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A Guerra que fez o Rock

O conflito sangrento nas Ilhas Malvinas alterou para sempre a vida dos argentinos e, por consequência, transformou em definitivo a música de protesto do país

Edgardo Martolio Publicado em 11/05/2012, às 17h46 - Atualizado em 28/05/2012, às 12h31

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. - MONTAGEM SOBRE FOTO SHUTTERSTOCK
. - MONTAGEM SOBRE FOTO SHUTTERSTOCK

O rock argentino é grife, marca registrada. Nas pesquisas, os moradores de Buenos Aires aparecem no topo do mundo: são os fãs que mais gastam dinheiro – per capita – na compra de ingressos para shows (nacionais e estrangeiros) – mais do que, inclusive, os norte-americanos e os ingleses. Desde meados de 1960 até hoje, mais de mil bandas argentinas lançaram pelo menos um disco do gênero, sendo que várias delas colocaram no mercado mais de uma dúzia de LPs. O referencial grupo Virus gravou 14 discos entre 1981 e 2006. A pergunta é: por quê? Qual o motivo de o país que inventou o elegante tango e criou ícones como Carlos Gardel – e que a cada dia canta melhor, segundo eles – enlouquecer tanto assim por seu próprio rock?

Poderíamos nos perguntar, também, por qual razão o Brasil – possivelmente a nação mais musical do mundo, e que como bom país continental, dificulta a penetração da música “forasteira” – não tem uma cena roqueira tão popular e intensa? Respostas prováveis: até o fim do século 20, o Brasil olhou muito para o próprio umbigo. Consequentemente, foi bastante conservador e seu povo continua menos rebelde e irritado do que o argentino. Além disso, o Brasil tem riqueza rítmica regional suficiente para agradar a todos sem se prender a um único estilo, nem esperar as modas estrangeiras chegarem. E, por fim, o Brasil não disputou uma guerra contra os ingleses – como a que perdeu a Argentina em 1982, por causa das sempre polêmicas Ilhas Malvinas.

Só no site: o rock argentino pré-guerra.

O que teria a ver a Guerra das Malvinas – The Falklands War para os anglófilos – com o sucesso do rock naqueles pampas? Muito. Talvez tudo. O rock nacional encontrou na derrota seu grande momento de reafirmação e soube aproveitá-lo, ainda que um de seus ícones, León Gieco, declare que “o rock faz muito mais sentido nos Estados Unidos ou na Inglaterra do que na Argentina”. Mas também não nos esqueçamos de que, curiosamente e antes do conflito, o escritor Jorge Luis Borges já havia definido a pretensa “europeização” argentina desta forma: “O argentino é um italiano que fala espanhol, pensa em francês e gostaria de ser inglês”. Justamente inglês – tudo o que hoje não quer. E por que antes gostaria de ser inglês, e agora não mais?

Verão de 1982. o Brasil enterra um monstro sagrado: Elis Regina. A 2.100 quilômetros ao sul do Cemitério do Morumbi, o insone general argentino Leopoldo Fortunato Galtieri, dando continuidade à ditadura vigente na Argentina, acaba de assumir a presidência da nação vizinha. Entre uísques e maus informes, ele crê que poderia reconstruir a credibilidade dos militares na Casa Rosada – sede do governo argentino – se conseguisse recuperar a soberania das Ilhas Malvinas.

Solitário em sua residência, Galtieri inspira-se escutando a primeira das Sinfonias e Invenções de Johann Sebastian Bach na Rádio Nacional. Ele precisa inventar o futuro imediato. Uma ideia dá voltas em sua cabeça, e ele só espera que os Estados Unidos não se oponham a ela. O país está imerso em mais uma crise econômica e a imagem internacional é das piores. O número de desaparecidos cresceu demais, tornando difícil ocultar tantas mentiras. Já são quase 30 mil vítimas: o equivalente a toda a população de Búzios (RJ). “As Malvinas podem ajudar”, pensa o militar. Assim como os norte-americanos e os ingleses, Galtieri sabe que há petróleo na bacia malvinense de Sea Lion – o que ninguém sabe é quanto nem a qual profundidade.

Após Bach, a emissora homenageia Elis Regina. A inconfundível voz canta: “Não tenha medo não, tenha medo não, não tenha medo não... / Nada é pior do que tudo, nada é pior do que tudo / Nem um chão, nem um porão, nem uma prisão, nem uma solidão...” O general escuta, imóvel. Serve-se de mais uma dose de Chivas Regal 18 anos e, encorajado, diz para si mesmo: “Yo no tengo miedo, no!” Banhada a scotch, a música de Elis precipita a decisão: a Argentina irá lutar pelas Malvinas. Logo, sigilosamente, Galtieri dá o primeiro passo e chama seu invento de “Operação Rosário”. Ficção? Sim, mas a cena imaginada bem poderia ter sido realidade, sem muito esforço.


No dia 2 de abril de 1982, quando Buenos Aires amanheceu informada de que os soldados argentinos renderam as forças inglesas e recuperaram sem mortes o arquipélago das Malvinas, o povo transformou o ditador em um novo ídolo. Galtieri passou a ser mais aplaudido do que o artilheiro Mario Kempes na Copa de 1978 – foi como se, por um instante, o militar fosse um novo Perón. Milhares de portenhos encheram mais de uma vez a Plaza de Mayo, perante a histórica sacada da Casa Rosada para escutar o discurso falsamente triunfalista. Bandeirinhas “blanquicelestes” o cumprimentaram, vozes afônicas enalteceram seu nome e todos aplaudiram seus gestos altaneiros. O paroxismo nacional era tão chamativo quanto as poucas vezes vista união entre povo e governo militar.

A imprensa local, manipulada pelo regime, passou a contar uma guerra irreal. Até as fotos eram ilusão. O afundamento do Crucero General Belgrano no dia 2 de maio foi o ápice desse patriótico e pouco explicável momento. Fora da área de combate (um círculo de 200 km em torno das ilhas), o naufrágio matou 323 dos tripulantes – número que corresponde a mais da metade das vítimas do país em toda a guerra. Os argentinos uniam-se, raivosos, contra a Inglaterra.

Nascia mais do que uma rivalidade – era ódio em seu estado mais puro. A demagogia governante e a xenofobia popular se converteram em moedas cotidianas. Entre tantos absurdos, proibiu-se toda e qualquer expressão na língua de Shakespeare. Desde cartazes na via pública até a difusão de qualquer canção em idioma inglês nas emissoras de rádio e televisão. Irlandesa, australiana, norte-americana, a música cantada em inglês era diabólica. Também se proibiram os filmes britânicos nos cinemas, e a comunidade inglesa – que na época superava os 100 mil habitantes – viveu dias difíceis em Buenos Aires.

Enquanto Galtieri promovia o banimento da música anglófila das mídias sonoras, os programadores iam além e, por vontade própria, barravam praticamente todas as canções estrangeiras. Dentre elas, as de língua portuguesa foram as mais favorecidas, um pouco as italianas e quase nada as francesas. Noventa por cento dos espaços foram dedicados às letras em castelhano, com prioridade absoluta para as músicas nacionais. E assim o rock nativo começava a roubar a cena.

De um dia para outro, o crescimento do rock nacional foi notável. Olivia Newton-John, que era a voz do momento, parou de ser escutada, assim como o Bee Gees e o Queen. Era tudo o que qualquer artista local desejaria para decolar. Testemunha daqueles anos, Miguel Cantilo, famoso músico que viveu no exílio e é autor de Que Circo! Memória e Presente de Meio Século de Rock Argentino, diz não ter dúvidas de que a proibição de Galtieri, implantada pelo Comfer (Comitê Federal de Radiodifusão) “relançou” o rock no país. “Apesar de ter durado pouco esse banimento, foi um grande incentivo”, ele diz. “Porque quando as rádios não souberam o que tocar, elas descobriram que existiam discos nacionais.”

Quase um mês antes do final da guerra, 70 mil almas foram aos campos de hóquei e rúgbi do Clube Obras Sanitárias, no bairro de Belgrano, em Buenos Aires, para orgulhosamente tomar parte ativa do Festival de la Solidaridad Latino-Americana. Além de arrecadar doações de todo tipo para os combatentes nas ilhas, o evento pretendia festejar “a vitória conseguida até então” e agradecer o apoio dos cidadãos. Essa data – 16 de maio de 1982 – é a que, “roqueiramente” falando, dividiu as águas. O festival, aliado à proibição de divulgar música em língua inglesa nas emissoras, determinou o ponto de partida para o ressurgimento do rock argentino, que sobrevive com boa saúde até hoje. As letras do gênero se endureceram, passaram a ser mais irreverentes, contestadoras e bem-vindas. Todos as cantavam e as festejavam. A partir daí, pode ser explicada a paixão argentina pelo rock local.


Muitos artistas participaram daquele evento inesquecível por seu significado. Os militares já sabiam que estavam apanhando nas Malvinas, mas o povo não: o cidadão comum acreditava no oposto, que “a Argentina sempre ganha”. Os artistas tocaram por uma causa perdida e para um cúmplice maldito – algo muito louco, e por demais argentino. Até porque algumas bandas importantes não participaram, como a Virus, que teve um de seus integrantes desaparecido pelas mãos da ditadura. Outro detalhe foi que nenhuma das doações do público – que encheram 50 caminhões do exército – chegou aos soldados que defendiam as trincheiras úmidas e perdedoras nas ilhas (nem a correspondência chegava a eles). Artistas notáveis como Charly García, Nito Mestre, Spinetta, Rubén Rada, Pedro y Pablo, León Gieco, Litto Nebbia, David Lebón, Miguel Cantilo, Raúl Porchetto, Pappo, Tarragó Ros y Dulces 16 subiram ao palco do clube da Avenida Del Libertador, curiosamente vizinho da Escuela de Mecánica de la Armada (Esma), o maior centro carcerário clandestino da marinha na época da ditadura.

O Festival de la Solidaridad Latino-Americana só durou quatro horas e teve audiência recorde. Foi televisionado na íntegra e sem intervalos comerciais, e transmitido ao vivo por várias emissoras de rádio. A revista Pelo publicou uma edição especial que batizou de Mucho Rock por Algo de Paz. O tema “La Gente del Futuro”, interpretado por Cantilo/Durietz foi o mais cantado pelo público (“No sirve de nada / clavarse el puñal / llorando la carta / del tango fatal / Tenemos que hacernos / un mundo mejor / porque éste está enfermo / y nosotros, no”). Apesar de o festival pregar a paz – como ficou claro na música “Sólo le pido a Dios”, de León Gieco –, em 14 de junho, dia do fim da guerra, não houve dúvidas de que tudo havia sido mais um engano dos militares. Por um momento, os sons do rock argentino silenciaram o zumbido das munições inglesas.

Galtieri caiu logo, e a bandeira argentina deixou de flamejar no céu frio das Falklands, que também recuperaram seu nome inglês, para a alegria dos “kelpers” (gentílico dos moradores da ilha). O único a fazer uma autocrítica sobre o tema foi o roqueiro Luis Alberto Spinetta (que morreu em fevereiro deste ano, vítima de câncer). Os demais artistas começaram novas vidas profissionais, agora de sucesso. O rock argentino foi o que restou das Malvinas, e seus intérpretes assumiram o papel de porta-vozes de todos aqueles que tinham ficado calados durante os anos da ditadura. Naquele mesmo 1982, para alimentar espiritualmente a juventude após tanta insanidade, realizou-se a 4ª edição do Buenos Aires Rock – que havia sido interrompido pelo golpe de 1976 e hoje se chama Quilmes Rock Festival. Participaram os nomes de sempre e outros que não se apresentaram no Clube Obras Sanitárias, como Piero e La Torre.

Após a guerra, e enquanto estrelas como Mercedes Sosa continuavam retornando do exílio, surgiam novas bandas que marcaram época na Argentina, como Soda Stéreo (talvez a mais celebrada de todas). No rock, os argentinos encontraram uma lembrança de liberdade, um refúgio do passado, a mensagem de autoestima de que necessitavam. Era também uma voz para reclamar, o som da justiça, um canto à memória, uma esperança em seu labiríntico futuro e a expressão patriótica mais autêntica (lembrando que, desde 1986, o país nunca mais venceu uma Copa do Mundo de futebol).

Certamente, o rock argentino criou consciência social para a democracia, que viria logo na sequência, levando o radical Raúl Alfonsín à presidência da República, em 10 de dezembro de 1983. Enquanto isso, o povo se preparava para escutar seus roqueiros preferidos na rádio Rock & Pop (95.9 FM). Inaugurada em 1984, a emissora ainda mantém o sucesso, apesar das concorrentes que apareceram e do avanço da “cumbia villera” – gênero musical originário das favelas portenhas e principal rival do rock –, que impulsiona personagens como Carlitos Tevez, o atacante camisa 9 que jogou pelo Corinthians Paulista entre 2004 e 2006.

Diferentemente do argentino, o rock brasileiro não passou por uma guerra para se alimentar, crescer e engordar. Não precisou ser a voz de seu povo, mesmo que Renato Russo cantasse “somos os filhos da revolução”. Pois o Brasil continuou ganhando Copas do Mundo nos gramados e, além disso, perdeu talentos como Tim Maia, Cazuza e Cássia Eller e sofreu os recessos dos acidentes de Herbert Vianna e Marcelo Yuka, enquanto Roberto Carlos prossegue “parando na contramão” seu calhambeque dos anos 60.


o mesmo regime militar que asfixiava o rock argentino foi quem o reviveu, o consolidou e lhe deu asas para que voasse alto e longe até hoje, o que possivelmente não teria conseguido por impulso próprio. Outro paradoxo é que a virtude mais valorizada pelos argentinos em seu amado rock são as letras, pois eram nelas que morava o protesto, se transmitia a mensagem subliminar e o insulto disfarçado ao genocida do momento. Mas, salvo alguns poucos autores e compositores como Litto Nebbia (o mais culto de todos), Charly García (quando em estado sóbrio), León Gieco e Luis Alberto Spinetta (os mais testemunhais), quase todas as canções nasciam e nascem a partir da música, para só depois ser colocada a letra, como reconhece a maioria dos autores. É um processo tão contraditório quanto o país e, talvez por isso, o próprio Litto Nebbia tente esclarecê-lo em sua canção “La Nebbiera” quando diz: “Creo que mi canto lo explica / una nota es una lágrima / y la palabra, el pretexto / que la sostiene”.

A nação pagou um preço alto demais pela guerra, mas foi por ela que recuperou – mais uma vez – a democracia, que permanece estável até hoje. O rock não apenas teve sua parte nisso tudo, como se transformou num hino de mil letras e também na principal bandeira dessa democracia sempre em risco, sempre virulenta, tão argentina.

O amor do povo pelo rock não foi à primeira vista, mas o segredo desse casamento duradouro foi a Guerra das Malvinas. Todo o sentimento daquele conflito estéril finalmente se desenvolveu entre acordes que não querem morrer, de cidadãos que tentam renascer todos os dias. E como os portenhos não se lembram de ter estado na Plaza de Mayo naquele abril de 1982 para aplaudir o “conquistador” Galtieri, nem de ter pedido autógrafo a ele, não carregam culpa nenhuma por isso tudo. Nada tira o sono deles: basta que escutem um álbum de rock argentino para se autoconvencerem de que “yo no fui”.