Após flerte com outros projetos, integrantes reativam o Nação Zumbi com disco inédito, novas ideias e liberdade para falar até sobre temas mais doloridos
As lembranças arrebatam o guitarrista Lúcio Maia com força. Ele despeja as memórias em fluxo contínuo, sem pausa para tomar fôlego. O ano era 1996 e não parecia haver limites para o Chico Science e Nação Zumbi. O disco Afrociberdelia sucedera extremamente bem a estreia Da Lama ao Caos (1994); a primeira música de trabalho do álbum, “Manguetown”, tocava incessantemente nas rádios. As aventuras do grupo no exterior desbravaram caminhos até então desconhecidos pela maioria das bandas brasileiras e rendiam frutos para o ano seguinte. “Ainda era janeiro e tínhamos uma agenda cheia, apresentações na Europa marcadas até agosto”, diz Maia. “E aí o Chico morreu.” O músico, até então estatelado no sofá do camarim montado para o Nação Zumbi em Brasília, endireita as costas, hesita por um breve instante e completa: “Aí... Aí zerou tudo, todo o cronômetro”. Dezessete anos se passaram desde a trágica morte do vocalista e líder do grupo, mas o nome de Francisco de Assis França, o Chico Science, ainda aparece aqui e ali em conversas com os integrantes do Nação Zumbi. Sem saudosismo, é verdade. É como canta Jorge Du Peixe no novo single da banda, “Cicatriz”, lançado em fevereiro deste ano: a marca deixada pelo antigo companheiro “traz uma boa lembrança”, e não é preciso esconder.
Cedo demais: artistas brasileiros que morreram antes dos 50.
Ainda assim, nem mesmo quando a ferida de Chico Science foi aberta, o grupo passou tanto tempo sem lançar um disco de inéditas: são sete anos desde Fome de Tudo (2007). Agora, aos poucos, o sexteto deixa o transe no qual se encontrava nos últimos 24 meses, volta aos shows e se prepara para mostrar um novo álbum. Algo, no entanto, está diferente com o grupo – e “Cicatriz”, a faixa responsável por marcar o fim do estado vegetativo no qual o Nação se encontrava, tem (muito) a ver com isso.
Antes do show que fizeram durante o mais recente Carnaval de Recife, a última vez que os integrantes tinham subido juntos ao palco sob o nome Nação Zumbi havia sido em abril de 2012, em Belo Horizonte. Foi uma pausa programada, prevista, necessária e, acima de tudo, segundo eles, não definitiva. “Um break em 20 anos é importante”, analisa Du Peixe, poucos momentos antes de fazer a passagem de som com a banda para a sétima apresentação após o retorno, na Esplanada dos Ministérios, em evento criado para comemorar o 54º aniversário de Brasília. Os indefectíveis óculos escuros modelo Wayfarer, usados até mesmo nos shows à noite, fazem sentido durante aquela ensolarada e seca tarde de segunda-feira na capital federal. Ele é o primeiro dos quatro integrantes a dar entrevista – Maia, Pupillo (bateria) e Dengue (baixo) falariam depois. “É difícil juntar todo mundo”, justifica o vocalista. O percussionista Toca Ogan depois explica que apenas os quatro falam em nome da banda. “Não dou entrevista, não”, diz o músico de sorriso fácil, com uma latinha de cerveja na mão.
Du Peixe, assim como o restante dos integrantes diria depois, encara a pausa do Nação como uma atitude essencial para que a banda pudesse retornar mais unida e disposta a encarar público e crítica com um disco de inéditas. A atual leva de músicas novas, na opinião dele, reforça a identidade do sexteto e dispensa um título: Nação Zumbi chegou às lojas virtuais em 5 de maio, com a versão física prevista para lançamento dez dias depois. “O disco sairia em 2014 mesmo se não tivéssemos o auxílio da Natura Musical”, já havia avisado Pupillo em um evento organizado pela empresa de cosméticos, em novembro de 2013. Depois disso, a gravadora Som Livre, por meio do selo Slap, entrou para ajudar na distribuição e na divulgação do oitavo trabalho de estúdio do Nação desde a estreia com Da Lama ao Caos, que abalou os alicerces da música brasileira unindo referências tão díspares quanto hip-hop e metal e o grave retumbante das alfaias do maracatu. Por mais que transite pelo mainstream e pela cena independente, o Nação Zumbi nunca lançou um disco sem a ajuda de uma gravadora.
“A questão maior para a banda é a independência artística. Sempre foi um fator crucial”, analisa Pupillo. “Nunca precisamos declarar guerra contra nenhum tipo de organização, cara. Muito por isso: temos essa consciência limpa de que o que estamos mostrando ao público é o que quisemos fazer.”
Jorge du Peixe e Fred Zeroquatro falam sobre disco Mundo Livre S.A. vs Nação Zumbi.
Sentado após o show em Brasília, Lúcio Maia se mostra satisfeito com o resultado que o Nação Zumbi tem obtido nas apresentações mais recentes – três durante o Carnaval do Recife e três nas versões chilena, argentina e brasileira do festival Lollapalooza. “Sétimo show em 23 anos?”, brinca ele, sorridente. “Vou te falar uma parada, quando a gente fez a história do Mundo Livre S.A. [o disco Mundo Livre S.A. vs. Nação Zumbi, lançado em 2013, em que as bandas trocaram de repertório], fomos ensaiar para os shows e o forno estava aceso ainda. Não esfriou, não”, afirma o guitarrista. O que alguns fãs não parecem ter entendido é que não teria como esfriar: o Nação não estava em atividade, mas seus os integrantes não pararam em nenhum momento.
As primeiras tentativas de escrever o oitavo disco começaram antes de 2010. Maia, Du Peixe e Pupillo já moravam em São Paulo, e Dengue decidiu que o grupo deveria se reunir e ensaiar mais. Mudou-se, então, com esposa, filha e cachorro para o Alto da Lapa, bairro da capital paulista. “Já estávamos há três anos sem um disco. Não tínhamos vontade de fazer show, já que era tudo a mesma coisa, e não tínhamos tempo para compor”, conta o baixista. “Sentei com os três e falei que deveríamos ensaiar, que precisávamos de tempo. Iríamos parar se continuássemos daquele jeito.” O início da criação de Nação Zumbi, o álbum, não funcionou como eles gostariam. “O clima não estava bom. Não estava criativo, não estava rolando. Estávamos com dificuldade de nos encontrar artisticamente”, relembra Maia. “Se em um casamento, o marido e a esposa resolvessem ficar um ano e meio separados e depois voltassem, seria muito melhor. Esse break foi quase uma necessidade.”
Enquanto a banda se pressionava para criar inéditas – e as ideias continuavam não fluindo –, novos convites individuais surgiram para os integrantes. Dengue, Pupillo e Maia foram chamados para formar a banda de Marisa Monte na turnê Verdade, uma Ilusão, que se iniciou em junho de 2012 e só chegou ao fim em dezembro do ano seguinte, após 116 shows. O tempo também foi saudável para que Gilmar Bola 8 desse andamento ao projeto próprio Combo X, com o disco A Ponte, e para Toca Ogan, que além de ser um percussionista requisitado por outros artistas pernambucanos, como Otto, também prepara um trabalho solo, ainda inédito.
Quem escuta o novo disco percebe que o tempo para experimentações foi essencial para Du Peixe. Na “folga” da banda, o vocalista, com seu icônico timbre de voz grave, pôde fazer experimentos vocais e de composição inéditos para ele, com o Afrobombas e Los Sebosos Postizos – o segundo deles, montado ao lado de três companheiros de Nação (Dengue, Pupillo e Maia) para recriar e reinterpretar canções de Jorge Ben Jor. “Quem deu a primeira ideia de projeto paralelo foi Jorge com o Afrobombas, lá atrás”, revela Maia. O guitarrista, que agora também integra o trio Zulumbi, analisa o amigo e letrista do Nação como alguém que precisa de paz para compor. “Foi fundamental para ele”, diz. “Jorge gosta de trabalhar com calma, tranquilidade e sem pressão. Quando trabalha na pressão, não fica satisfeito, fica mal.”
Nação Zumbi explora referências além da música, de paixões devastadoras de Nelson Rodrigues à ficção científica de Philip K. Dick. “‘Foi de Amor’ é quase uma crônica, um cara narrando e comentando um crime passional. Nelson Rodrigues se encontra com Tim Maia e Jorge Ben em algum momento”, explica Du Peixe, sobre uma das três músicas novas que entraram no setlist da banda antes da chegada do disco às lojas – “Defeito Perfeito” e “Cicatriz” foram as outras duas.
Du Peixe e Pupillo estão juntos no backstage em Brasília, distantes do barulho produzido pelos técnicos de som no palco. “Estava falando para ele o quanto o Los Sebozos ajudou a gente”, diz o vocalista ao baterista. “Em termos de voz, de saber até onde eu posso ir.” Pupillo está satisfeito. “Dentro de um repertório que a banda tem, dos discos que ouvimos e usamos como influência, foi com este novo que conseguimos mexer mais com harmonia, melodia e outro tipo de tema que não o panfletário, com o qual muita gente costuma rotular a gente”, ele afirma. “Ou seríamos uma banda que repete formula e ninguém ia aguentar a gente, sabe? Passou a época de bandas que conseguem sobreviver dentro de um tipo de música, tipo Iron Maiden, AC/DC...”
O retorno do grupo se dá justamente no momento em que Da Lama ao Caos comemora 20 anos, mas o Nação não pretende celebrá-lo com uma turnê dedicada ao disco, como fez em 2009 – embora tenha recebido novos convites para tanto. “Eu me sentiria roubando a carteira das pessoas se fizesse isso”, diz Dengue. “Quando se tem uma banda com o tempo que o Nação tem e se reúne para uma nova turnê com material inédito, isso é incrível. Não sei se voltaríamos se não tivéssemos esse material”, completa Pupillo. Apesar de todos os projetos criados pelos integrantes nos últimos tempos, o “Nação é o vetor principal”, continua o baterista.
Quando a pausa foi anunciada, nada foi falado sobre o fim do Nação Zumbi. Ainda assim, o sexteto foi bombardeado com centenas de questionamentos a respeito de um possível desmantelamento. “O Nação é a minha vida”, rebate Dengue. “Larguei a faculdade por causa dessa banda, por ter essa vontade de fazer algo que eu queria, sem amarras. E acho que todos compartilham desse sentimento. É difícil. É, foi e vai ser difícil fazer. Já pensamos em parar, já pensamos em acabar. Várias vezes, mas a gente não consegue.” A metáfora do casamento usada por Lúcio Maia se encaixa mais uma vez na história do grupo: eles deram um tempo e aproveitaram para ter alguns affairs com outras propostas sonoras.
No palco, é fácil perceber o quanto o Nação Zumbi se sente renovado. Diante de um público misto que compareceu ao evento gratuito no aniversário de Brasília foi possível testemunhar uma banda disposta, em forma e vibrando a cada boa canção executada, da nova safra ou da antiga. Os seis se cumprimentam amigavelmente no início do show, mas, ao fim da apresentação, a demonstração de proximidade é mais efusiva: todos distribuem abraços e comentários extasiados pela adrenalina do espetáculo. A pausa, parada, tempo, chame como quiser, parece ter tirado aquele tal peso do maracatu de uma tonelada das costas de Du Peixe, Maia, Dengue, Pupillo, Ogan e Bola 8. Parecem livres, até mesmo para falar de forma aberta sobre as dores e as cicatrizes guardadas ao longo de duas décadas. Por isso é difícil desassociar o single “Cicatriz” da lembrança agridoce da partida de Chico Science em fevereiro de 1997.
“É engraçado isso, né, cara? São histórias”, despista Du Peixe, no início da tarde, ao lado de Pupillo. “Tudo o que é dolorido marca”, reflete o baterista, já aceitando o significado da canção. “Quase que 100% das vezes que a gente se reúne para ensaiar ou fazer show, lembramos alguma coisa de Chico.”
Quando Du Peixe invade o camarim no qual Maia concedia a última entrevista da noite, após o show, e senta-se ao lado do guitarrista, o tema de “Cicatriz” volta à conversa. “Em momento nenhum foi por causa disso”, reafirma o vocalista, negando que a canção tenha sido feita para Science. “Você quer enganar quem, cara?”, diverte-se o guitarrista. “O inconsciente é um cabra safado. Você não pode confiar nele, rapaz.” Ainda sorrindo, Maia vira-se para mim, balança a cabeça e esparrama-se novamente no sofá. “O subconsciente é foda.”