O caos parecia completo para Janis Joplin, que procurava como podia surfar na crista de uma onda pra lá de esquisita. Até para uma das maiores beberronas do mundo do rock, a mistura descia indigesta: o sucesso súbito e arrebatador lotava a agenda de compromissos, responsabilidades e cobranças, e algumas críticas negativas apontavam defeitos que derrubavam a autoestima da menina que, para piorar um pouco, já andava caceteada pela rebordosa fantasmagórica dos excessos com heroína e álcool. Naquele início de 1970, a roqueira, ícone feminino da contracultura, só queria dar um tempo. Era hora de tirar férias e relaxar. A questão é que ela escolheu fazer isso no Brasil – primeiro aterrissou no Rio, depois deu uma esticadinha em Salvador e fechou o circuito na aldeia hippie baiana de Arembepe –, e durante um dos períodos mais agitados do país: o Carnaval. Não deu outra. Ela atolou o pé na jaca.
A passagem meteórica e mítica de Janis pelo Brasil aconteceu em uma das fases mais pesadas da ditadura militar. Ainda assim, a folia da roqueira teve de tudo. Apresentações improvisadas em botecos e até em um puteiro baiano, além de brigas, confusões, bebedeiras e sexo. A cantora norte-americana também experimentou encontros mais profundos, fez amizades e até viveu um grande amor – fato que colocou o país definitivamente na biografia dela.
Em livros e reportagens, pipocam histórias, fragmentos da viagem e até lendas absurdas, como a de que teve um filho na Bahia e de que transou com todos os hippies de Arembepe. “Tem muita mentira”, garante a empresária Judy Spencer, que ciceroneou a roqueira em solo baiano. As aventuras de Janis Joplin no país, citadas brevemente no documentário Janis: Little Girl Blue, de Amy J. Berg, em breve serão contadas novamente no cinema. Mas, desta vez, pelo olhar de diretores brasileiros e com riqueza de detalhes. A reportagem da Rolling Stone Brasil apurou pelo menos três filmes no forno.
Há quem defenda que só na Bahia a roqueira norte-americana – bem ao seu estilo, vale destacar – teve a paz que tanto procurava. As histórias correm soltas por lá até hoje. “Ouço falar de Janis Joplin aqui em Salvador desde que eu era bem pequeno”, conta o cineasta Henrique Dantas, que está produzindo dois filmes, um documentário e uma ficção, ambos chamados Summertime na Bahia, sobre a passagem de Janis por Salvador e Arembepe. Não é a primeira vez que o diretor baiano se debruça sobre a cena contracultural. É dele o documentário Filhos de João – Admirável Mundo Novo Baiano (de 2009), sobre os Novos Baianos. Dantas conta que teve acesso privilegiado às histórias. O tio dele, Luiz Henrique Dantas, que morreu há três anos, era amigo do artista plástico Lula Martins, que hospedou Janis na casa onde morava, que era uma espécie de comunidade hippie às margens da praia do Rio Vermelho. Ou seja, o parente do cineasta integrou o seleto e felizardo grupo que teve a rara e única oportunidade de conviver intimamente (leia-se dividindo muita birita e baseados) com uma das figuras mais intensas e viscerais do rock.
A ideia do baiano é contar como foram esses dias na casa do artista plástico, que hoje vive em Ibiza, na Espanha, a partir de entrevistas com todos que estiveram por lá. Ele já colheu vários depoimentos, mas o projeto tem ainda alguns obstáculos pela frente antes de ser concluído.
‘‘Não temos recursos, estou produzindo de maneira independente, e entrei em contato com as pessoas que detêm os direitos autorais de Janis Joplin para solicitar a autorização para utilizar imagens de arquivo e canções da cantora, mas eles se negaram a ceder, alegando que já estavam rodando um documentário (Janis: Little Girl Blue, 2015)”. Ainda assim, ele resolveu seguir pesquisando e filmando, e espera em breve conseguir as autorizações de que precisa.
O diretor conta que o nome das produções nasceu de uma das baladas mais icônicas de Janis na Bahia, o dia em que ela resolveu visitar um puteiro. “Ela estava com a turma do Lula Martins subindo pela Ladeira da Montanha, local historicamente ligado à prostituição, em Salvador, e ouviu uma guitarra em uma das boates. Não deu outra, pediu para entrar.”
Segundo Henrique Dantas, o local estava fechado para uma turma de marinheiros norte-americanos que tinha contratado uma banda local de rock para tocar naquela noite. Depois de alguns copos de cachaça, em um intervalo da música, Janis pegou o microfone e cantou o standard de jazz “Summertime” a capela. “Muita gente ficou impressionada e se emocionou, a banda retornou e ela emendou (desta vez com acompanhamento) mais duas canções, para delírio geral.”
No documentário, de viés mais experimental, as memórias de Janis em Salvador serão vividas por sósias da cantora, e a canção “Summertime”, que já é de domínio público, segundo o diretor, será reinterpretada por sete artistas convidadas.
Uma personagem central no filme de Henrique Dantas é Judy Spencer, filha de pai texano (como Janis), mãe baiana e primeira mulher a trabalhar com iluminação cênica no Brasil. Há tempos ela transita entre celebridades da música. Já empresariou e produziu shows de Rita Lee, Mutantes, Ângela Ro Ro, Pepeu Gomes e vários outros. Judy parecia predestinada a se tornar amiga de Janis Joplin. Em 1969, ela resolveu virar hippie e se mandou de Salvador para Provincetown, Massachusetts, considerada hoje uma das capitais da cultura gay nos Estados Unidos. Naquela época, a cidadezinha próxima a Woodstock era o paraíso dos bichos-grilos. Foi lá que Judy teve contato com o som de Janis. “Imediatamente enlouqueci, e jamais imaginaria encontrá-la, ainda mais em Salvador e na minha casa”, diz a empresária.
Foi exatamente o que aconteceu. De volta à capital da Bahia, em 1970, veio a ligação de um amigo dizendo que a cantora Janis Joplin estava na cidade e precisava da ajuda de alguém com inglês fluente. “Meia hora depois ela entrou na minha casa.” Chegou acompanhada do norte-americano David Niehaus, que conheceu no Rio.
“Ela procurava um lugar para ficar. Levei os dois ao Hotel da Bahia, um dos melhores da época, mas o problema é que eles tinham feito parte da viagem de moto, e haviam sofrido um acidente na estrada. Ela estava toda arrebentada e com uma roupa hippie horrorosa.”
Segundo Judy, quando o gerente viu o estado de Janis, disse que não a queria no hotel. Sem falar português, mas esperta como só ela, a roqueira percebeu o tom do homem e sacou US$ 150 mil dólares de uma mala. “I’m Janis Joplin, I’m a superstar” (“Sou Janis Joplin, uma grande estrela”), disse. “Depois fechou a mala e saímos.” Foi nesse momento que Judy, sem saber o que fazer, teve a ideia de levar a cantora para a casa de um amigo, o artista plástico Lula Martins.
O lugar estava caindo aos pedaços, mas lá Janis se sentiu confortável. “Éramos uma patota de hippies pseudointelectuais, a alta sociedade baiana nem olhava para a nossa cara”, diz Judy, contente de receber a reportagem em seu apartamento, no centro de São Paulo, para lembrar as histórias daquele verão. Em uma das várias fotos de autoria desconhecida que se espalharam na internet, a empresária baiana, na época bem jovem, aparece fumando maconha, com um sorriso largo, feliz da vida ao lado de Janis.
O momento mais sublime dessa semana, conta Judy, aconteceu em uma noite em que ela decidiu tomar com um amigo uma dose de LSD trazido dos Estados Unidos. “Estávamos enterrados na areia, viajando nas nuvens, quando Janis botou na vitrola I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama! e cantou o disco inteirinho para nós, na janela da casa. Fiquei extasiada.” A festa, segundo ela, rolou solta por vários dias. “Tomávamos tequila e cachaça de manhã, à tarde e à noite, e tirávamos fotos eróticas pela casa, fingindo ser prostitutas, brincando de suruba. Essas imagens, infelizmente, sumiram.” Judy também estava com Janis no famoso show no puteiro. “Foi uma noite maravilhosa, ela adorou as putas, cantou, tomou tequila, comeu caranguejo, siri, acarajé. Amou a comida baiana.”
A empresária também acompanhou Janis até Arembepe, onde começava a se formar uma comunidade hippie. “A Bahia estava no imaginário do mundo, todos queriam estar aqui. E apesar da repressão foi uma das épocas mais criativas que houve”, comenta Sérgio Siqueira, autor, em parceria com Luiz Afonso, de Anos 70 Bahia (Editora Corrupio), uma coletânea de histórias colhidas nas redes sociais. O livro conta com vários depoimentos de pessoas que estiveram com Janis na Bahia, e traz relatos da rápida passagem por Arembepe. Um desses relatos é de Rafael Sessenta, um dos anfitriões da norte-americana. “Estava descansando na rede quando ouvi um movimento na entrada, alguém falando com forte sotaque texano”, descreve sobre a chegada da roqueira, levada por Judy Spencer, ao lar dele. “Ela ficou dois dias na casa de um nativo doidão.” Finda a temporada em Arembepe, Janis decidiu que era hora de ir para casa. “Fiquei muito triste, percebi que nossa jornada estava acabando.” Segundo Judy, a roqueira chegou a convidá-la para morar com ela na Califórnia. “Depois de um beijo demorado, ela tirou do dedo um anel de ouro, do período vitoriano, me deu e se foi. Nunca mais nos vimos.” O anel presenteado pela cantora está com a empresária até hoje.
A viagem de Janis ao Brasil ficou mais conhecida pelos dias que ela passou no Rio de Janeiro, antes de ir para a Bahia. Em 6 de fevereiro de 1970, exatos 18 dias após completar 27 anos, e oito meses antes de morrer por overdose de heroína, em 4 de outubro do mesmo ano, a estrela hippie desembarcou no Aeroporto do Galeão, no Rio, com a amiga, a figurinista Linda Gravenites. Era sexta-feira de Carnaval.
A chegada de Janis ao Rio foi contada até em Copacabana Palace – Um Hotel e Sua História, do jornalista Ricardo Boechat. “Veio praticamente anônima e sem reserva”, informou o hotel por meio de sua assessoria. O Copa não confirmou, mas reza a lenda que a cantora foi expulsa de lá por nadar nua na piscina. Foi parar na casa do cineasta Ricky Ferreira, na época um fotógrafo freelancer de 22 anos. “Soube que ela estava no Copacabana Palace, corri para lá, mas quando cheguei ela e a amiga tinham acabado de ser expulsas.” Ferreira não titubeou, levou as meninas para seu pequeno apartamento no Leblon. Ele não se arrepende, mas admite que foi um inferno. “Ela brigava o tempo todo com Linda, que era tratada a pontapés, não aguentou e se mandou em dois dias.”
O cineasta carioca também pretende rodar um documentário sobre o período encachaçado que passou com Janis. “Logo cedo ela tomava uma garrafa de licor de ovos, aí emendava com o licor Fogo Paulista.” Ferreira relata que eles circularam pela Praia da Macumba, na zona oeste do Rio, sempre com a garrafa embaixo do braço, e por botecos da região. “Ela não curtia locais da moda, se sentia mal.”
Em casa, a loucura não parava. “Bebia e fumava o tempo todo, chegou a dormir com o cigarro na boca, botou fogo no colchão e quase incendiou o apartamento.” O fotógrafo diz que por essas e outras não houve qualquer “clima” entre eles. “Ela era muito esculhambada. Tinha momentos em que parecia uma garotinha meiga, mas de repente virava um motorista de caminhão.”
Ele foi mesmo para escanteio quando Janis encontrou David Niehaus na praia. “Oi, gracinha”, disse Janis ao rapaz, que acabava de retornar de uma longa viagem pelo rio Amazonas, segundo conta o livro Com Amor, Janis (editora Madras), escrito por Laura Joplin, irmã da cantora. “Em meio a um oceano de casos de uma noite só, ela iniciou uma verdadeira história de amor.” Dois dias depois de conhecer a cantora, Niehaus disse: “Você se parece com aquela cantora, a Janis Joplin”. Segundo Laura, isso fez a irmã se apaixonar ainda mais. Posteriormente, em uma entrevista à imprensa norte-americana, ela comentou a aventura no Brasil: “Éramos apenas dois beatniks de volta à estrada”.