A prisão de José Maria Marin serviu para jogar luz nas estruturas corrompidas do esporte mais amado do país. A nova CPI do Futebol pretende virar a partida
O cartão vermelho tem o poder de mudar uma partida de futebol. Por uma dessas contradições que às vezes marcam o jogo, porém, nem sempre o lado subtraído é o prejudicado pela decisão do juiz. É o que parece ter ocorrido no campo da interminável disputa de poderes que há décadas se arrasta, e que vale o futuro da maior paixão nacional. José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), foi expulso do time do status quo, mas as coisas parecem não ter de fato mudado de patamar.
Em março de 2012, Marin, então com 80 anos, assumiu o comando do órgão. Ricardo Teixeira havia acabado de renunciar ao cargo, após 23 anos. Marin tem história no esporte e na política: foi atleta do São Paulo no início dos anos 1950, governador do estado por dez meses, entre 1982 e 1983 (período em que substituiu o aliado Paulo Maluf), e
presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) de 1982 a 1988.
O veterano passou um tempo afastado dos holofotes, mas voltou a ser manchete no início de 2012, flagrado enquanto colocava no bolso, furtivamente, uma medalha destinada
a um jogador do time de base do Corinthians, que saiu vitorioso na final da Copa São Paulo de Juniores, no Estádio do Pacaembu. Foi defendido por Marco Polo Del Nero, padrinho dele na CBF e na época mandatário da FPF. Os dois viveriam uma intensa relação política nos meses seguintes.
Hoje, ambos estão separados pela Justiça. Del Nero já era presidente da CBF quando, em 27 de maio de 2015, Marin e outros seis cartolas estrangeiros foram surpreendidos
por agentes do FBI em Zurique, na Suíça, antes do início do congresso anual da Fifa. Eles foram citados em uma longa investigação que acusa dirigentes do alto escalão do
futebol mundial de terem participado de um escândalo de corrupção que envolveu US$ 150 milhões em crimes de fraude, suborno e lavagem de dinheiro, atraindo o faro implacável da Receita Federal dos Estados Unidos, cujos cofres também foram sangrados. Os desvios teriam ocorrido principalmente em negociações com empresas de marketing esportivo por meio da comercialização de direitos de mídia de torneios como a Copa do Mundo, a Copa Libertadores da América e a Copa do Brasil.
A investigação está longe de terminar, já deixou claro a Justiça norte-americana, fato que inquieta o poder do balípodo brasileiro. Ricardo Teixeira admite ser um dos “coconspiradores” citados ainda de forma anônima no processo do FBI. Outro citado seria Del Nero.
O mandatário da CBF deixou a Suíça imediatamente após a investida dos policiais em maio e, desde então, anda recluso e sequer acompanha a seleção pentacampeã em compromissos mundo afora. Ele já cogitaria se afastar do cargo, o que alçaria o vice-presidente, Delfim Peixoto – que há 29 anos comanda a Federação Catarinense de Futebol
–, ao topo. A possibilidade de mudança gera insatisfação para os apoiadores de Del Nero, que se mobilizam para impedir que ela ocorra. Indagado pela reportagem sobre esse e
outros assuntos, o atual chefão comunicou através de sua assessoria de imprensa que preferia não se pronunciar.
Deputado federal integrante da chamada “Bancada da Bola” (alinhada aos interesses da CBF), Vicente Cândido (PT-SP) é um dos nomes mais próximos de Del Nero a ainda se manifestar (os dois são, inclusive, sócios em um escritório de advocacia). Também ex-vice- presidente da FPF e atual diretor de Assuntos Internacionais da CBF, Cândido diz que recebeu “com indignação” a notícia da detenção de Marin, que permanece na Suíça enquanto tenta ser libertado ou ao menos impedir sua extradição para os Estados Unidos. “Tudo isso é muito ruim para o futebol e para as entidades em geral. Só que temos que dar um desconto para a disputa política nesse bojo todo – o factoide, a ‘espetacularização’ do caso, não ajuda”, afirma Cândido. “Certamente não haveria necessidade de se fazer aquilo à véspera de um congresso da Fifa. Mas o fato em si é grave."
Presença constante em eventos públicos ao lado da dupla Marin e Del Nero nos últimos anos, Cândido diz acreditar na postura administrativa de Del Nero, mas lava as mãos quanto às acusações feitas a ele no atual caso “Ele sempre foi muito zeloso com essas questões, então acredito na conduta dele. Só que na CBF não acompanhei. Evidente que eu temo [a prisão de Del Nero], mas não acompanhei o dia a dia dele nem do Marin no período em que eles estavam na CBF.”
Se na barra da tijuca, rio de janeiro, uma nuvem de incerteza paira sobre a sede da CBF, por outros cantos sopram ventos auspiciosos. Em 14 de julho, foi instalada pelo senado a CPI do Futebol, que já começa a convocar e ouvir os primeiros depoentes em Brasília.
“Estamos solicitando tanto aos Estados Unidos quanto à Suíça as informações e os depoimentos que dizem respeito a questões ligadas ao Brasil, à questão do José Maria Marin e se tem alguma coisa a mais sobre a CBF”, declara o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da CPI presidida pelo ex-atacante Romário, hoje senador pelo PSB- -RJ. “O Romário propôs que mandássemos três senadores ouvirem nesses dois países essas informações, mas a gente depende da agenda de lá e de autorizações do Ministério Público e da Justiça norte-americana e suíça.
O “Baixinho”, que em entrevista à edição de julho da Rolling Stone Brasil já havia chamado Del Nero de “safado, ladrão e ordinário”, prevendo em breve a prisão do dirigente, recebeu em
sessão no dia 18 de agosto os jornalistas José Cruz, Jamil Chade e Juca Kfouri. Crítico de longa data da gestão da CBF, Kfouri lembrou que, entre 1998 e 2000, outras duas CPIs sobre o assunto (a CPI da
Nike e outra também intitulada CPI do Futebol) foram abertas, sem resultados práticos. “Ricardo Teixeira foi indiciado 13 vezes em 2001. Durante 12 anos ele conseguiu por meio de chicanas e de coisas que a gente sabe que são comuns na Justiça brasileira ir arquivando um a um [os processos]”, disse o jornalista na capital federal.
“Cada CPI tem uma história e um encaminhamento diferente. Mas a CPI, na nossa visão, não deve servir só para investigar um caso de corrupção. Temos que dissecar a situação do futebol brasileiro, identificar todos os entraves, quais são as fontes de corrupção, para poder evitar que essas coisas continuem ocorrendo no futuro”, alega Romero Jucá.
Convidados a se manifestar no Senado, Del Nero, Teixeira e até os técnicos Luiz Felipe Scolari e Dunga podem ser intimados a comparecer caso não se apresentem de boa vontade, informa o relator. Romário já sugeriu que contratos de patrocínio, amistosos e fornecedores da CBF sejam analisados. Além disso, a procuradora-geral dos Estados Unidos, Loretta Lynch, cabeça da operação que colocou os dirigentes da Fifa na cadeia, também pode ser convidada a se manifestar em Brasília. Del Nero e o empresário Wagner Abrahão, sócio majoritário do Grupo Águia, responsável pelas viagens da seleção e das equipes das séries B e C do Campeonato Brasileiro, tiveram o sigilo fiscal e bancário quebrados.
Alexsandro de souza, o alex, ex-meio-campista da seleção brasileira e um dos fundadores do movimento Bom Senso F.C., que reúne jogadores em prol de mudanças a favor da classe no país, está desde dezembro de 2014 de chuteiras penduradas. Mas ele segue atento à mudança de rumos no futebol.
“Quando veio a notícia da prisão não só do Marin como de outros dirigentes, para a gente não surpreendeu, porque o ‘buxixo’ sempre existe, é normal. Mas entre ouvir e ficar comprovado é uma distância muito grande”, afirma Alex. “A questão também é o engessamento que existe dentro dessas instituições. Enquanto a CBF for tocada nesse regime de pouca entrada, sem democracia nenhuma, fica complicado imaginarmos alguma mudança efetiva.”
Criado em setembro de 2013, o Bom Senso chocou o submisso mundo dos gramados ao questionar o poder vigente com declarações fortes e manifestações orquestradas em campo, de faixas com mensagens de protesto a atletas sentados e de braços cruzados no meio de partidas. Parte da cartolagem nacional, alega Alex, se recusa a sequer dialogar com o movimento e o acusa de ser elitista e oportunista. O deputado Vicente Cândido acredita que “o Bom Senso muitas vezes foge ao bom senso”.
Eduardo Bandeira de Mello, presidente do Flamengo, é um dos administradores da nova safra do esporte no país que reconhecem a iniciativa dos jogadores como positiva. “Entendo o Bom Senso como uma ONG que existe para promover conceitos e tentar interferir nos rumos do futebol brasileiro, uma organização muitas vezes mal compreendida por algumas entidades”, declara. Bandeira de Mello e o Flamengo foram parceiros do Bom Senso na recente discussão da Medida Provisória 671, conhecida como MP do Futebol. Entre outras pautas, a MP propôs o controle financeiro sobre os clubes endividados, ponto primordial para os atletas, cansados de constantes atrasos salariais.
Sancionada em 5 de agosto pela presidente Dilma Rousseff, a lei permite aos clubes que aderirem ao Programa de Modernização do Futebol Brasileiro (Profut) mais condições de parcelamento de débitos, com a contrapartida de terem de apresentar Certidões Negativas de Débitos e poderem ser rebaixados a divisões inferiores em caso de irregularidades.
As agremiações deverão limitar 80% da receita bruta com gastos com o futebol profissional; terão de reduzir o déficit financeiro para até 10% da renda até janeiro de 2017 e 5% até janeiro de 2019 e, em 2016, deverão fazer investimentos mínimos em equipes femininas e na formação de jovens atletas.
“A MP é a salvação do futebol? Não é, provavelmente ainda haverá muitos ajustes. Mas é uma entrada para a salvação caso a gente consiga fazer com que a execução seja boa”, Alex opina. “O principal para mim é a responsabilização do dirigente – se olharmos ao longo da história do futebol brasileiro, tudo era jogado para a diretoria seguinte. Antecipa uma verba de TV aqui, contrata irresponsavelmente
um atleta que vá custar um dinheiro a mais e a próxima diretoria que pague. Essa irresponsabilidade fez com que os clubes tivessem uma dívida tão grande hoje.”
Outra mudança que poderia ter sido incluída na MP, mas acabou sendo barrada por pressão da CBF, é a transformação da entidade que controla o jogo no país em patrimônio cultural nacional, tornando-a estatal. Para Alex, “a CBF se diz privada em muitas situações nas quais ela realmente é, mas ao mesmo tempo usurpa o poder público”. À CPI do Futebol, o jornalista Juca Kfouri afirmou que ao manter-se como empresa privada, a dona da seleção brasileira evita investigações do Ministério Público.
Vicente Cândido, que questiona a ideia dessa estatização, garante que a própria CBF já se mobiliza para pôr em prática iniciativas que modernizem o esporte. “Tem várias medidas em curso, de governança, de revisão de contratos, auditoria interna e externa. Mas tem que haver mudança de postura no país como um todo”, ele afirma, dando a entender que a corrupção é algo intrínseco à sociedade brasileira.
Ex-executivo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Eduardo Bandeira de Mello assumiu o Flamengo em 2013, apoiado por um grupo composto de profissionais alheios à prática da governança no futebol. Com o olho de quem chegou há pouco nesse caldeirão de paixões e interesses, ele acredita que as coisas estão melhorando.
“Como viemos da vida empresarial, de governo, bancos, empresas, indústrias, a gente está acostumado às práticas desse tipo de atividade. O que fizemos foi transpor [para a direção do clube] princípios
e valores com os quais estávamos habituados. Isso pode até ter gerado um sentimento de espanto, mas acho que não somos exceção dentro do futebol. Acredito que existem pessoas sérias, e com o tempo
e até com a aprovação da MP 671 acho que esse tipo de postura vai ser quase que obrigatória. Então, podemos esperar uma mudança das práticas nocivas que ainda existem dentro do futebol.”
“Tem que reformar a Lei Pelé [Lei do Passe Livre], precisamos de uma lei geral do futebol, ver toda a questão trabalhista ligada a esse mundo, à ação dos empresários, incentivar investimentos na base”, diz o líder rubro-negro. “O buraco em que os clubes estavam se metendo era resultado de gestão temerária e de processos de sonegação, de apropriação indébita e de irresponsabilidades. A tendência é que os dirigentes percebam que o único caminho a se guiar é o da honestidade e da transparência.”
Dentro do Campo
Depois dos recentes fracassos da seleção, qualidade do esporte segue em xeque
A crença na seleção brasileira após o desastre na Copa do Mundo, em 2014, ainda não foi restaurada: em junho, a equipe foi eliminada pelo Paraguai nas quartas de final da Copa América do Chile, nos pênaltis. Foi na mesma fase, contra o mesmo adversário e em condições iguais às da derrota ocorrida na edição anterior do torneio, em 2011, na Argentina. No Campeonato Brasileiro, as crescentes médias de público nos estádios são um indicador positivo, mas a qualidade do jogo ainda é questionável. “Tem que separar: futebol brasileiro é uma coisa e seleção é outra”, opina Alex, ex-meio-campista
do Palmeiras. “Os jogadores que o Dunga leva para a seleção são bons, reconhecidos em seus clubes, inclusive na Europa. A geração não é ruim. Já o futebol brasileiro merece uma discussão mais profunda. Aí a gente entra em valores recebidos pelos clubes pela transmissão de jogos na TV, um calendário mais adequado. São vários tópicos para discutir, porque o país está muito atrasado.”