Nas ruas e nos palcos da vida, Leandro Roque de Oliveira é EMICIDA, o rapper do bem a serviço das causas heróicas
Emicida se encontra sentado junto à mesa de som, ao lado do palco de uma casa noturna de São Paulo. A poucos metros de distância, o trio Macaco Bong promove sua mistura de hard rock e jazz instrumental no último volume. Convidado especial do grupo cuiabano, o rapper relaxa antes da apresentação, recebendo uma inesperada massagem nos ombros feita por uma fã. De olhos fechados, Emicida está imóvel. Parece estar em um mundo paralelo, como se descansasse um sono profundo. Zen, lembra um lutador que, minutos antes de subir ao ringue, repassa mentalmente cada golpe necessário para liquidar um combate por nocaute.
Quando toma o palco, no entanto, o semblante calmo some. Emicida domina o público e faz toda a apresentação anterior, cheia de distorção e virtuosismo, parecer pequena. À frente dos outros músicos, comanda o show com rimas incisivas e gestos amplos. Cada frase é como um jab curto que atinge lentamente a audiência, conquistando, aos poucos, mesmo o espectador mais reticente. De repente, o refrão balançante acerta como um gancho na boca do estômago. Assim como fazia para derrubar seus oponentes nas primeiras batalhas de MCs de que participou, Emicida utiliza raciocínio rápido e versos marcantes para angariar cada vez mais seguidores.
"Tem lugares em que eu vou tocar e as pessoas têm medo de vir falar comigo." Dias depois, Emicida está sentado na frente do computador, no Laboratório Fantasma, seu estúdio na Zona Norte da cidade, em um prédio de dois andares a três quadras do metrô Santana. A persona pública que Leandro Roque de Oliveira construiu é aquela que encarou a plateia do Studio SP - o "matador de MCs", que fez fama nas rinhas de freestyle em São Paulo e já vendeu mais de 20 mil cópias (segundo seus próprios cálculos) de suas duas mixtapes, Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro por Comida, Até que Eu Cheguei Longe... e Emicídio. Há cinco anos rimando, Emicida ganhou o rótulo de "maior promessa do novo rap nacional". Fora do palco, no entanto, não há resquícios da personalidade agressiva que o cantor exibe nos shows.
Por mais que negue o fato, Emicida passa por uma verdadeira transformação ao agarrar um microfone, quase como um dos heróis das histórias em quadrinhos de heróis mascarados que marcaram sua infância. Muito disso vem de sua preparação antes dos shows.
"Tem gente que tem dor de barriga, vomita", compara. "Pode parecer estranho, mas o que gosto mesmo de fazer antes do show é dormir, mano. Só não durmo quando não tem camarim", diz, rindo, quando menciono sobre a massagem que o presenciei receber. "Cada show é único. Quando subo no palco, olho no olho das pessoas para mostrar que sou igual a elas", ele teoriza sobre o método aprendido nas batalhas de freestyle. "Se você conseguir conectar todas as pessoas na mesma energia que você, aí é mó arregaço."
No entanto, a dualidade entre Leandro e Emicida não funciona como se um fosse o alter ego do outro. Ao observá-lo defendendo sua estratégia de marketing de guerrilha, é possível concluir que, se fosse um herói dos quadrinhos, ele seria algo próximo a um Wolverine, que exerce as funções heroicas sem necessariamente a obrigação de carregar uma identidade secreta. "O Wolverine é um maluco que tem uma opinião pessoal, porque ele vai enfrentar o vilão, mas quer que o vilão se foda", Emicida concorda, olhando nos olhos repetindo a fórmula de conexão executada nos shows. "Não é um bagulho de bem e mal. É tipo: 'Vamo pegar esse filho da puta que ele tá enchendo o saco'." Na vida, assim como no palco, Emicida parece ser guiado pelos instintos.
Com a mesma energia explosiva e sagacidade que aprendeu nas rinhas - e tão bem utiliza em cima do palco -, Emicida aproveita para ajudar a administrar a carreira. Foi assim que ele fez sua primeira mixtape, gravada de forma caseira e vendida a R$ 2, chegar a mais de dez mil cópias vendidas. "O grande barato do planejamento foi vender de mão em mão", ele explica.
Além disso, o rapper acredita que a conquista de seu espaço deva ser gradual. "Sempre achei zoado eu morar a uma hora do centro da cidade e lá ser o primeiro lugar que eu vá deixar CD. Tem que espalhar primeiro na minha rua, depois no meu bairro." Agora, com Emicídio, a meta é dobrar as vendas e o número de shows até o final do ano. A pretensão, no entanto, extrapola o médio prazo. "Sucesso pra mim é longevidade, mano", Emicida abaixa a voz, como que se preparasse para dizer algo muito importante. "Fama é mais descartável, tá ligada com a sua imagem. Eu quero ser lembrado pela música e a emoção que ela causa. Minha imagem nunca pode ser maior do que o que eu falo", reflete. "E sucesso é propagar essa emoção o maior tempo possível."
Leandro nasceu no bairro do Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo. Morando na periferia da capital, diz ter acompanhado de perto os problemas das classes mais baixas. "Teve dia de eu sair para a escola, abrir o portão da minha casa e ter um cara morto na porta", relembra, ressaltando que foi a imaginação fértil que permitiu que não se deixasse abalar. "Sempre vi as coisas de modo muito positivo. Minha imaginação me fez criar outro mundo, e é isso que eu quero que as pessoas sintam com a minha música", fala. "Eu não tinha brinquedo, então pegava os prendedores de roupa da minha mãe, grudava um no outro e aquilo eram os meus robôs."
Entre risadas, Leandro recorda o dia em que ele e o irmão mais novo, Evandro Fióti (hoje seu produtor), encontraram na rua uma tampa de vidro de fogão e um teclado de computador. Levaram os dois para casa e, juntando diversos fios, montaram um PC improvisado. "Aí peguei dois fios desencapados, coloquei na tomada e acabei com a luz do cortiço inteiro, tá ligado?", comenta, em gargalhadas tão altas que chegam a abafar o ruído proveniente do estúdio localizado acima do escritório.
O sorriso só sai de seu semblante ao falar da morte do pai, quando tinha 6 anos. Leandro desvia o olhar e encara o laptop fechado, remoendo as memórias do velório, em que, em vez de chorar, ficou brincando de carrinho com um primo embaixo do caixão. "Eu era muito pequeno, não entendi aquilo", diz. O impacto veio um ano depois, quando entrou na escola. "O primeiro Dia dos Pais foi um baque. Esse bagulho me jogou no chão, de ir pra casa, chorar e não querer voltar na escola, porque eu não tinha pai."
Órfão de pai e com a mãe, dona Jacira, trabalhando como empregada doméstica, o garoto começou a desbravar o mundo. Foi nessa época que chegou a pedir esmola na rua. "Eu e meus amigos tomamos um banho de chuva e ficamos sujos de lama", ele conta. "Descemos pra avenida, pedimos esmola e os caras deram. Fomos na padaria, pedimos comida e deram. Aí todo dia a gente fazia aquilo." As aventuras nas ruas renderam algumas surras da polícia. Com o mesmo grupo, também realizava pequenos roubos por diversão. Ele se lembra, no entanto, do exato momento em que decidiu parar de andar com essa turma. "Os moleques começaram a aparecer com cano", diz. "Aí eu já não achava certo, porque os caras começaram a roubar dinheiro, a ser preso. Até então era engraçado roubar um mercado, você entrava, colocava um pacote de bolacha embaixo da blusa e saía correndo. O cara te xingava e foda-se, você entrava de novo."
Leandro passou a se dedicar aos quadrinhos - tanto a ler quanto a desenhar suas próprias histórias. "Eu não saía de casa, não pegava mulher, só lia quadrinho. Os caras começaram a me chamar de nerd", ele sorri, com o par de óculos de aro grosso adornando o rosto. Criado por uma família de mulheres, Leandro demorou a começar a se relacionar com o sexo oposto. "As amigas da minha irmã me achavam bonitinho, o que é uma bosta. Você vira um ursinho de pelúcia. Elas não dão pra você, mas ficam te elogiando", diz, desviando mais uma vez o olhar para o computador. A convivência feminina, no entanto, parece ter aflorado em Emicida uma sensibilidade incomum para tratar sobre assuntos femininos, algo que fica claro em "Rua Augusta", música que fala sobre o cotidiano de prostitutas.
Leandro só foi começar a sair de casa aos 17, 18 anos, quando "as pessoas têm o desejo de se rebanhar, pertencer a um grupo". Adolescente, experimentou drogas, mas diz não ter carregado nenhum vício para a idade adulta. "Já bebi e já fiquei bêbado, mas tenho um trauma de bebida", ele franze a testa, os olhos na tela. "Meu pai faleceu numa briga porque estava bêbado. Meus tios, por cirrose. A bebida não me traz o mesmo barato que em outros."
Maconha admite já ter experimentado, porque "todo mundo tava fumando. Mas não bateu", afirma. "Sempre achei do caralho manter minha sanidade 100%, porque sóbrio eu sou mais doidão do que todo mundo." Tempos depois, começou a frequentar as batalhas de MCs - e a ganhar quase todas -, primeiro em São Paulo, depois no Rio de Janeiro. Só largou o emprego em um ateliê de artesanato quando percebeu que conseguiria viver apenas de fazer música.
São 14h30 de sexta-feira no laboratório Fantasma e Emicida, vestindo uma camiseta branca com uma estampa vermelha de São Jorge, cozinha arroz em uma das duas bocas de seu "fogãozinho de cadeia". "Hoje fiquei responsável pela refeição", diz, oferecendo um pouco de creme de avelã antes de guardar o pote no armário. "Engraçado, esses dias me encheram o saco no Twitter porque me viram no Pão de Açúcar comprando Nutella", ele fala, ironizando a patrulha que vem sofrendo dos fãs. "Agora não posso ir no Pão de Açúcar! É supermercado de playboy, né?"
O cardápio do almoço será definido de acordo com as compras trazidas por Kuririn, o mais jovem membro de uma equipe de dez pessoas que trabalham com Emicida. "O moleque não gosta de ir na escola, a gente precisa cuidar dessas alminhas sem luz", o rapper refere-se ao garoto, que chega com linguiça, milho, creme de leite, batata frita e alface - tudo em sacolas do Pão de Açúcar. "A Nike, que nos apoia, mandou os tênis da turnê americana customizados. Ele só vai pegar o dele depois que mostrar o boletim com todas as notas azuis." Emicida utilizava o mesmo expediente em uma oficina para jovens MCs que ministrava em um projeto social na Zona Norte. O projeto, no entanto, não foi adiante. "Era muito eleitoreiro", diz. Sem deixar o raciocínio ser interrompido enquanto corta cebolas, ele vislumbra um projeto só seu. "Meu barato é pegar a maldade que os caras têm na favela e transformar em coisa boa. Pegar a mesma sagacidade que os caras têm pra roubar e fazer eles construírem computador."
Outro desejo de Emicida é, conforme sua popularidade aumentar, convencer empresas a se instalarem nas periferias. "É o caminho. Aí as pessoas não precisam ir pro centro trabalhar e o dinheiro circula na quebrada." Mesmo com tantos planos, ele diz não alimentar ambições políticas. "Já me deram a ideia de eu me candidatar, mas não rola. Músico tem que fazer música", desconversa, juntando o milho e o creme de leite na mesma panela. "Os caras já me cobram como MC. Imagina se eu fosse vereador."
Aos 25 anos, Emicida mora desde os 20 com a namorada, Carolina, com quem tem uma filha de 1 ano e 6 meses, Estela. "Acho que saí muito cedo de casa, mas sabe como é mulher: mulher convence", diz, com o olhar perdido em um horizonte imaginário. "Mas também foi bom, porque além da responsabilidade que ganhei, a saudade só serviu pra unir mais eu, minha mãe e minhas irmãs." Outro motivo de orgulho é poder ajudar os membros da família. "Minha irmã vai precisar fazer uma cirurgia de R$ 4 mil. Não tem problema, a gente paga. O importante é ver todo mundo feliz."
Mais dias depois, no mesmo Laboratório Fantasma, Emicida está diante do computador, conectado ao Twitter e assistindo a vídeos de Mr. Catra no YouTube. Pela primeira vez em todos os encontros, parece abatido. Os últimos dias foram de trabalho puxado: ele e os companheiros passaram madrugadas traduzindo entrevistas e reportagens para um dossiê, com o objetivo de obter a liberação do visto de entrada nos Estados Unidos. Em dois dias, Emicida tinha show marcado no festival Coachella, na Califórnia (o visto acabou saindo; o show, para algumas dezenas de pessoas, aconteceu no primeiro dia do evento). A televisão ligada na MTV proporciona um breve momento de descanso: é a primeira vez que "Rua Augusta" chega ao topo da parada de clipes da emissora. Após a comemoração pelo feito, Emicida e Fióti retornam aos computadores para finalizar os detalhes da viagem.
Observo o rapper compenetrado em sua missão burocrática e recordo imediatamente de um diálogo que tivemos duas semanas antes. "Há três anos eu não sei o que é férias, ficar três dias sem trabalhar." "Mas como você se diverte então?", perguntei. "Aqui", apontou para a mesa do estúdio, cheia de papéis, moedas, laptop, iPod, celular e um aparelho de samplers. "Este é o meu playground."