Usando o microfone e o tino para os negócios, Emicida vem da periferia para combater o racismo, do underground ao mainstream
"Jorge sentou praça na cavalaria/ E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia...” A canção de Jorge Ben Jor ecoa no primeiro camarim do 4º subsolo do Sesc Pinheiros, em São Paulo. É a segunda noite de lançamento do disco Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, o segundo álbum cheio de Emicida. O rapper está rodeado por mulheres – as mulheres de sua vida: a mãe, as duas irmãs, as três sobrinhas, a filha, Estela, e a namorada, a apresentadora de TV Marina Santa Helena. Na sala ao lado a banda se concentra, e nem de longe essa cena se parece com os costumeiros camarins esfumaçados dos shows de rap.
Emicida expõe a luta de classes e o preconceito racial no impactante clipe de “Boa Esperança”.
Uma playlist alto-astral de música baiana embala a equipe minutos antes da apresentação. “Madagascar Olodum” (Reflexu’s), “Pipoca” (Araketu), “Milla” (Netinho), “O Canto da Cidade” (Daniela Mercury) e “Azul” (Gal Costa) estão a todo volume. Mas toca o sinal. As luzes do palco se apagam, a equipe se prepara. Tudo no lugar. Emicida se senta em um banco alto no centro do palco. Imóvel, estático até o primeiro verso de “8”. “Tipo Central do Brasil, eu vou sozinho”, ele canta.
Emicida exalta a cultura negra em disco com mensagem acessível e extremamente relevante.
Leandro Roque de Oliveira é a maior referência do rap para a sua geração. Aos 30 anos, fincou de vez os pés entre os grandes nomes da música brasileira com duas mixtapes, dois EPs, dois discos e mais de 30 participações ao lado de artistas do rap, do samba e do pop. Ganhou visibilidade com os improvisos nos duelos de freestyle e com o primeiro trabalho, intitulado Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, até Que Eu Cheguei Longe... (2009). “Eu olho pra primeira mixtape e sinto fome. Eu gosto dela, mas, mano, me vem a mesma situação. Eu tava cansado, com fome e ela é o retrato disso”, ele relembra sobre os dias em que compôs as faixas, quando a vida dele e da família não era fácil na periferia da zona norte paulistana. Músicas como “Triunfo” e “E.M.I.C.I.D.A (Adoooro)” abriram espaço para uma carreira consistente. Temos aqui uma história de superação que ficaria bem até nos cinemas. É bom olhar para o menino negro, pobre e sem perspectiva que contrariou muita gente para estar onde está, mas sem dúvida é mais confortável narrar os passos do que vivê-los.
O tempo da Batalha do Santa Cruz, tradicional encontro de MCs da zona sul de São Paulo, já passou. A correria para não perder o busão depois de umas rimas do grupo Central Acústica, na Galeria Olido, também já não é mais uma questão. Os inimigos da rua que duvidavam do talento dele estão lá atrás, no retrovisor, assim como os tempos de perrengues financeiros. Emicida é hoje um dos homens de maior destaque na música feita no país, eleito pela Revista Forbes Brasil, em 2014, um dos 30 nomes mais influentes abaixo dos 30 anos ao lado de Neymar, Anitta e Isis Valverde.
O Laboratório Fantasma, misto de escritório de comunicação, gravadora e selo criado por ele e pelo irmão, Evandro Fióti, é exemplo de administração, empreendedorismo e organização. Na folha de pagamento, além de dezenas de colaboradores, estão 15 funcionários fixos. E esse é só um pedaço do império que Emicida está construindo. “Hoje fica esse debate se você é capitalista ou se é comunista. Eu sou preto, tio”, ele diz, enfático. “Eu sou um cara que sabe a lenda de Oxóssi, tá ligado? Oxóssi era o arqueiro de uma flecha só. Ele não podia errar. Eu não posso ficar brincando quando 15 pessoas dependem diretamente disso aqui e sei lá quantos milhões de pessoas sonham com esse bagulho.”
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Dois marmitex pequenos recém-chegados repousam recheados com uma porção de escondidinho de carne-seca e outra de arroz. Evandro Fióti, de 26 anos, empresário e único sócio de Emicida no Laboratório Fantasma, pega prato e talheres e se senta em uma ampla mesa branca na cozinha do escritório. Ele desembrulha as marmitas, coloca metade da mistura e um punhado de arroz no prato, como se previsse a fome do irmão. Emicida entra no ambiente perguntando se ainda tem comida. Já passa das 17h e nenhum dos dois almoçou. De pé, o MC come andando pra lá e pra cá. Some por poucos minutos, volta e sai apressado novamente. Entrevista por telefone e ainda mais uma entrevista em vídeo preenchem a agenda que está praticamente tomada pelos ensaios que antecedem os primeiros shows do novo disco.
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A história para chegar até esse ponto inclui muitos percalços, mas também conquistas. Em 2011 ele integrou o line-up do festival Coachella, na Califórnia, e se apresentou em um importante circuito de eventos no Brasil, como Rock in Rio, SWU, Planeta Atlântida e Back2Black. No passaporte, carrega carimbos dos Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Alemanha, Suíça, Dinamarca, França, Portugal, Inglaterra, Madagascar, África do Sul, Cabo Verde e Angola. Já dividiu o microfone com Mano Brown, Edi Rock e MV Bill, mas foi além do rap e flertou com outros universos em parcerias com Pitty, Tulipa Ruiz, Péricles, Skank, NX Zero, Lenine, Fresno e Mart’nália, entre outros.
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“O novo disco do Emicida é realmente um acontecimento na cena hip-hop brasileira e mesmo no panorama da música brasileira como um todo”, avalia Caetano Veloso, que participa da faixa “Baiana”, de Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa. “O talento de improvisador de rimas e a força da imaginação dele já são conhecidos. Mas neste disco Emicida alcança a realização de um trabalho coeso, das sílabas à produção no estúdio. Ouvindo o álbum pronto, fiquei orgulhoso de poder ter estado um pouco mais perto desse novo criador.” Vanessa da Mata, que divide com o rapper a canção “Passarinhos”, música que chegou com força às rádios comerciais, também despeja elogios ao MC. “Acho que Emicida tem doçura e postura, vontade e coragem, gosta de poesia e, ao mesmo tempo, dá uma pancada quando emite a voz de um silêncio tenebroso que se confunde com humildade, mas na verdade é opressão”, define. “Ter doçura, ser vivo, mesmo tendo sofrido, é fundamental. Mas calar-se jamais. Lutar por mudanças é estar vivo.”
O crescimento ainda assusta o rapper. “Eu imaginava que iria virar, mas imaginava menos. Não tinha essa expectativa pro rap. Não tinha esse bagulho dos artistas fodão falar da parada. O Rappin Hood tinha conseguido fazer isso e essa já era a minha conquista. Eu me via representado naquilo”, afirma Emicida (em 2005, Hood lançou a música “Rap du Bom Parte 2” que era cantada com Veloso em cima da batida do clássico da MPB “Odara”). “Nunca imaginei que um dia eu iria ligar pro Caetano Veloso e falar: ‘E aí, Caetano, firmeza? Ó, tô com uma letra aqui’.”
Emicida lança minidocumentário que mostra os bastidores do impactante clipe “Boa Esperança”.
Emicida escreve e produz há tempos. No início, o método dele era quase artesanal, com loopings feitos em fitas cassete, às vezes fora da batida, com resultado mais tosco do que bom. Era ali que assumia a alcunha de Leandro LRX, o Louco Revolucionário X, a voz forte de um grupo que ninguém conheceu, os Poetas de Correria. A união musical se desfez, porque, segundo o MC, “um casou, outro fez três filhos na mina e teve que casar também, outro foi estudar e me deixaram sozinho, só eu e o sonho”.
“Nenhum de nós esperava tudo isso. Aconteceu muita coisa em um período muito curto de tempo”, afirma Fernando Silva, o DJ Nyack (no passado, DJ Relíquia),
que trabalha com Emicida há oito anos. “Em 2007 a gente estava tocando no Groove’s da Caçapa [em Santo André] para 50 pessoas; em 2009 estávamos com três indicações no VMB e em 2011 viajamos para fora do país para fazer show.”
Os sofrimentos vividos no percurso já foram narrados por Emicida inúmeras vezes, em letras como “Crisântemo”, do álbum O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui (2013), ou em “Mãe”, canção que abre seu último trabalho. Em ambas a fala emocionante de Jacira Roque de Oliveira, mãe de Emicida, está lá. Sagaz até o último fio de cabelo crespo, ela dá o tom do discurso orgulhoso de todos os seus filhos. Conta como educou Kátia, Katiane, Leandro e Evandro. “Eu criei os meus filhos igualzinho eu crio as minhas plantas. Todo dia tem que olhar, todo dia tem que regar, tem que olhar na raiz, tem que olhar em cima”, afirma. Ela revela que o MC parecia prever o futuro desde tempos imemoriais. “O Leandro, quando era pequeno, não pedia dinheiro dado – ele já pedia emprestado. Falava: ‘Você me empresta, que um dia eu vou ter e te pago’. Isso com 2, 3 anos de idade.”
A parceria profissional entre Emicida e o irmão mais novo, Evandro Fióti, veio um pouco antes da primeira mixtape. O caçula era funcionário do McDonald’s e largou o trabalho para embarcar no sonho do irmão. “Abandonei o emprego para ir vender CD na rua”, relembra Fióti. “Eu já queria sair. Tinha juntado uma grana, peguei esse dinheiro e coloquei nas primeiras mixtapes. Foram R$ 3 mil.” Formava-se o embrião do Laboratório Fantasma. Ainda faltava muita coisa, mas já tinham o nome, inspirado na série especial da Marvel Motoqueiro Fantasma 2099, e um produto, 25 músicas comprimidas em um CD, que era vendido a R$ 2. “Quando eu falei que a mixtape ia ser vendida a R$ 2, todo mundo riu. Os caras tiravam nóis na rua. Camelô, muambeiro, mochilinha. As pessoas desconfiavam até se tinha alguma coisa gravada no CD. [Nem questionavam] se era bom ou se era ruim, se era rap ou se não era. Falavam: ‘Caralho, cês tão vendendo CD virgem?’”
O primeiro funcionário do Laboratório foi Fernando Marcos de Assis, de 29 anos, o inconfundível Mundiko. Se você tem uma mixtape do Emicida, provavelmente cruzou com Mundiko na saída da balada com uma porção de CDs nas mãos. Ele tem o maior orgulho de fazer parte disso. “A minha evolução profissional acompanha a evolução do Lab. A gente nasceu com um produto que era só um CD e reinvestíamos na própria empresa. Fizemos esse CD se transformar numa camisa, que se transformou em bonés, que se transformaram em outra série de camisas, e isso sempre foi reinvestindo dentro da própria empresa”, conta o hoje gerente comercial da marca Laboratório Fantasma e um dos responsáveis por traçar estratégias de marketing. Uma parte da história de Mundiko é ouvida nas rimas de “Preciso (Melô do Mundiko)”. “O Emicida me mostrou esse som bem na época que a minha namorada estava grávida e a música falava da chegada de uma criança e tudo mais. Tinha a ver com o meu momento. Eu chorava pra caralho. Era quase a minha vida.”
Uma pequena sala em Santana, bairro da zona norte de São Paulo, abrigava toda a equipe. Enquanto um queimava CD, outro vendia, atendia contratante, imprensa, produzia música, separava peças de roupa. Mesmo se acotovelando no espaço diminuto, aprenderam a tocar o barco, a não ser passados para trás e a não tomar calote dos devedores. Nesse ponto entra outro funcionário importante para a estrutura, o advogado: Tiago Barbosa, mais conhecido como Tiago RedNiggaz. “A calçada é sobre quem faz rima e o business é sobre quem sabe ler contrato, e eu não sei ler contrato”, diz Emicida.
“Um dia, o Emicida chegou pra mim: ‘Mano, fiz um show ali e tomei um calote. Preciso dar um jeito de isso não acontecer mais’”, conta RedNiggaz, que antes trabalhava na área penal, além de também ser MC. “A demanda do trabalho exigiu que eu precisasse estudar mais. Eu estudei muita coisa por conta própria, mas o Laboratório Fantasma me permitiu fazer uma pós-graduação na área de direitos autorais e propriedade intelectual. O que eu estudei fica pro resto da vida.”
Apesar de ter um negócio e uma carreira em expansão, Emicida desfaz a pecha de homem de poder. “Eu nunca fui artista aqui. Eu sou artista para as pessoas de fora, mas nóis é tudo trabalhador aqui dentro, operários”, afirma. “Eu admiro os gringos tipo Jay Z, Puff Daddy, Dr. Dre, porque os caras começaram a falar de empresa há muito tempo. Isso me fez perceber que em algum momento tinha que virar business. Ia ter que ser, senão aconteceria o de sempre, neguinho fazendo música e em algum momento o dinheiro ia ter que vir de um patrão branco. Politicamente falando, é muito importante que o meu chefe seja preto, que é o Fióti”, ele diz, rindo. Sobre o irmão, vai além. “O Fióti é o meu anjo da guarda. Ele é o cara que chega aqui e me dá umas ‘oreiadas’ [broncas] e eu gosto. Além disso, ele tem uma visão de mercado foda e uma visão da nossa história. Ele sabe o quão importante é falarmos o que estamos falando para mais pessoas.” Dona Jacira resume a parceria: “O Leandro é muito esculhambado e o Evandro é certo demais”.
A esculhambação e a disciplina fazem com que o Laboratório Fantasma produza uma média de dez shows de Emicida e 12 de Rael (outro rapper do selo) por mês. Em 2014, Emicida fez 117 apresentações, tendo o faturamento engordado por parcerias e publicidade. O novo escritório, inaugurado há cerca de quatro meses, está na última fase da reforma e une todos os setores da empresa, inclusive o depósito, em um só lugar. De segunda a sexta todos os funcionários estão ali, inclusive o dono. “Ele não tem necessidade nenhuma de ir todo dia, ainda assim vai quase diariamente. Nem que seja pra dar um oi, falar com todo mundo, assinar um documento”, conta RedNiggaz. Outro que integra a equipe é o fotógrafo Ênio Cesar, que viajou com Emicida por boa parte do Brasil e foi o cinegrafista na recente viagem do MC à África, patrocinada pela Natura e base para o novo disco. As imagens renderão um web documentário. Ele endossa o coro do lado workaholic do patrão. “Ele sempre foi trabalhador. O bicho quase não dorme. É muito focado, pensa em tudo. Quando você vai fazer um bagulho, ele já pensou naquilo que você estava pensando.”
Emicida é cristalino como água ao descrever a missão de sua empresa. “O estereótipo do administrador é o cara branco, grisalho, de terno e gravata que não sabe o que é contar quantas laranjas tem e não carrega as caixas. Nós sabemos, então podemos dominar esses dois universos”, descreve. Ele está de olho em tudo. “Tem duas formas de lidar com a vitória: ou você esconde ou você ostenta. E nós já vivemos escondidos por muito tempo. Acredito que hoje eu tenho propriedade, força artística e maturidade para mergulhar nesse universo gigante do mainstream.”
Emicida tem um nome maior como referência nos negócios: KL Jay. “Pra mim, ele é o presidente. Ele estava nos selos 4P [Poder para o Povo Preto] e Raízes, e eu sempre lia os encartes e pensava: ‘Mano, esse cara é foda. Tá fazendo música, mas também tá organizando o business’.” O rapper lembra que o primeiro som do Racionais MC’s que ouviu na vida foi “Fim de Semana no Parque”. “Quando eu mudei pro Cachoeira [periferia da zona norte paulistana], ali perto tinha o clube do Banco do Brasil, e a gente morava na quebrada de trás. Só favela, barraquinho de madeira, luz feita com ‘gato’. Eu ficava vendo aquele bagulho. [Cita o trecho da música do Racionais] ‘Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora.’ Mano, aquilo era a minha vida. Eu sou o pretinho vendo tudo do lado de fora.” A referência aparece na música “I Love Quebrada”, da mixtape Emicídio (2010). Sobre o maior grupo de rap do Brasil, Leandro segue: “Uma vez, eu tava zoado, com o espírito no chão, e o Mano Brown me disse uma coisa foda: ‘Como eu vou agradecer o [MC do Public Enemy] Chuck D pelo que ele fez por mim? Não tem como. Eu tava na favela de cabeça baixa esperando a morte’. Comigo é a mesma coisa. Como eu vou agradecer os Racionais pelo que eles fizeram por mim? Não tem como. Eu era zoado, era o lixo, era a escória, tava esperando a morte na favela com o urubu sentado no ombro. Então, se em algum momento eu inspirei outras pessoas a adotar uma postura que melhorou a forma como elas lidam com a arte delas, seja lá quem for o artista, eu já estou mais do que satisfeito”.
A importância do Racionais MC’s no rap nacional é inegável, mas Emicida faz questão de se lembrar de outras referências. “Tem duas gerações muito injustiçadas no rap brasileiro: a primeira, do Pepeu, e a que vem depois dos Racionais”, afirma, elencando nomes como Kamau, Quinto Andar, Marechal, Contra Fluxo e Parteum. “Até hoje não posso escutar Parteum quando estou trampando, porque se escuto, copio ele por três meses.”
“Pra mim, o Pepeu é um dos reis”, ele continua, em referência ao MC dos anos 1980. Em 2010, Emicida levou o veterano das rimas de volta ao palco depois de um hiato de 16 anos. Inclusive, cita o veterano quando fala de uma de suas letras mais polêmicas, “Insomnia”, single em parceria com Ogi que critica outros rappers. “Os caras ficam bravos pra caralho por causa dessa rima. O Pepeu, lá atrás, versou assim: ‘Fiquei sabendo tem um tal de Pepeu, que canta rap bem melhor do que eu’. Rap sempre foi sobre se vangloriar de suas habilidades com o microfone. Rakim fazia isso.”
Essa vigilância é um dos males do sucesso. O rapper passou a ser vidraça e vitrine. Todo passo é fiscalizado. No álbum O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, uma canção gerou polêmica. O som de “Trepadeira”, cantado em parceria com o lendário Wilson das Neves, causou a ira de muitas mulheres com versos como “Isso aí é igual trevo de três folhas/ Quer comer, come, mas não dá sorte” ou “Merece era uma surra de espada de São Jorge”. Emicida revela que repetiria a dose, porque “a música é livre”, mas acredita que a reação de algumas pessoas cruzou a linha do bom senso. “No episódio da ‘Trepadeira’ teve um grupo de minas que se denomina feminista que teve a ideia ‘genial’ de mostrar o quanto fui machista descobrindo todos os perfis de mulheres da minha família para xingá-las. O ataque dito feminista foi nas mulheres da minha família. Elas tiveram que bloquear o Facebook, apagar. Na minha vida foda-se o sim e o não, eu consigo lidar com isso. Agora, na vida de outras pessoas, isso é foda. Eu vi as minas da minha família com medo de sair na rua. E isso partiu de pessoas que diziam que estavam lutando pelo direito das mulheres.”
Chega ao fim um dia de expediente. O MC fecha a porta do seu escritório, coloca o boné discretamente no rosto para não ser notado e embarca no banco de trás de um táxi. No fim da corrida, o taxista – uma classe muito criticada por Emicida em situações de racismo – o reconhece e pede uma selfie. Ele posa para o celular, agradece e desembarca. O motorista se diz honrado por ter dirigido para um artista tão conhecido.
Não, não estamos mais falando daquele neguinho que via tudo do lado de fora. Estamos falando de um músico que liga para Caetano Veloso, tem o figurino de seu show assinado pelo estilista João Pimenta, que também acaba de lançar uma coleção (em parceria com a grife West Coast), que namora apresentadora de TV, que enche três dias seguidos de auditório, que causa polêmica com declarações, que combate o racismo no Brasil. “Eu incomodo, porque eu sou preto. Eu incomodo os brancos e os pretos que cometeram suicídio de alma. Sabe o que é isso? É quando o escravo passa a se ver pelos olhos do senhor”, diz.
Estamos falando do menino que não pede mais para entrar. Que tem seus versos cantados dentro e fora da periferia, que espalhou a frase “A rua é noiz” por todo o Brasil em canções, bonés, canecas e camisetas. Estamos falando de Emicida, aquele que já mordeu cachorro por um pedaço de pão e agora trabalha na construção de um domínio em que a máxima parece ser uma só: “Poder para o povo preto”.
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Viagem ao continente inspirou novo disco do rapper
Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, segundo álbum cheio de Emicida, é o resultado de uma inspirada viagem de cerca de 15 dias por Luanda, em Angola, e por Praia, capital de Cabo Verde. As ideias floresceram também de um Réveillon na paradisíaca ilha de Madagascar, no sudoeste africano. O nome do álbum é a síntese do que mais marcou o MC durante esse período. A alegria das crianças dos locais visitados foi um dos fatores que chamaram a atenção de Emicida, que inclusive adicionou vozes infantis ao refrão de “Casa”. O termo “quadris” veio da passagem por Cabo Verde.
“Nós fomos ao terreiro dos órgãos e, quando chegamos lá, as mulheres estavam rebolando. Cantando e rebolando. Só que foi a primeira vez na minha vida que eu olhei pra umas minas rebolando e não achei sexista, não era o rebolado pra entreter um cara. Parecia uma oração, eu vi uma igreja ali.” O “pesadelo” é a realidade em que vivem muitos africanos, principalmente em Luanda. “Quando olhei aquelas quebradas pobres pra caralho, desiguais, violentas, eu falei: ‘Mano, meus parceiros vivem um pesadelo aqui’. Só que mesmo no meio desse pesadelo está cada um cuidando de sua família, cuidando de seus amigos, fazendo um mufete [prato de comemoração típico de Angola feito à base de peixe e comido comunitariamente]”. A “lição de casa” é não só o disco mas o legado de amadurecimento pessoal que a viagem rendeu ao artista. Emicida é categórico ao avaliar a visita a Angola e Cabo Verde: “Eu voltei da África mais humano”.