Cansados da imagem de bons moços e fugindo dos caminhos fáceis, os integrantes do Fresno - ponto fora da curva do novo rock brasileiro – querem corrigir erros do passado e angariar o respeito de quem ainda os menospreza
"Isto aqui é um show de rock, porra!" Lucas Silveira, líder da banda Fresno, grita como se tivesse enfurecido com a plateia à sua frente. Diante dele e de seus companheiros, três mil pessoas lotam uma casa de shows em Santos (SP) - entre adolescentes no auge da acne, garotas com cabelo alisado e meninos que, sim, apesar do sucesso dos quatro integrantes com o público feminino, também sabem cantar cada verso das músicas do grupo.
Minutos antes, no camarim (uma sala modesta com frigobar, espelhos, uma garrafa de vinho pela metade, lanches e uma garrafa de uísque intocada), uma garota, em choro convulsivo, se agarra com força a Lucas, a cabeça em seu peito. O ídolo adolescente não parece confortável - menos ainda quando a menina é retirada à força, aos gritos de "eu te amo!" - e aparenta não estar em seu melhor dia. Enquanto Rodrigo Tavares, o baixista-estrela, conversa com todos, Lucas está isolado, provavelmente desabafando dores de amor com uma amiga, produtora da banda. Naquele dia, conforme contaria depois, ele havia se desentendido com a atual namorada, com quem está junto há cerca de seis meses.
Lucas sofre por amor, mas essa não é sua principal preocupação no momento: ele e Tavares, os homens de frente do Fresno, lutam para desfazer a imagem de "juvenil" que há anos permanece atrelada ao nome, às ações e à música da banda. É uma guerra de muitas batalhas: eles precisam destruir a percepção de que a única opção para os jovens brasileiros "não alternativos" é o pop rock romântico de letras pouco elaboradas e guitarras suavizadas que passam fulminantes pelas rádios e rapidamente caem no esquecimento. Precisam também superar a imagem de banda de rock pré-fabricada, apenas uma entre tantas que atuam sob a tutela do produtor Rick Bonadio. Com Revanche, o quinto disco de estúdio (segundo com o respaldo de uma gravadora grande, a Universal), o quarteto gaúcho marcou território como um grupo amadurecido, porém amargurado com as confusões profissionais e decidido a confirmar uma identidade própria dentro do cada vez mais minguado cenário do rock nacional. E ainda devem brigar por popularidade entre os jovens que hoje, como define Tavares, "sonham em ser o Justin Bieber, em vez de sonhar em ser o Axl [Rose]".
"Dia desses", começa Lucas, "chegou um cara no supermercado perguntando se eu era irmão de um músico. Eu disse que sim. 'Legal a banda do seu irmão, como é o nome mesmo? Restart?'" Em tom de deboche, Lucas é taxativo: "Na cabeça do grosso da população, existe a 'banda Bonadio', uma grande banda de 50 pessoas". A confusão também não desperta bons sentimentos em Tavares. "Porra, eu não faço coraçãozinho [com as mãos], não mando beijo pra ninguém. No microfone, não chamo ninguém de meu amor. Vá se foder! Não sou do Restart: tenho 28 anos e sou grisalho!"
Não vem apenas da falta de conhecimento do público essa "crise de identidade": quando assinou contrato com Rick Bonadio para gravar o álbum Redenção, em 2008, o Fresno assumiu decisões que colaboraram para o crescimento do preconceito e ajudaram a marcar a fogo um rótulo que jamais vem desacompanhado de um sorriso irônico de seus detratores: o de "banda emo". Com Redenção, o grupo, que já tinha três outros álbuns na bagagem e uma sólida base de fãs no underground, se viu arremessado ao mainstream com três singles românticos consecutivos tocando em rádios - "Uma Música", "Alguém Que Te Faz Sorrir" e "Desde Quando Você Se Foi". Escapar da pecha de "apenas mais uma banda como as outras" começou para o quarteto como uma tarefa quase impossível. Mesmo que essas letras - de cunho sentimental e confessional, compostas pela mente ágil e inquieta de Lucas Silveira - fujam à rima fácil da média de artistas brasileiros, a banda que antes surfava o hype do mundo alternativo se viu alvo fatal do ódio dos roqueiros - talvez os mesmos de quem hoje o Fresno almeja respeito.
"Tem uma coisa que é normal: tu se impressionar com o sucesso que uma música pode fazer. E tu querer repetir aquilo", reflete Lucas, parecendo desconfortável na cadeira. "É a coisa do deslumbre. Tu acha aquele sucesso tão legal que esquece que talvez aquela música não tenha muito a ver, que aquele não era o single que tu queria. Um ano depois, vê o resultado e a galera no show reclamando que tem gente pulando. Teve um show em que gritei 'Vamo quebrar tudo!', e vi a cara [de reprovação] de uma menina na frente. Então vai se foder, vai pro fundo! Ou fica em casa!"
O Fresno (ou a Fresno, de acordo com seus próprios integrantes) nasceu em 1999, no grêmio estudantil do colégio particular Pastor Dohms, em Porto Alegre. Os então adolescentes Lucas Silveira e Vavo Mantovani (o guitarrista, integrante mais certinho do quarteto, uma espécie de enciclopédia humana da história do Fresno), ao lado de Pedro Cupertino (bateria), Bruno "Lezo" Teixeira (baixo) e Leandro Pereira (vocal) fizeram o primeiro show em um festival da escola, no início de 2000. A segunda apresentação veio menos de seis meses depois, no mesmo colégio, mas com o repertório de covers trocado por músicas próprias - compostas por Lucas, mas cantadas por Leandro, que mais tarde seria demitido da banda via internet. Até então o quinteto se chamava Democratas (a substituição ocorreu quando Vavo descobriu um grupo homônimo em uma busca pelas músicas de sua própria banda no Napster).
Na época ainda um território desconhecido para muitos, a web foi um diferencial na carreira do Fresno, que ficou conhecido por ser um dos mais bem-sucedidos exemplos da divulgação eficiente na era digital. Desde a gênese da banda, seus integrantes estabeleceram uma intensa frente de divulgação no mundo virtual: enquanto se comunicavam com artistas de outros estados, Lucas gravava versões de voz e violão das músicas e as divulgava com a ajuda de amigos. Assim, o Fresno foi lentamente se tornando conhecido além do circuito de Porto Alegre, tendo feito seu primeiro show fora da cidade em 2002. A passos calculados - pouco ou nada nessa trajetória pode ser chamado de golpe de sorte -, o grupo cativou um público fiel, muito antes de vender as 100 mil cópias de Redenção.
De 55 pagantes no primeiro show não escolar (em 2001, na casa noturna Garagem Hermética, em Porto Alegre) até apresentações em rodeios com 20 mil pagantes, muita coisa mudou na vida dos rapazes. Mas o fator definidor da banda pode ser considerado a entrada de Rodrigo Tavares, ainda que isso não seja assumido diretamente pelos integrantes.
"Imagino que pro Lucas e pro Vavo tenha sido um terremoto quando eu cheguei", analisa Tavares, "porque a postura [do grupo] era muito careta". Ele - um homem esguio e tatuado, com a barba por fazer e, apesar da aparência quase agressiva, com os olhos carismáticos de quem sabe convencer seu interlocutor, sem esforço - está à mesa de um bar na Vila Madalena, São Paulo, segurando um cigarro aceso, falando rápido e pelos cotovelos. "O Nick, técnico de som, que é o único da equipe que entrou antes mim, diz que antes não se podia fazer nada. No ônibus não se podia fumar, não se podia beber. Eu cheguei cheio de problema, cheio de remédio, cheio de maconha", ele diz. "Eu passava a imagem do louco, mas com o tempo isso foi se moldando, emparelhou à loucura de todos, com uma vantagem para o Vavo, que ainda é o mais santo." Assim como Lucas, que também tem os dois braços fechados por tatuagens, Tavares fala como se há tempos precisasse de alguém para escutá-lo. Em um país marcado por artistas politicamente corretos e calejados em orientações restritivas quanto à imprensa, o gaúcho de 28 anos não parece utilizar qualquer tipo de freio verbal. "Eu tinha 15 pra 16 anos e era junkie, terminei o primeiro grau no supletivo. Tomava qualquer coisa que me dessem", ele lembra, afirmando nunca ter experimentado cocaína - um amigo seu ("um ídolo") cometeu suicídio aos 21 anos, depois de se viciar na droga. É Tavares quem puxa o assunto das drogas para em seguida citar a falta de liberdade de expressão e se declarar veementemente a favor da legalização da maconha. "Se eu levantasse a bandeira da maconha no Brasil, estaria fodido, porque sou da Fresno. O [Marcelo] D2 pode, eu não posso. Mas eu queria muito levantar, se não fosse ser preso. Se não fosse por isso eu tava lá na [avenida] Paulista gritando, e foda-se todo mundo", ele proclama, em um só fôlego.
Tavares entrou para o Fresno em 2006, com a saída inesperada de Lezo, mas sua relação com os integrantes começou antes: foi ele quem produziu, no quarto de sua casa em Porto Alegre, os dois primeiros discos da banda (Quarto dos Livros, de 2003, e O Rio, a Cidade, a Árvore, de 2004). Se hoje não consegue ouvir esses álbuns (por causa da qualidade mambembe das obras, alega), na época Tavares chegou a se assustar com a "crueza" dos colegas. Escolado no hard rock, ele descreve o primeiro encontro com os rapazes, provenientes da cena hardcore, como "a coisa mais horrorosa que aconteceu na minha vida", exagera. "É até engraçado que agora eu esteja aqui e seja amigo de todo mundo, porque a primeira impressão foi: 'Eu quero morrer!' Era horrível".
Também foi a partir da chegada definitiva de Tavares que imagem passou a ser um conceito realmente importante para o Fresno. Até 2004, nem fotos de divulgação haviam sido feitas, muito pela ideia de que "o que importa é a música". Nascido em Camaquã (distante 127 km de Porto Alegre) e guitarrista por natureza - que só se viu disposto a tocar baixo quando foi convidado para se juntar ao Fresno -, Tavares entende que o rock e a transgressão visual sempre andaram juntos. "Sou muito ligado à imagem", ele diz. "Quando entrei na Fresno, eu tinha o objetivo de ser 'o' Tavares, 'o' baixista, e sabia como fazer isso. O Lucas também criou um lance muito forte. Acho que o encorajei a não ser tão normal." Essa identidade dita "anormal" - calças skinny justíssimas, camisetas com gola V que deixam à mostra tatuagens no peito, cortes de cabelo pouco convencionais - também trouxe um lado negativo. Lucas, principalmente, já se acostumou a ser hostilizado por onde passa. Em dado momento, enquanto caminhamos juntos pela avenida Paulista em um fim de tarde, ele me pergunta: "Você ouviu?" Próximos à estação Brigadeiro do metrô, alguns rapazes resmungavam xingamentos para ele de forma nada discreta. "O cara ali me chamou de viado. E fez questão de que eu ouvisse", Lucas indigna-se.
Ainda que Lucas e Tavares se destaquem no conjunto, Gustavo "Vavo" Mantovani e Rodrigo "Bell" Ruschell (baterista, que entrou na banda após a saída de Pedro Cupertino, convidado a se retirar do grupo em 2008 por, de acordo com os remanescentes, "não acompanhar a evolução técnica dos demais") se mostram essenciais à mensagem de unidade propagada pelo Fresno. Vavo, como administrador, é considerado o mais responsável dos quatro; Bell, o novato, que se considera um "nerd" quando o assunto é bateria, está sempre em busca de uma perfeição técnica.
A história de Vavo é a mais linear do quarteto: não houve grandes conflitos em sua adolescência, seus pais ainda são casados e ele estudou "90% da vida" escolar no mesmo colégio, tendo depois se formado em estatística. Namora há mais de um ano e é, como ele próprio se define, "o mais tranquilo", qualidade que é corroborada por seus companheiros de trabalho. De olhos azul-claros, expressão desligada e pinta de "genro dos sonhos", Vavo é também o mais comedido, o mais preocupado em não dar declarações definitivas: não afirma que Lucas é seu melhor amigo (ambos têm 27 anos e se conhecem desde a adolescência, sendo os dois únicos integrantes originais do Fresno), preferindo dizer que, para ele, "a definição de melhor amigo é um grupo de dez a 15 pessoas". Ao descrever um exemplo de briga na banda, relata coisas triviais ("Ô, Tavares, não precisa jogar um refrigerante cheio, sem tampa, virado no lixo!").
"Eu não consigo imaginar a gente brigando", diz Vavo sem levantar a voz, durante um jantar em uma churrascaria paulistana (ele nasceu em Porto Alegre). "Porque na música a gente é superlivre, um dá pitaco no que o outro toca. Todo mundo tem na cabeça que o objetivo final é a banda, as músicas."
Vavo é o único dos quatro que não mantém um projeto paralelo ao Fresno, enquanto Lucas toca o Beeshop (que lançou o disco The Rise and Fall of Beeshop no início de 2010), Tavares prepara um álbum sob o codinome Esteban e Bell intensifica os trabalhos com sua outra banda, a VInDA. Discreto, o guitarrista demonstra preocupações mais prosaicas, como a viagem para Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, para assistir aos jogos do Internacional-RS pelo campeonato mundial de clubes. Vavo também admite que é aquele que menos pode ser considerado um "músico nato": "Muita gente que toca melhor que eu não teve a oportunidade [de fazer sucesso]. E sei que uma vez que decidi que é isso que eu vou fazer na vida, tenho muito a melhorar". Ao mesmo tempo, sem a organização de Vavo, o Fresno poderia não estar na posição que está hoje. Ele é, provavelmente, o único dos quatro que pode se dar ao luxo de visitar a Ásia sem se preocupar com o cheque especial. Seu controle na vida pessoal se reflete, claro, em seu metodismo com a banda - é ele quem faz o papel de intermediador nos canais do grupo na internet e que, vez ou outra, retoma as conversas, a fim de manter suas respostas e a dos demais entrevistados em ordem cronológica. "O estilo Fresno foi o Lucas quem criou", define Tavares, "mas, se não fosse pelo Vavo, essa idéia já teria falido, porque ele administrou tudo".
O novato do grupo, Bell, 29 anos, quis tocar bateria desde cedo. Sua mãe, professora de história em uma escola de Porto Alegre, pediu ao professor de música que ensinasse o filho a tocar o instrumento. Após ganhar um concurso com uma banda, aos 15 anos, o rapaz porto-alegrense achou que havia garantido o futuro como músico: deixou de se interessar pelos estudos e repetiu de ano. Tempos depois, resolveu entrar para a faculdade de direito para seguir a profissão do pai. "Eu sempre tive uma família muito estruturada, um pai exemplar em casa. Era difícil eu mesmo me aceitar como músico, não ter uma 'profissão'", relembra, falando tranquilamente, como quem repassa mentalmente o discurso para não deixar passar nenhuma informação. Quando está junto de seus amigos sob a análise de um repórter, Bell quase não se pronuncia; no dia a dia, porém, é falante e brincalhão (no caminho de São Paulo para o show em Santos, por exemplo, ele é o único que não silencia no percurso, feito em uma van, com um DVD do Bon Jovi na TV). Durante a faculdade, Tavares o chamou para a banda Abril (que tinha o irmão de Bell, Airton, como baixista). Em 2008, quando os membros do Fresno o convidaram para morar em São Paulo, Bell estava fazendo seu trabalho de conclusão na faculdade - e só teve a coragem de largar tudo porque, após a separação de seus pais, em 2004, "não tinha mais a preocupação de agradar a ninguém". "A gente só cresce na crise", ele teoriza. "E quando tua família se desintegra, tu não tem mais que provar nada pra ninguém. Aí tu vai ser tu, né?"
A ligação entre Bell e Tavares vai além das bandas em que já estiveram e do nome que ambos carregam: ambos têm síndrome do pânico. Bell, que tem um filho de 1 ano e 7 meses (e um relacionamento à distância com a mãe do garoto), sofria com problemas inexplicáveis de estômago ("as dores de Kurt Cobain", ele ri), e, após a separação dos pais, passou a sentir tonturas e ter a sensação frequente de que iria morrer. Depois de descobrir a doença, começou a se medicar, mas sem sucesso. "Tomei cetamina e só piorou", ele conta, com um sentimento na voz que deixa a impressão de que não é, para ele, natural falar sobre o assunto. "Acordava no meio da noite achando que ia morrer. Passei pra fluoxetina, que era pior porque retardava a ejaculação, e isso para um homem vaidoso..."
Morando em São Paulo e recém-integrado ao Fresno, Bell, um rapaz bonito, de barba espessa e torso torneado pela musculação, foi o último a passar pela "fase do deslumbre" - da facilidade em se encontrar drogas na cidade grande, das festas constantes na casa onde os integrantes moraram juntos, na zona oeste (que ganhou o apelido de "Barão do Bacanal"), das intensas e constantes bebedeiras. Por causa da síndrome, ele diz não ter tido boas experiências com substâncias ilícitas, apesar de "ter experimentado drogas em geral". E foi no período do auge da farra que teve uma de suas piores crises. "Eu não tinha receita do remédio, que tomo até hoje, e não estava a fim de ir ao médico. Estava tão bem que resolvi parar. Até que veio uma crise forte. Foi a primeira vez que eu pensei em me matar. Não conscientemente, mas foi a primeira vez que quis morrer."
Com Tavares, as primeiras crises vieram em outra fase, a época "mais careta" de sua vida. "Eu estava indo pro cursinho pré-vestibular e me deu um piripaque", ele relata. "Comecei a ter vontade de vomitar, a tremer. Desci do ônibus e voltei pra casa. No dia seguinte, a mesma coisa." Se antes ele tomava remédios controlados apenas por diversão ("Só depois eu descobri que tomei quantidades de Rohypnol que podiam ter me feito morrer umas cinco vezes"), o músico passou a se medicar por necessidade. Também filho de pais separados, Tavares deixou sua "fase junkie", como ele a define, antes de atingir a maioridade, na época em que sua mãe o levou de Pelotas para Curitiba.
Hoje, a postura de bom moço parece ser essencial na manutenção de um nome no cenário do rock brasileiro. Os rapazes do Fresno admitem que se cansaram dessa regra e, indo além, não querem mais o compromisso do sucesso a qualquer custo. "Eu já ouvi que respeito não compra nada", diz Lucas, que, atualmente, rejeita tal afirmação. "A gente fez shows em rodeios e tal, mas, o legal mesmo, depois tu aprende, é aquele show só para mil fãs, ou 500. Tu deixa de se impressionar com a multidão."
No entanto, o começo de carreira em São Paulo não deixou de ser impressionante para os garotos recém-chegados do Rio Grande do Sul. De fãs acampados na frente de casa aos "churrascos de cueca" (onde todos, inclusive as meninas, deveriam trajar roupas íntimas, valendo o modelo samba-canção), passando pela presença constante na MTV, o quarteto sentiu o (raro) gosto do glamour de fazer parte de uma banda de sucesso. As gravadoras, que há poucos anos recebiam rios de dinheiro e abasteciam seus artistas como mães superprotetoras, atualmente fecham escritórios por falta de verba. Tudo está subvertido: artistas como o Fresno provavelmente não seriam nada sem o MP3, ao passo que, por causa da ilegalidade no processo de distribuição de músicas, deixaram de gozar as regalias antes inerentes à vida de uma banda de rock bem-sucedida. "Em 2007, a gente saía com R$ 10 de casa: R$ 5 pro metrô e R$ 5 pra tomar um bombeirinho na Augusta", recorda Vavo, referindo-se à bebida feita com pinga e groselha. Naquele mesmo ano, Tavares conseguiu um ingresso para assistir ao show de Roger Waters no Morumbi - mas teve de procurar alguém que lhe desse carona, por não ter dinheiro para pagar a passagem de ônibus. "Tu tinha o fanatismo em cima de ti, mas tua vida não condizia nem um pouco com aquilo", recorda Lucas, sobre o assédio que enfrentavam. Ainda que com o dinheiro escasso, ver a cara estampada na TV mexeu com o pensamento daqueles jovens do Sul. "Foi muito doido para a nossa cabeça", completa Tavares. "Por mais que tu ache que não, começa a se sentir um pouco importante - o que é um erro. Do tipo: 'Uau, tamo bombando, comendo atrizes do Rio de Janeiro, cerveja de graça, maconha de graça'. Só que aí estavam tocando no rádio as [nossas] músicas que a gente não gostava." Hoje, todos vivem de aluguel, mas separadamente; Lucas e Vavo sozinhos, enquanto Tavares divide as despesas com o produtor técnico do grupo e Bell com um dos integrantes da banda VInDA.
Por mais que eles próprios digam o contrário, a atenção - do público, da mídia, de desavisados em geral - pelo Fresno sempre passa primeiro por Lucas Silveira. Apelidado de "Paraíba" pelos amigos de infância, ele nasceu em Fortaleza (CE) em 1983, mas se mudou, aos 3 meses de idade, com mãe e dois irmãos, para Porto Alegre. Os pais, Nilo e Ione, se conheceram em uma Academia de Polícia, em Brasília. Nilo se mudou para Porto Alegre após a família, e, antes mesmo de Lucas chegar aos 3 anos, se separou de Ione, muito por causa dos problemas com o alcoolismo. "Eu não tenho memória de ele morando comigo, então não lembro bem dessa fase da bebida. Mas ele foi parar de beber mesmo lá pelos anos 2000", conta Lucas, que sempre manteve um bom relacionamento com o pai, que hoje mantém um bar - e segue sóbrio - na cidade litorânea de Mostardas (RS). Ao passar pelo tema desagradável, Lucas fica pensativo por alguns instantes, o olhar perdido na parede do escritório da assessoria de imprensa da banda. "Eu bebo, às vezes bastante. Mas, se fosse para eu ser alcoólatra, acho que já seria. Porque as coisas que minha mãe conta... é tipo impossível [pra mim], sabe?" Lucas incentivou o pai, que também é cantor nativista, a gravar um disco, previsto para o ano que vem e que deverá incluir uma música escrita em parceria pelos dois.
Força motriz por trás do repertório do Fresno, Lucas ainda sofre por amor e - ao menos em parte de suas músicas, para a alegria de seus críticos e detratores - assim deverá continuar. Homem com trejeitos de garoto, ele culpa a preguiça de outros compositores pela falta de apreço de uma parcela do público jovem por canções românticas. "Várias bandas queimaram o filme da canção de amor, mas existem as bonitas. 95% das músicas do mundo são assim, os Beatles são assim. E esse já é um discurso cansado. Então vão lá chamar o Roberto Carlos de emo", ele reclama, com um quê de impaciência. "Não é porque se convencionou que não é legal [falar de amor] que a gente vai parar."
Lucas aceita que em seu DNA há uma molécula romântica indissociável, mas ainda assim afirma desejar explorar novos caminhos. À época do processo criativo de Revanche (que vendeu, de acordo com a banda, por volta de 40 mil cópias desde julho), Lucas se esforçou para negar seu talento para os versos de amor, buscando inspiração em uma direção completamente oposta. Utilizando riffs escritos por Tavares para um projeto de heavy metal, o vocalista escolheu cantar apenas sobre o ódio - daqueles que o chamam de "viado" quando ele sai de casa ou daqueles que "vão apontar o dedo na tua cara pra te acusar", como ele descreve na faixa "A Minha História Não Acaba Aqui". E ódio também dele mesmo: afinal, nem Lucas, nem os outros integrantes da banda se eximem de certa culpa pelas escolhas das músicas de trabalho do disco anterior. "Pode ser que o cara que não gosta da Fresno tenha ouvido só as músicas que tocaram no rádio", assume Lucas, "e talvez ele nem tenha procurado ouvir as outras, porque eu mesmo não procuro ouvir uma banda se nem do single eu gostei". Ele completa, decidido, como quem dá um recado: "É isso que a gente está tentando corrigir, inclusive". O ímpeto do grupo em cravar, de uma vez por todas, pegadas no hall de bandas de rock, levou a um disco corajoso e carregado de guitarras, de rara maturidade em seu segmento, e equilibrado entre canções endereçadas a mulheres e cartas abertas a quem teima em julgá-los erroneamente.
É possível afirmar que acertar na mosca se tornou o projeto de carreira do Fresno a partir de 2010. Quando chegou ao estúdio com as faixas que se tornariam Revanche, o grupo tomou um banho de água fria. "O Rick [Bonadio] ouviu as músicas, e disse: 'Vocês podem gravar exatamente o que está aqui, mas têm que rezar pra que a crítica ame esse disco, porque o público não vai gostar'", conta Lucas. "Claro, depois a gente variou o repertório, mas este continua sendo um disco em que a tônica é porrada", acredita. E nem ele, nem Vavo, Bell ou Tavares descrevem como prejudicial essa característica mais "acessível" do trabalho de Bonadio, fundador do selo Arsenal e conhecido por assinar trabalhos de artistas de apelo popular, como NX Zero, Charlie Brown Jr. e Mamonas Assassinas. "Realmente", brinca Tavares, "a gente achava que o Rick ficava sentado num trono com fogo do lado dele, o Di [Ferrero, do NX Zero] numa gaiola o Badauí [COM 22] numa outra, e o Japinha [COM 22] sendo chicoteado. Mas não é nada disso".
"A gente reclama dos momentos de Redenção em que fomos mais pop, mas, se tivéssemos falado que não queríamos, então não teríamos sido mais pop", continua o baixista. "Acho que o Rick extrai o que pode de você. E aí tu tem um limite. Quem reclama dele não soube colocar limite, porque ele também aceita ouvir 'não'."
A postura de mudança, de investimento em uma nova imagem, é corajosa, mas o Fresno compreende que preconceito é algo difícil de se vencer. Tanto que, escalado para abrir os shows do Bon Jovi no Brasil, o grupo foi bombardeado com xingamentos e vaias durante as apresentações (atitude curiosa para o público de uma banda cujo compositor é um mestre na arte de embalar dores de cotovelo alheias). Porém, ainda assim, os quatro rapazes seguem fiéis à busca pessoal de crescimento, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos - e à nobre busca coletiva do fortalecimento das guitarras nas playlists dos iPods da juventude brasileira. A missão é árdua, mas eles não se mostram intimidados.
"Aproveitem que aqui tem espaço para fazer um bate-cabeça sério", Lucas ordena ao seu público, ao microfone, em certo momento de mais um show do Fresno. A frase que vem a seguir é definidora: "E jamais deixem falar qualquer coisa de vocês por ouvirem a nossa banda".