoando na floresta. De tão violento, ele espanta animais e termina dificultando a caça dos índios. Por outro lado, como os bichos não foram dotados pela natureza de mecanismos de alerta sobre os perigos da linha férrea, o resultado é dramático. Diariamente, o trem faz vítimas entre a fauna local, complicando a busca dos guajás por uma dieta à base de carne. Apesar da magnitude da obra e da riqueza que ela transporta, algumas ações simples no projeto de construção da ferrovia, como a construção de passarelas ou canais para a passagem segura dos animais, foram relegadas ao segundo plano, fazendo com que o impacto ambiental da obra, nunca mensurado de forma profissional, seja alto.

A Vale do Rio Doce, que no início da ocupação se comprometeu a fortalecer as tribos que fossem afetadas pelo empreendimento, através de ações produtivas como a educação, saúde e segurança para cerca de 40 grupos étnicos, ofereceu apenas pequenas ajudas filantrópicas. A empresa alega que repassa mensalmente uma verba para os índios, mais são escandalosos os casos de corrupção envolvendo o dinheiro disponibilizado pela companhia e o que, efetivamente, chega aos índios.

Até mesmo funcionários da Funai já foram acusados formalmente pela Justiça em casos de desvio desses recursos. Os índios, machucados pela pobreza, massacrados em sua cultura, agora também precisam aprender a lidar com os problemas de nossa sociedade, como é o caso da corrupção. Mas como explicar a um povo tão simples o que isso significa, e como lidar com uma situação dessa gravidade, que em alguns casos impediu que gêneros de extrema necessidade, como o arroz e a farinha, chegassem aos índios?

A Funai também é acusada pelas entidades de defesa dos povos indígenas do Maranhão de deixar os guajás em situação de vulnerabilidade. No começo da década de 2000, por exemplo, como consequência do escândalo que envolve as constantes ameaças ao povo awá-guajá, a organização não governamental inglesa Survival International denunciou o governo do Brasil e a companhia Vale do Rio Doce à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, sem conseguir sucesso, pois mesmo após a denúncia a destruição das terras continuou ocorrendo, sem nenhum controle por parte das autoridades.

No entanto, mesmo após tantas agressões, tudo o que os guajás precisam para garantir seu futuro é apenas a integridade do espaço natural para que possam viver como nômades. Para os antropólogos, é preciso definir urgentemente mecanismos de fiscalização das áreas indígenas e finalizar a implementação das terras, estabelecendo um terreno contínuo entre as áreas Alto Turiaçu, Carú, o território dos timbiras e guajajaras, além da paralisação completa dos desmatamentos na Reserva Biológica do Gurupi - este último, o trecho com a maior cobertura vegetal da região, fundamental para que os índios façam seus deslocamentos em segurança.

Já para as entidades que tentam proteger os índios, é necessário respeitar as condições de vida dos guajás, de forma a garantir sua presença na terra que ocupam há muito tempo, retirando os madeireiros e criando um plano de vigilância para essa área. Em relação aos índios que ainda não foram contatados, a Funai desconfia que pequenos grupos de guajás permaneçam na mata, sem contato com o homem branco. O objetivo é que eles fiquem como estão, ou seja, isolados. "Contatá-los e transferi-los para a terra indígena Carú é assumir o risco de cometer um genocídio", alerta a fundação.

Mesmo com tamanha mutilação cultural, os awáguajás ainda guardam costumes de quando viviam em liberdade, deslocando-se por grandes extensões de terra e adaptando-se a vários ecossistemas. Basta caminhar pela floresta que restou em pé para perceber que, se naquela área não houvesse grupos indígenas, toda a cobertura vegetal já teria sido transformada em carvão vegetal para abastecer as madeireiras do Sudeste do país e as siderúrgicas da região. A ameaça é terrivelmente visível para os awás e para as outras etnias da área. Imagens de satélite mostram que os 820 mil hectares de terras indígenas demarcadas no Maranhão foram devastados nas últimas décadas.

De minha primeira visita à região, há cinco anos, me recordo que o caminho para chegar até a aldeia dos awá-guajás passa por um igarapé cor de caramelo, cheio de curvas e cercado pela floresta. Teoricamente, por ali só poderiam passar pesquisadores e especialistas autorizados pela Funai, mas não foi isso que acompanhei em minhas duas outras visitas à região. Depois de cruzar com vários caminhões carregados de madeira extraída ilegalmente da floresta, chegamos ao interior da mata, ansiosos para conhecer a singularidade desse povo. Lá encontramos Merikitiá, a mulher mais velha da aldeia e maior autoridade entre os guajás. Além dos primatas, ela também cuida de cotias, pacas, tamanduás e quatis. Um dos atos mais generosos desse povo é a proteção integral dos filhotes de animais abatidos em uma caçada. A cria em estágio de amamentação é cuidada pelas mães guajás como se fosse um bebê índio. Assim, crianças e animais dividem o peito materno em harmonia, crescem e brincam juntos. Pelas normas da tribo, enquanto os bichos de estimação permanecem com os índios, jamais serão mortos para alimentação. Para Bruno Fragoso, do departamento de índios isolados da Funai, alimentar a natureza para ser alimentado por ela talvez seja uma forma simbólica de retribuir a caça diária. "O awá-guajá é um povo único", define. "É um dos últimos povos nômades de que se tem notícia na América. Essa relação que eles têm com os bichos é tão forte que o animal passa a fazer parte da família."

Para Fragoso, se não houver uma ação rápida para conter a destruição do habitat, o futuro desse povo pode ser a extinção. "No processo de aceleração de invasão de seu território, os awá-guajá correm risco de desaparecer e, com eles, o que resta da floresta", alerta. Nas últimas décadas, os awás tiveram sua população reduzida pelas limitações do novo modo de vida imposto pela interferência dos não índios nas áreas utilizadas para sua subsistência, em especial devido à dificuldade de deslocamento pelas rotas de nomadismo, essenciais para a interação entre os grupos e para sua sobrevivência.

Depois de tanto esperar, finalmente o telefone toca: do outro lado da linha uma funcionária da Funai diz que os índios awáguajás fizeram uma série de pedidos para permitir minha nova visita à aldeia. Entre as exigências preciso comprar um motor de popa de 15 hp utilizado em pequenos barcos. Nesse instante, o desconfortável quarto de hotel que já estava quente começa a ferver.

Discuto com a representante e lhe explico que, como já estive outras duas vezes na área, sei perfeitamente que os awá-guajás não utilizam barcos, pois vivem mesmo é no meio da mata, caminhando. Logo, fica claro que o motor não foi uma reivindicação dos índios, que não têm esse hábito, mais sim a ganância de alguns indivíduos que não perdem a oportunidade de se beneficiar às custas dos outros. Mesmo que o motor fosse utilizado pelos funcionários para fazer os deslocamentos dos índios em casos de emergência, por exemplo, não parece haver propósito em querer "cobrar" uma espécie de pedágio, sem a autorização dos índios, para permitir o que já estava aprovado pelo órgão em Brasília.

Indignado, desisti finalmente de retornar à terra dos awá-guajás. Na memória, porém, mantive as lembranças de minhas outras experiências na região.