Quando David Letterman parou de se sentir deprimido, soube que era hora de se aposentar
Acho que estou falando demais. conte você algumas histórias.” ¶ são18h50 do dia 1? de abril e David Letterman, 68 anos, esgotou sua capacidade de autorreflexão. Tínhamos agendado uma conversa de 45 minutos e estávamos falando havia 44. Depois de quase 50 anos de programas ao vivo, ele sabe instintivamente quando um segmento está prestes a estourar o tempo. ¶ Normalmente, Letterman não ama falar sobre si mesmo – o que
ele tem para dizer, costuma dizer no programa –, mas hoje está sentado para uma espécie de entrevista de despedida. Em algumas semanas, ele daria o derradeiro boa-noite e o programa da CBS Late Show with David Letterman (que, no Brasil, é exibido pelo canal pago GNT) teria gravado o último episódio – o adeus foi ao ar em 20 de maio, nos Estados Unidos. Letterman, claro, não estava ansioso por isso. “Estou apavorado”, diz sorrindo. “Depois que acabar, vou relaxar e refletir sobre o que fizemos, mas, por enquanto, só quero que acabe.”
Letterman acabou de gravar o programa de número 5.994. O nariz dele está levemente queimado de sol – um suvenir de viagens de férias – e, atrás dos óculos com armação cor de âmbar, os olhos dele aparentam cansaço. “Quando Johnny Carson saiu, lembro que perguntei o porquê e ele respondeu: ‘Simplesmente não tenho mais energia’”, relembra. “Me identifico.”
Ele está, no entanto, se aposentando como um campeão. David Letterman mudou não apenas o panorama da TV de fim de noite mas a própria natureza da comédia. “Tudo no programa dele informava não apenas nossos textos mas nossas interações humanas”, diz a atriz e roteirista Tina Fey, fã de Letterman desde que ele teve um breve programa matinal em 1980, quando ela tinha 10 anos. Dezesseis prêmios Emmy e algumas milhares de listas Top 10 depois, até Jay Leno reconhece que Letterman é o melhor apresentador. A esta altura, é basicamente ciência comprovada.
Quando o Late Night with David Letterman estreou na NBC, em 1º de fevereiro de 1982, Dallas era um dos programas mais populares da TV norte-americana e a MTV tinha 6 meses de idade. “O que quero”, disse quando começou, “é que este programa dure o tempo suficiente para se tornar um padrão na TV norte-americana. Se ainda estivermos no ar daqui a cinco anos, acharei isso um sucesso”. Ele errou a conta de longe.
No início, Letterman era “moderno”, “irônico”, “inovador”, “cool”. Mais de 30 anos depois, está sendo chamado de “vovô” por Justin Bieber. Johnny Carson, que se aposentou em 1992, prometeu a si mesmo que não “ficaria tempo demais na festa”; às vezes, Letterman pensa que ficou. “Se você olhar quem faz isso e olhar para mim, é quase como um par de sapatos que você não usa há anos”, compara. “Ainda gosto do que faço, mas acho que não mais o que você quer ver às 23h30.”
Apesar de ter se tornado um ícone, no começo, a reputação de Letterman era de ser ruim como entrevistador e maldoso com os convidados. “Não era o ponto forte dele”, admite o diretor musical e frontman da banda do programa, Paul Shaffer, “mas toda noite ele estudava aquelas entrevistas, então ficou melhor”. Agora, é um dos grandes nomes nessa seara na TV, seja falando com um convidado, seja contando uma história sobre um urso ter invadido a casa dele em Montana. Ainda pode ser maldoso, mas atualmente é mais provável que ele relaxe na cadeira e deixe o entrevistado fazer papelão sozinho (como Tina Fey disse uma vez, é um “professor emérito do Instituto Vou Dar Mais Corda para Se Enforcar”).
Letterman fala com carinho dos colegas mais jovens, chamando o programa de Jimmy Fallon de “divertido e animado” e Jimmy Kimmel de “simpático” e “muito doce”. Diz que a falta de apelo para o You-Tube é “um ponto fraco do nosso programa. Ouço sobre coisas viralizando e penso ‘Como você faz isso?’ Acho que sou eu o problema”. Ao mesmo tempo, olha para as pegadinhas e para os jogos de “pictionary’ com celebridades [promovidos pelos outros programas] e deve achar que talvez não valha a pena. Ele é como o último tiranossauro depois da chuva de meteoros, vendo um bando de mamíferos correrem contentes pelas planícies pelas quais costumava perambular. “Com a aposentadoria dele, não há mais ninguém a temer”, afirma Tina. “Só restou gente amigável agora.”
Depois que passou por uma cirurgia cardíaca, há 15 anos, o maior ponto de virada na vida de Letterman aconteceu em 3 de novembro de 2003, quando, às 23h53 – praticamente a hora em que ele normalmente abriria a lista de Top 10 do programa –, nasceu Harry Joseph Letterman, único rebento do apresentador.
Letterman falava de ter filhos desde sempre, mas quando chegou aos 50 e poucos, isso parecia improvável. Até que, de repente, aos 56 anos, se viu pai de primera viagem. Ele brinca que não se preocupa de estragar muito o garoto porque “quando ele estiver por aí roubando carros, papai estará morto”. Ainda assim, tenta dar lições conforme pode – como quando sai pelas ruas com o filho recolhendo latas de cerveja. “Eu não sei dizer se é o tipo de coisa que terá um impacto nele ou o tipo de coisa que, no futuro, fará com que ele diga ‘Meu velho me fazia limpar a maldita rua’. Pode acontecer qualquer uma dessas duas coisas.”
Atualmente, o assunto que mais o deixa feliz é quando conta histórias sobre levar Harry para pescar. Na casa da família no interior há um lago para pesca cheio de percas, carpas e achigãs. Letterman conta: “Pegamos tudo, menos as carpas. Não quero nem saber delas, mas o Harry está determinado. É difícil morderem a isca – até agora, pelo que vimos, elas só comem couve-de-bruxelas. Decidimos que o melhor é pescá-las com rede, então, no domingo, o Harry viu uma e disse: ‘Pai, vamos pegar!’ Deixamos um rastro de couves-de-bruxelas, fiquei no lago com a rede, rezando para que nenhuma se aproximasse. Porque não quero saber disso, elas têm 90 cm de comprimento! Podem te matar. Você as vê em, tipo, uma formação, só esperando. Esse foi nosso fim de semana”.
Letterman anunciou sua aposentadoria no ar em abril de 2014, com uma história de pescaria. Ele e Harry estavam em um reservatório quando viram uma águia. Não sabiam bem se era uma águia real ou careca, então Letterman foi trabalhar na segunda seguinte e passou o dia inteiro tentando descobrir. Procurou fotos no Google, recrutou funcionários. Finalmente, conseguiram a resposta: era uma águia careca. À noite, em casa, a esposa dele, Regina, perguntou como tinha sido o dia e ele contou animadamente toda a investigação. “Que ótimo”, ela disse. “Quem foi ao programa?” Letterman não conseguia lembrar. Foi então, contou à plateia, que soube que era hora de ir embora.
Ele admite que a história foi “uma conveniência”. Os detalhes eram verdadeiros, mas ele e Regina vinham conversando seriamente sobre uma possível aposentadoria havia pelo menos um ano e meio. “Simplesmente pensei: ‘Não quero que isso seja sentimental, piegas’”, diz. “‘Vamos ver se dá para jogar a culpa toda no garoto.
A verdade é que ele já vinha falando publicamente sobre parar havia anos. O momento mais decisivo, no entanto, foi o óbvio: quando seu antigo concorrente Jay Leno pendurou as chuteiras. “Fui pego de surpresa”, afirma. “Achei que Jay ficaria com o emprego pelo tempo que quisesse. Tinha índices de audiência altos e não mostrava sinais de que iria desacelerar. Sei que amava aquilo. Sei que deve ter sido difícil para ele.” Quando Leno anunciou que estava de saída, Letterman ligou para ele. “Fiquei mexido com aquilo”, conta. “Perguntei: ‘Jay, você está mesmo se aposentando?’ Ele respondeu que sim, que tal e tal, então eu disse: ‘Bem, espero que seja bom para você e lamento que esteja saindo’. Ele foi muito gentil e sincero.”
Em outubro de 1981, um cabeludo Letterman, aos 34 anos, foi entrevistado em um programa chamado Signature, que durou pouco. A atração matinal que comandava havia sido cancelado no ano anterior e ele ainda estava a um mês de conseguir o Late Night, na NBC. Na época, não sabia se trabalharia na TV novamente. Quase dá para sentir o cheiro de derrota nele. Em um momento, o entrevistador pergunta por que ele fica cutucando o rosto. “Estou muito nervoso”, diz calmamente.
Mais adiante no programa,Letterman é questionado sobre o que fará depois. “Quero estar na TV”, afirma. “Acho que minha verdadeira identidade ou personalidade é alguém que apenas apresenta um programa de TV.” Mesmo naquela época, era tudo o que queria.
Então, o que acontecerá quando o talk show acabar? “Penso na aposentadoria”, disse em 2010, “mas não sei o que faria. Faria um programa em casa. Montaria uma mesa e chamaria as pessoas. Entrevistaria o entregador de pizza”. Ele sabe que não quer atuar em filmes ou séries. Admite que ficou “muito irritado” quando viu o programa online de Jerry Seinfeld, Comedians in Cars Getting Cofee. “Pensei: ‘Droga, é a ideia perfeita’”, conta.
Quando Carson se aposentou, Letterman foi um dos últimos convidados. “Tenho ouvido muito ‘vai sentir falta do Johnny?’”, disse no programa. “Vou sentir falta do Johnny, vocês vão sentir falta do Johnny, o padre da sua paróquia vai sentir falta do Johnny... Acho que há outra perspectiva a considerar... você não está morrendo. Ainda é engraçado, vibrante, encantador, cheio de energia, divertido... É um homem muito saudável, não vai para a prisão, ainda estará no show business.” Só que esse era um raciocínio otimista. Carson saiu na semana seguinte e, exceto por raras aparições, nunca mais foi visto em público. Pelo que se sabe, teve uma ótima aposentadoria, jogando tênis e velejando, mas foi uma aposentadoria absolutamente privada. Quem conhece Letterman concorda que parece improvável que ele siga o exemplo de Carson, que morreu em 2005. “O cérebro dele é ativo demais”, diz o produtor executivo do programa, Rob Burnett. “Ele está constantemente fazendo perguntas aparentemente aleatórias às pessoas – sobre história, geografia, herpetologia, teoria das cordas, o que for.”
Letterman uma vez disse que havia duas grandes motivações em sua vida: culpa e medo. Ultimamente, não parece movido por nenhuma delas. Acha difícil falar sobre “legado”: o mais próximo que chega disso é uma admissão de que se sente “melancólico”. Talvez porque ainda não esteja pronto para processar isso ou talvez seja algo vasto demais para refletir. “No final das contas, o conjunto da obra fala por si só”, afirma Rob Burnett. “São 30 anos. É um oceano.”
Arrependimentos? Alguns. “Queria ter feito um trabalho melhor de forma mais consistente”, afirma. “Queria ter tido uma performance um pouco mais sólida. Queria não ter deixado as coisas erradas me distraírem. Queria poder ter sido impenetrável.” Um grande arrependimento é não ter capitalizado em sua produtora, Worldwide Pants, para que “ela pudesse ter sobrevida, de forma que algumas das pessoas que trabalharam tanto nesses anos todos pudessem continuar empregadas”. E queria ter começado a ter filhos antes para poder ter mais um – preferencialmente uma menina.
“Não consigo me lembrar de muitas vezes, se houve alguma, em que ele aproveitou o sucesso”, diz Burnett. “Não é da personalidade dele. É meio riste – você quer que a pessoa desfrute do que faz, mas acho que, de alguma maneira, talvez em um momento tranquilo, ele reconheça o que conquistou. Parece impossível não reconhecer.”
Letterman não está ansioso por setembro, quando as férias do verão norte-americano acabarão, Harry voltará à escola e Stephen Colbert passará a ir ao ar no lugar dele. “Lembro que conversei com Carson depois que se aposentou e ele disse que demorou um tempo até cair a ficha. Então, acho que no fim do ano, quando o programa de Stephen começar, meu organismo meio que dirá: ‘Ah, merda. Não estou mesmo de férias, estou?’”
Enquanto isso, o plano é familiar. “O que decidi fazer – e o que realmente quero fazer – é me dedicar ao meu filho e minha mulher. Meus horários não são mais um problema, então faremos o que eles quiserem.” Recentemente, ele comprou um livro grosso sobre trilhas de caminhada nos Estados Unidos e está empolgado para visitar alguns parques nacionais, como Arches, em Utah. Um amigo também planejou uma viagem de pescaria até o rio Big Hole, em Montana. “Será um ótimo verão”, Letterman conclui.