Unicórnios, sonhos sexuais e a revolução dos estranhos: por dentro do mundo irreal de Lady Gaga
Em uma sala de controle escura e sem ar de um estúdio, em um prédio de escritórios no centro de Manhattan, Lady Gaga está segurando um unicórnio de brinquedo e falando sobre Rocky IV. Está a oito horas de finalizar os vocais de seu terceiro álbum, Born This Way, que deveria ser lançado em menos de um mês. No entanto, mesmo com os prazos finais se aproximando ("logo" é o que se diz, apreensivamente, sobre a versão final do disco), mesmo na luz fraca dos monitores dos computadores, mesmo quando toma Coca Zero na lata com um canudo dobrável, ela está resplandecente em sua gagaíce: o cabelo loiro alongado está preso em dois rabos de cavalo, levantando-se como o chifre de seu unicórnio; a franja é de um negro contrastante; a maquiagem dramática de olhos de gato ultrapassa as bordas das pestanas. Está usando meia-calça com um pequeno rasgo na coxa esquerda, sutiã, "botas de stripper" com cano até o joelho e uma jaqueta jeans incrivelmente grande com a arte de cruz e coração da capa de seu single atual, "Judas", pintada nela - presente de um fã. Há alguns instantes, estava usando uma boina, que a fez parecer um anjo da guarda fashionista.
"Sempre que fico triste, penso nos monstrinhos e faço assim", geme Gaga, fazendo o minúsculo chifre do unicórnio se acender. "Lute, pequeno pônei, lute!" Seus admiradores se auto intitulam "little monsters" (monstrinhos); nas cartas quase sempre tristes que mandam para o palco, eles a chamam de Mãe Monstro. Nos três anos de fama, Gaga arrecadou 34 milhões de amigos no Facebook e um bilhão de cliques no YouTube; adolescentes modernos na China expressam surpresa dizendo: "Ai, minha Lady Gaga". Ela fez do pop sua imagem, dizendo para os jovens que era ok eles serem gay, esquisitos ou nada populares, porque nasceram assim: uma mensagem que andava ausente das paradas desde quando o conceito "desleixado-chique" do rock alternativo reinou, nos anos 90. Gaga pode, às vezes, utilizar a música e a iconografia de seus heróis com certa intensidade, mas sua influência sobre as próprias colegas é ainda mais óbvia: Miley Cyrus e Christina Aguilera praticamente destruíram suas carreiras tentando copiá-la, Rihanna e Katy Perry estão cada vez mais estranhas (assista ao vídeo "E.T.", de Katy), e Ke$ha tem até permissão para ser famosa.
Isso sem falar das agora inescapáveis batidas dance 4/4 que Gaga reintroduziu nas rádios populares - um som que ela está tentando reinventar. "Afaste-se da fórmula!", ela prega, dizendo que encheu o novo álbum com sua paixão por rock clássico. "Se conseguir colocar aqueles refrãos épicos na pista de dança, para mim, isso seria o triunfo do disco."
Só que Gaga ainda se sente o azarão - por isso, está assistindo aos filmes da série Rocky. O personagem-título é muito parecido com ela (se você desconsiderar o vestido de carne, o ovo gigante e os mais de dez singles de sucesso): pequeno, determinado, ítalo-americano, sempre competindo com espécimes de físico mais impecável. Na noite passada, ela assistiu ao quarto filme pela primeira vez, chorando quando Rocky triunfou sobre o vilão soviético Ivan Drago. "Minha parte preferida", ela conta com entusiasmo, "é quando o ex-treinador do Apollo diz ao Rocky: 'Ele não é uma máquina, é um homem. Machuque-o e, quando ele sentir o próprio sangue, terá medo de você'." (Na verdade ela inventou pelo menos metade dessa citação, mas não importa.)
"Sei que parece louco, mas estava pensando na máquina da indústria musical", continua. "Comecei a pensar em como tenho de fazer a indústria sangrar para lembrá-la de que é humana, não uma máquina. Fiquei dizendo para mim mesma hoje: 'Sem dor, sem dor, não sinto nada'." Dá um soco no ar. "Gancho direito, gancho esquerdo. Já passei por coisas tão piores na minha vida antes de virar cantora pop que consigo não sentir dor na jornada da luta pelo topo." Ela faz uma pausa e cita AC/DC: "'É um longo caminho até o topo se você quer tocar rock'. É verdade! Mas, no fim das contas, tudo tem coração, tem alma - às vezes nos esquecemos disso". Ela aperta o unicórnio - Gagacorn é o nome dele - e o faz acender de novo. "Só homens colocariam o símbolo mais fálico em uma criatura mítica que tem o objetivo de reacender a alegria de toda garotinha", diz. Lady Gaga fez 25 anos em março, mas frequentemente parece muito mais velha ou nova. Quando está trabalhando, é o adulto mais sério no ambiente, inquestionavelmente o Monstro no Comando. Em momentos mais vulneráveis, parece estar agradavelmente presa nos 19 anos, idade na qual abandonou a vida normal e largou a faculdade para se tornar uma superestrela: "Mal posso esperar o meu disco sair para que todos possamos encher a cara e ir comprá-lo", afirma.
Mesmo quando fala, a cantora está trabalhando mentalmente em harmonias vocais para a música na qual trabalha no momento, uma faixa pulsante, oitentista e electro-rock chamada "Electric Chapel". Sem fanfarra ou aquecimento, leva a cadeira até um microfone no canto, coloca os fones de ouvido e começa a cantar uma série infinita de variações do refrão. "É meio Duran Duran, não?", pergunta depois de uma tomada. "Duran Duran é minha principal inspiração para harmonia - todos os sinais apontam para Duran Duran." Então, ela tenta novamente com um tom sexy, emulando o timbre de Cher. "Gosto mais desta, é mais Billy Idol." Há alguns minutos, ela perguntou se a equalização de um verso havia sido alterada. Havia, e eles voltaram à posição anterior. Consultando uma lista ampla de tarefas que escreveu em um caderno, Gaga volta sua atenção à colocação de um dos principais ganchos da música, em que ruge um "meet me, meet me" em estilo blues sobre tambores batendo - essa parte deveria vir antes? Eles mexem nela, e Gaga curte o resultado. "Agora parece mais um rock dos anos 70. É Janis Joplin para a noite inteira."
"Não, é Lady Gaga", diz um dos produtores, Paul Blair, também conhecido como DJ White Shadow, um cara magricela de Chicago vestido com um moletom com capuz.
"Eu sei", ela responde. "Mas não posso fazer referência a mim mesma. Ainda não."
Gaga começa a relembrar o encontro com várias princesas da Disney durante uma parada da turnê em Orlando. "Tive uma reação visceral de fã quando as vi, muito parecida com a que tive quando vi o Kiss pela primeira vez", ela conta, rindo (alguns momentos R&B-pop retrô de Born This Way foram inspirados, surpreendentemente, pela cover de "Then She Kissed Me", originalmente tocada pelo grupo The Crystals e regravada pelo Kiss em 1977). "Uma princesa da Disney tem a mesma qualidade emocional para mim de uma lenda do rock. O que é tão mágico em uma banda como o Kiss ou alguém como o Elton John é sua aparência de outro mundo. Quando vi o Kiss, todos poderiam ter flutuado do chão e eu não teria ficado surpresa. Em um show do Kiss, Paul Stanley voa pelo estádio e é estranhamente normal. É simplesmente: 'Mas é claro'. Quero fazer isso, mas não quero que seja em um momento do palco, preciso recriar isso em uma situação cotidiana. Preciso estar no supermercado e voar. Isso precisa acontecer! Sou apaixonada por teatralidade - o que você quer de mim?"
O que os produtores e o engenheiro realmente querem é uma pausa. Não dormem há dias, e isso depois de viajar pelo mundo durante um ano com Gaga, tentando terminar o novo álbum no meio de uma turnê de mais de 200 datas. Ela tem orgulho do fato de ser mais difícil de trabalhar com ela do que com uma cantora típica. "Sou uma artista verdadeira e me envolvo muito", afirma. "Normalmente, o artista vem, grava um vocal e sai. E aí esses caras fazem o que precisam fazer e enviam de volta."
"Não estávamos acostumados a ter uma artista tão controladora", diz o produtor Fernando Garibay - baixinho e discreto, também usando moletom com capuz. "Não faz parte da nossa vida, nesta geração de produtores, ter uma artista que chega e sabe exatamente o que quer."
"Não sei se posso falar por todos", afirma Blair. "Mas não há outro artista no mundo pelo qual eu me esforçaria tanto."
"Cof-Britney-Cof ", diz o engenheiro Dave Russell, um atarracado inglês usando boné de tricô, cobrindo a boca com a mão, dando a dica discretamente. Gaga lhe dá um soco leve, nada Rocky. Lute, pequeno pônei.
Lady gaga tem uma fortaleza da solidão montada nos bastidores de cada parada de sua turnê Monster Ball - um santuário acortinado e iluminado por velas. Dois dias antes, em um estádio em Nashville, ela se encolheu em um sofá naquela sala, sob imagens de seus heróis: Jimmy Page, Debbie Harry, Sex Pistols, John Lennon e Ramones, mais um trítico de Elvis Presley por Andy Warhol, que tem finalidade dupla. Também há uma pequena foto emoldurada de Gaga com Elton John, que se tornou tão amigo dela a ponto de convidá-la a apadrinhar o filho dele ("É um trabalho imenso a cumprir", ela conta). Hoje, está usando as mesmas botas Penthouse de US$ 30 e uma jaqueta de motociclista de couro sobre outra combinação de meia-calça com sutiã; está tomando café em uma caneca decorada com a versão de Alice no País das Maravilhas da Disney, que faz questão de exibir - ela caiu no buraco do coelho há muito tempo e não tem intenção de sair.
Por que as fotos de ícones do rock? "Simplesmente gosto de manter por perto pessoas que me lembram do que acho que será, essencialmente, parte do meu legado maior", afirma, "em vez de me comprometer com uma tendência ou uma ideia do que o público percebe como sendo minha música, minha arte ou minha personalidade. Isso faz com que eu me lembre de ser eu mesma". Quando Gaga entra em modo entrevista, sua sintaxe se torna conscientemente formal e ela se senta mais ereta - esta é uma nova mudança, uma coisa de Mãe Monstro, que ainda não estava exatamente lá quando passamos um tempo juntos, há dois anos.
Na última vez em que nos vimos, em maio de 2009, Gaga ainda não fazia turnês sozinha - muito menos em estádios, como agora - e só ofereceu uma vaga ideia do que se tornou seu segundo lançamento, The Fame Monster ("É inspirada pelos monstros", contou. "Assisto a filmes de monstros quando fico sozinha"). Ela se sentia mal compreendida - mais ainda do que agora. "Você se lembra, quando te conheci, era uma época completamente diferente na minha carreira", diz. "Ser eu mesma em público era muito difícil. Eu estava sendo cutucada e testada, e as pessoas até me tocavam, encostavam em minhas roupas e diziam: 'Que diabos é isso?' Era horrível, como se eu estivesse sofrendo bullying de amantes da música, porque eles não conseguiam acreditar que eu era legítima. Era diferente demais ou excêntrica demais para ser considerada sincera."
O que mudou em Gaga é uma recém-descoberta noção de missão, aliada com uma conexão simbiótica, quase inquietantemente intensa, com seus fãs. "Temos um cordão umbilical que não quero cortar jamais", diz. "Não acho que eles me suguem. Seria maldoso dizer: 'No próximo mês, vou me afastar dos meus fãs para poder ser uma pessoa'. O que isso significa? Eles são parte da minha pessoa, são muito da minha pessoa. São pelo menos 50 por cento, se não mais."
Ela terceirizou seu guarda-roupa fora do palco, na maior parte do tempo usando roupas que os fãs lhe dão; decora o camarim com as obras de arte que ganha de presente (há um desfile infinito de unicórnios desde que fãs descobriram uma faixa de Born This Way chamada "Highway Unicorn (Road to Love)" - um unicórnio branco no camarim tem um coração espetado com as palavras "Você mudou minha vida para sempre"). Quando pergunto se ela recentemente leu algo que a inspirou, menciona apenas as cartas de fãs: "Há todos os tipos de histórias, de vivências, de trajetórias", diz. (Uma olhada não autorizada em uma carta aleatória de um garoto de 15 anos, escrita a mão de forma comoventemente organizada em um caderno escolar: "Sou um monstrinho extremamente devotado, e serei um monstrinho a vida inteira... Em todo show você diz que quer nos libertar, e é isso o que fez. Suas músicas me ensinaram a não ouvir os detratores e ser quem sou porque, querida, eu nasci assim!")
Gaga realmente acredita que renasceu como a Mãe Monstro - daí o ovo gigante no qual chegou ao Grammy, emergindo apenas para a apresentação (E se tivesse de ir ao banheiro? "Não vou. Não tenho órgãos de excreção, nasci sem eles", diz empertigada, mal contendo uma risada). "Na verdade me tornei uma artista melhor graças aos meus fãs", afirma. "A turnê Monster Ball tem sido um dos momentos mais cruciais da minha vida, em que percebi que meu propósito na Terra é muito maior do que compor sucessos. Há algo em meu relacionamento com os fãs que é puro e genuíno. Durante o show, digo: 'Não dublo e nunca farei isso, porque é na minha autenticidade que vocês conseguem conhecer a sinceridade do meu amor por vocês. Amo tanto vocês que transpiro sangue e lágrimas no espelho todo dia, dançando, compondo, para ser melhor para que vocês sejam líderes, sejam fortes e corajosos, não seguidores'."
"Alguém me disse: 'Se você tem potencial revolucionário, então tem um imperativo moral de fazer do mundo um lugar melhor'. E meus fãs são a revolução. Eles são a prova viva de que você não tem de se conformar a nada para mudar o mundo." Ela não pisca muito durante esse monólogo, e seus olhos assumem um brilho messiânico sob os extravagantes cílios postiços. De repente me ocorre: será que ela faz alguma coisa humana atualmente, tipo comer e dormir? "Não", responde, orgulhosa. "Só música e café."
Agora ela também vê de forma diferente seus dias pré-Gaga, quando era Stefani Germanotta, garota que frequentava a escola católica feminina Convent of the Sacred Heart, na região do Upper East Side, em Nova York. "Só quando mostrei minha música para o mundo é que consegui olhar para dentro de mim", afirma, "e honrar meu desajuste e homenagear a realidade de como fui tratada quando era criança, não pela minha família, mas por colegas da escola, e como isso me afetou."
Seu tom de voz suaviza. Ela pisca. Não está sendo entrevistada, só está falando. "Ser provocada por ser feia, ter nariz grande, ser irritante, sabe?" Aperta os olhos e imita a voz de garotas malvadas de muito tempo atrás: "'Sua risada é engraçada, você é estranha. Por que você sempre canta? Por que gosta tanto de teatro? Por que usa maquiagem assim? Qual é o problema da sua sobrancelha?' Eu fazia umas sobrancelhas enormes, como as da Evita. Costumava fazer autobronzeamento e tinha um bronzeado muito intenso na escola, e as pessoas perguntavam: 'Por que diabos você é tão laranja e seu cabelo é assim? Você é sapatão? Por que tem de ir assim à escola?' Era chamada de puta, disso, daquilo. Tinha dias que eu nem queria ir à escola".
Gaga está ciente de que repórteres encontraram ex-colegas de escola que disseram que Stefani, na verdade, era popular. "Vi todas essas citações", diz. "E todas essas pessoas faziam bullying! Talvez seja a forma de elas tentarem se redimir." Ela está convencida de que o bullying a levou a relacionamentos emocionalmente abusivos quando era mais nova, e levou ao que descreveu como um período de mergulho na cocaína depois que abandonou a universidade e se mudou para o Lower East Side. "Era algo tão doloroso", conta. "Essa ferida enorme estava dentro de mim havia tanto tempo que eu tinha me enterrado em drogas, álcool e homens mais velhos em um ciclo de infelicidade comigo mesma, olhando para fora para consertar, aliviar isso tudo. Meus fãs me forçaram a reagir a isso."
Horas mais tarde, depois do show, há uma advertência de tornado em Nashville, mas o avião particular de Gaga vai decolar de qualquer maneira. A tripulação está apreensiva e ninguém acha engraçado o fato de a maquiadora da artista estar usando uma camiseta de Stevie Ray Vaughan (morto em um acidente de helicóptero). Mas enquanto se encaminha para o aeroporto, Gaga está serena, fazendo piadas com O Mágico de Oz: "Nova York", suspira, ainda suja de sangue cênico sob a jaqueta de couro. "Não há lugar como nossa casa." O cosmos, acredita, simplesmente não permitirá um acidente de avião. "Tenho coisas demais em jogo", diz, de volta ao modo messias. "Deus quer que Born This Way saia - o avião vai direto para Nova York." Não consigo deixar de observar que, mesmo se o avião caísse, o álbum sairia. Ela concorda e ri, sem medo.
O tempo continua passando no estúdio em Nova York, mas Lady Gaga tem outra ideia oitentista para "Electric Chapel" - quer acrescentar um pedaço falado bastante extravagante, ao estilo de "Rock Lobster". A ideia é enfatizar o refrão: "Quando digo 'electric chapel', algo precisa acontecer", afirma. "Precisa ser mais fantasia. Você tem de ver a imperatriz do planeta do unicórnio do Vaticano aparecer e rugir na balada." Meio brincando, meio sério, sugiro que ela realmente convoque Fred Schneider, do B-52's, para cantar essa parte, e ela parece levar isso em consideração por um segundo. Um capricho semelhante convenceu o saxofonista Clarence Clemons, da E Street Band, de Bruce Springsteen, a entrar em um avião em Miami com um aviso prévio de literalmente cinco minutos. "Foi: 'Precisamos do Clarence'. E ele estava aqui", conta Russell. "Foi como [no seriado] A Feiticeira."
"Não gosto de ver isso como uma rainha mandando na corte", acrescenta Gaga mais tarde. "Não atribuo esses momentos na minha vida a mim graças a algum tipo de poder. Acredito que seja o destino - que era o destino do Clarence e meu destino que o Clarence esteja no meu disco." Clemons, que se descreve um "gagaísta", tocou em duas das faixas mais grandiosas do álbum, "The Edge of Glory" e "Hair" - a cantor lhe pediu para tocar também na faixa-título, mas, segundo o pai dela, Clemons disse que ela não precisava dele. "Não acho que possa fazer alguma coisa nessa música", afirmou.
Fred Schneider não estava destinado a aparecer em um álbum de Gaga, então ela se vira com os recursos à mão, levando ao microfone a maquiadora, Tara Savelo, uma bela loira, e o cabeleireiro, Frederic Aspiras, que se parece e age como uma versão mais jovem de Jay Manuel (do programa America's Next Top Model) Ela me chama e, com um aceno da mão, dá a pista para que uivemos "Ooooh, electric!" em uníssono, duas vezes. Um produtor aperta o playback e, por um momento, ouvimos nossas vozes como parte de um gancho de Gaga. É pegajoso, mas ridículo. "Amei!", ela afirma, acrescentando quase sem pausa: "Vamos tirar". O destino pode ser duro.
Ela volta a atenção para "Black Jesus Amen Fashion", uma faixa autobiográfica sobre seu ano pós-NYU no Lower East Side - que soa como Deee-Lite produzido por Trent Reznor. Há uma vibração industrial pesada em boa parte do álbum, uma corrente abandonada no pop desde Blood on the Dance Floor, de Michael Jackson. "Tem um espírito tranquilo, alegre, com essas batidas de martelo, escuras por baixo", diz. "É essa dicotomia interessante que, acho, representa a luta interna e o estado emocional de boa parte de minha geração." "Fashion on the runway/Work it, black Jesus" (Moda na passarela / Manda ver, Jesus preto), ela canta no refrão, por cima de um baixo sintetizado. Enquanto conclui, decide adicionar uma parte cantada: "Black, black, black, I wear black. Jesus is the new black, Jesus is the new black" (Preto, preto, preto, eu visto preto. Jesus é o novo preto, Jesus é o novo preto), mais um "Ow! " no estilo Jackson. "Isso não é revigorante?", pergunta. "É revigorante pra caralho! É fresquinho como um sanduíche do Subway."
"Esta música é sobre me mudar para o Lower East Side", Gaga conta, "e deixar para trás todas as formas antigas de pensar, seja o que eu deveria ser quando crescesse ou o que é religião. Você consegue desfazer a lavagem cerebral em si mesma - e é simples como colocar um vestido. Ou, para mim, usar couro." Faz uma pausa. "O disco meio que diz que a cultura pop é a nova religião." Enquanto "Black Jesus" toca, Gaga sussurra: "Vou arrumar tantos problemas..." Então, sorri. "Não poderia ser mais intenso do que já é." Ela está envolvida em diversas controvérsias atualmente: teve de se desculpar por chamar de "retardada" a ideia de que "Born This Way" é uma cópia descarada de Madonna e reverter publicamente a decisão (do empresário dela) de vetar uma paródia feita por Weird Al Yankovic. Além disso, a Liga Católica condenou a faixa "Judas".
Assim que ela termina "Black Jesus", recebe um e-mail no Black Berry (nada de enfeites, nem uma capinha rosa) informando que uma nova edição do vídeo de "Judas" está pronta. A assistente traz seu MacBook Air e Gaga assiste ao clipe - que substitui os 12 apóstolos por uma gangue de motoqueiros sexy, com Gaga incorporando Maria Madalena. Enquanto algumas cenas lascivas aparecem, ela solta gemidos quase orgásticos. "Você está entendendo?", ela fica me perguntando. "Espero que meus fãs assistam centenas de vezes para entender." Entre as ideias que está tentando passar está a de que a traição de Judas a Jesus pode ter sido parte de um plano divino, de que Maria Madalena deveria ser vista como um "apóstolo para os apóstolos" e também de que ela fica bem ajeitada vestindo uma capa índigo.
Gaga está se preparando para críticas ao clipe - que acabam sendo nulas, já que o vídeo é tão artístico que possíveis detratores nem conseguem entendê-lo. "Percebi que na maior parte do tempo sou criticada menos pelo que estou dizendo e mais por simplesmente dizer alguma coisa", afirma. No entanto, a crítica mais irritante é a ideia de que ela só está procurando atenção. "Tenho atenção", diz, e começa a se dirigir diretamente aos críticos. "É porque você acredita que estou buscando atenção ou o choque sem motivo algum ou porque já faz muito tempo desde que alguém adotou a forma de arte da mesma maneira que eu? Talvez tenham se passado algumas décadas desde que houve um artista tão aberto sobre suas opiniões, sobre cultura, religião, direitos humanos, política. Sou muito apaixonada pelo que faço, cada linha de baixo, cada batida de bateria, cada equalização. Por que você não quer mais da artista, por que espera tão pouco que, quando dou repetidamente, acha isso narcisista?"
Mais tarde, diz isso tudo de maneira mais sucinta: "Sou uma artista de verdade, musicista de verdade, que acabou se tornando cantora pop, que sempre quis ser uma estrela pop."
Gaga termina os vocais para Born This Way por volta das 5h da manhã. Dirige até a casa, um esconderijo afastado (chama o lugar de "uma obra-prima tosca"), relaxa assistindo a Rocky IV novamente, vai dormir às 6h, acorda às 10h, fica deitada na cama assistindo a um episódio de Cops e comendo um grande sanduíche de ovo ("Não estou comendo o suficiente ultimamente, estava muito ocupada"), adormece novamente ao meio-dia. Tem um sonho sexual agradavelmente vívido ("Estou trabalhando muito e me sentindo meio desnutrida em algumas áreas, com certeza. Não totalmente, no entanto. Talvez eu só esteja insaciável"); acorda às 16h, toma um banho, coloca o laço de cabelo e uma bandana preta do vídeo de "Judas"; dança de roupa íntima ao som de Iron Maiden; faz a própria maquiagem, levemente bagunçada, incluindo uma pinta falsa que chama de "mancha da fantasia", joga um colete de couro sobre uma regata preta e saia, coloca a bota de stripper de salto alto e óculos de sol com espinhos feitos por um fã, e vai para Newark, Nova Jersey, para um dos últimos shows da turnê Monster Ball.
Nós nos encontramos no meio do caminho, em Manhattan. Seu utilitário esportivo para no meio do quarteirão para que eu entre e deixa Gaga visível no lado do passageiro. O carro é cercado por monstrinhos de várias idades e etnias. "Eles são uns amores", diz. "Era só uma pessoa e, então, de repente, tinha muitas pessoas." Todos trazem um sorriso de puro encantamento, como se estivessem vendo o Kiss ou princesas na Disney. Os seguranças de Gaga - especialmente um holandês que é tão seriamente eficiente que pode na verdade ser o Exterminador do Futuro - observam de perto, mas se mantêm afastados. Depois de assinar o último autógrafo e posar para a última foto, ela passa para o banco traseiro ao meu lado e o carro parte em direção ao túnel Lincoln.
"Quer um cigarro?", pergunta, tirando dois American Spirits de um maço. "Não fumo", diz. "Só finjo."
Ela deixa a janela aberta enquanto passamos pelo centro, o que resulta em queixos caídos de alguns pedestres. Batendo as cinzas do cigarro pela janela depois de uma baforada teatral, conta sobre um sonho recorrente que acabou de superar. "Tinha alguma coisa maligna dentro de mim, ou algo negativo, e havia uma parede branca, e para tirar aquilo de mim, eu tinha de encostar na parede, bater nela para poder ver - como uma essência que saía voando do centro da minha alma e, depois, desaparecia." O sonho, ela acredita, "é só uma busca por coragem, só isso". Você é bastante confiante, digo, mas há alguma ansiedade em partir para o próximo projeto? Ela parece incrédula. "Confiante?", pergunta. Os olhos estão arregalados, as pálpebras maquiadas, e as pupilas não têm aquele brilho louco e carismático - parecem apenas tristes, cansadas e muito humanas. "Do que você está falando? Parte de mim é confiante, parte é como qualquer pessoa." De qualquer forma, discutir isso a deixa desconfortável. "Não sei se mergulho tanto em minha psicologia", questiona. "Acho que isso vai me deixar louca, então é melhor pararmos. Não vou ao psicanalista, nunca fui. Inevitavelmente, a pergunta sempre é: 'Vamos falar sobre a verdadeira você'. E penso... quem? O que você está procurando?"
Enquanto entramos em uma rua lateral em Newark, Gaga vê uma placa em um edifício de tijolos que diz 'Despensa de alimentos da casa dos apóstolos'. Fica espantada - com o vídeo prestes a ser lançado, é uma profecia - e faz o carro parar. Quer entrar, mas está fechada, então se contenta em tirar uma foto nos degraus do edifício.
No estádio, tudo está pronto para ela. A banda está no palco, ensaiando uma versão de "Judas", que estreará no programa Ellen em poucos dias, mas, primeiro, somos levados ao imenso camarim, com o espelho enfeitado de unicórnios. Em uma caixa em um canto está a coleção de vinis para viagem, todos de rock clássico e metal: Ziggy Stardust, Born in the U.S.A., Glass Houses, Goodbye Yellow Brick Road, Appetite for Destruction. Na mesma caixa, um DVD do desenho Uma Família da Pesada.
Depois de ensaiar "Judas" - parada no meio de um estádio vazio, de microfone na mão -, os pais dela aparecem: o pai, Joseph, alto e robusto usando calça cáqui e camisa social; a mãe, Cynthia, pequena e loira em seda fluida. Claramente já estão acostumados com isso, usando até credenciais com fotos deles. Sentam-se nos sofás do camarim como se estivessem em sua sala de estar.
O pai de Gaga passou por uma cirurgia cardíaca no segundo semestre de 2009, depois de uma recusa inicial. "Ele dizia: 'Vou morrer... só me deixem morrer'", lembra Gaga. Ela escreveu a música "Speechless" sobre isso - mas não foi o suficiente para convencê-lo a fazer a cirurgia. Quando foi dormir na casa dos pais, a cadela, Alice, caiu da escada - Gaga ouviu a mãe gritar e pensou no pior. "Corri até a escada e meu pai estava parado ali, segurando a Alice, e falei: 'Já chega'. Levei-o até o escritório e disse: 'Pegue o telefone e faça isso agora mesmo'. Ele se recuperou completamente - os médicos falaram que a cirurgia foi feita na hora certa."
Como se salvar sua vida não fosse o suficiente, Gaga o apresentou ao ídolo dele, Bruce Springsteen - os Germanottas e os Springsteens tiveram um grande jantar juntos. "Foi como conhecer o papa", conta o pai. Ele parece ter amolecido com essas experiências, e dá risada quando lembro a ele de nosso encontro há dois anos, quando me cutucou no peito e disse para eu "pegar leve" com a filha. Falamos sobre Springsteen, Clemons e a carreira dele como vendedor de Wi-Fi para hotéis - até Gaga nos ver conversando. "Pa-ai, cuidado com o que você fala", ela avisa.
"Estamos falando sobre Wi-Fi", ele responde.
"Pior ainda", ela retruca, rolando os olhos de um jeito tipicamente adolescente.
A Páscoa é daqui a dois dias, e os pais querem saber se ela vai à igreja com eles. "O padre O'Connor adoraria te ver", diz o pai. "Aposto que sim", ela responde. "De verdade! Pergunta de você o tempo inteiro."
"Tem certeza de que quer me levar à igreja na Páscoa? Acabei de lançar um single chamado 'Judas'! Devo usar um vestido dizendo: 'Compre meu novo single, 'Judas', no iTunes'?"
A peruca loira extravagante de Gaga tem seus próprios rituais pré-show; é aspirada, penteada e seca com secador em um suporte. Agora, está firmemente presa à cabeça da cantora. Ela também usa um collant brilhante e meias arrastão. Junta-se à banda e aos dançarinos - há pelo menos 20 pessoas - no corredor e todos se dão as mãos para uma oração, feita por um dançarino seminu. "Senhor, enquanto baixamos nossas cabeças nesta noite, agradecemos por permitir que nos reuníssemos sãos e salvos", diz em cadência rápida. "Abençoe Gaga, abençoe sua voz, seu corpo, sua resistência... abençoe a banda e seus instrumentos, os dançarinos e seus pés, as cantoras de apoio e suas vozes, Senhor."
Os monitores de ouvido de Gaga são colocados e ela inicia a longa marcha pelos corredores azulejados em direção ao palco, rodeada pelo empresário, pelos seguranças, pelo cabeleireiro e pela maquiadora. Deve subir ao palco daqui a dois minutos, mas não dá para perceber - ela está se ocupando em jogar desodorante em membros de sua comitiva durante a caminhada. "É desodorante feminino", ela diz, quando reclamam. "É como perfume! Uso perfume de mulher mesmo eu sendo um homem. Embora eu tenha um pênis. Esse é meu boato preferido a meu respeito."
Dentro do estádio, as luzes se apagam e a plateia grita - não aplaude, grita (durante o show, um fluxo frequente de monstrinhos desmaiados chega sobre a barricada - é como um daqueles shows de Michael Jackson em Bucareste). Enquanto espera perto da entrada dos bastidores, Gaga começa a cantar o refrão de sua nova música "The Edge of Glory" em voz alta e áspera, só para ela mesma. Depois de praticamente cada música, ela se enfia em uma tenda minúscula sob o palco, onde troca de figurino e bebe goles de refrigerante diet e água de coco. O show é massacrante o suficiente para ser comum ela simplesmente vomitar algumas vezes ali também - só que não esta noite.
Pendurada sobre o espelho no camarim, em uma moldura negra e pontuda, está uma foto enorme de um rapaz magro e de cabelos longos vestindo couro negro. É Lüc Carl - o namorado vai-e-vem e a inspiração para muitas de suas músicas. Ela me contou há dois anos que uma boa parte do álbum de estreia, The Fame, era sobre o relacionamento deles ("Eu era a Sandy e ele era meu Danny, e simplesmente me despedacei", disse, citando os personagens do filme Grease - Nos Tempos da Brilhantina), e "Bad Romance" parece ser a canção-tema do casal. "Essa história está presente nos meus três discos", ela afirma agora. "Todos têm uma musa." Sua música mais pessoal e alegre, a nova balada potente "Yoü & I" - produzida por Mutt Lange e com solo de guitarra de Brian May - é explicitamente sobre o casal retomar o relacionamento: ela canta sobre voltar para o bar onde se encontraram (St. Jerome's, no Lower East Side): "Been two years since I let you go... This time I'm not leaving without you" (Já faz dois anos que te deixei partir... Desta vez não vou embora sem você). É tão emotiva que ela chorou descontroladamente enquanto gravava os vocais.
Mas, apesar de cantar sobre isso todas as noites, Gaga não quer mais falar do assunto - quer protegê-lo, mantê-lo só para os dois. Encontro Carl nos bastidores, mas ela me pede para manter os detalhes em segredo. Ela costumava dizer que teria de escolher entre a música e o amor, mas seu relacionamento com Carl - baterista, barman e maratonista que tem um blog e um livro em andamento sobre um programa de fitness que ele chama de Drunk Diet (Dieta Bêbada) - sugere o contrário. Ela aborda o tópico gentilmente. "Sim, mas não é tão simples", diz, sentada na suíte de um hotel em Chicago na semana seguinte a Newark. Acabou de finalizar uma apresentação de "Yoü & I" no programa Oprah e ainda tem um chifre cor de carne preso a cada lado da testa. "Minha vida não é tão em preto no branco como meu cabelo", continua. "É muito mais complicada do que isso." O relacionamento é "muito intenso", diz, então "você tem as duas pessoas, mas cada uma vive e sofre por causa da outra, e você só tem de se comprometer com o que acredita e lutar pelo que ama, e é isso". Então o problema é equilibrar tudo? Ela balança a cabeça. "Não estou extremamente interessada no equilíbrio e, para ser honesta, qualquer pessoa que me ame sabe disso e aceita isso em mim."
Seria bom pensar que Lady Gaga poderia encontrar alguma felicidade - especialmente porque ela diz algumas coisas perturbadoras. De volta a Nashville, discutimos os destinos gêmeos de Elvis Presley e Michael Jackson, as consequências estranhas da fama extrema nos Estados Unidos. "Acha que estou nesse nível?", ela me pergunta. Sugiro que ela não está longe. "Essa é a coisa mais apavorante, você pensar isso." Ela considera a ideia por um momento. "Se for meu destino acabar assim, que seja", afirma, sem piscar.
Em Chicago, ela mergulha na escuridão novamente. "Vou te dizer uma coisa. O que vou dizer é que, quando não estou no palco eu me sinto morta, e quando estou no palco eu me sinto viva", diz. "Se isso é saudável ou não para você, ou saudável ou não para qualquer pessoa, ou um médico, não me importa. Só me sinto viva quando estou me apresentando, simplesmente nasci assim."
Esse tipo de conversa deveria ser preocupante - mas não consigo deixar de pensar em um momento em Newark, logo após a cantora ter deixado o palco e com a plateia já abandonando o estádio. Assim que a versão gravada de "Judas" começou a tocar pelo sistema de som, Lady Gaga voltou a se mexer. No lado direito do palco, à vista de apenas uma dezena de fãs que haviam ficado para trás, ela começou a dançar novamente, mais do que havia dançado a noite inteira. O show tinha acabado, mas a apresentação não. E não parecia que acabaria tão cedo.