Poeta, galanteador, monge: por meio século, ele construiu uma torre de canções sublimes, embora a escuridão sempre estivesse ao seu redor
Leonard Cohen foi o poeta das coisas despedaçadas. a fragilidade do mundo foi central no corpo de sua obra (musical, poética e literária: ninguém mais se destacou nas três disciplinas simultaneamente tão bem quanto Cohen) e marcou “Hallelujah”, a visão de transcendência mais famosa do artista canadense: “Não é um grito que se ouve à noite/ Não é alguém que viu a luz/ É um aleluia frio e despedaçado”. Essa percepção seguiu Cohen quando ele decidiu viver em um mosteiro de zen-budismo, onde anos de contemplação e orações se mostraram tão agonizantes quanto os horrores da depressão que o tinham levado até lá; também apareceu entre os versos da última música do derradeiro álbum da carreira, lançado semanas antes de sua morte. Na segunda versão de “Treaty”, de You Want It Darker (“String Reprise/Treaty”), ele cantou: “Agora acabou, a água e o vinho/ Estávamos despedaçados na época, só que agora estamos no limite”. ¶ Mas Cohen, que morreu no dia 7 de novembro, aos 82 anos, nunca se entregou à escuridão. Uma vez, ele me disse: “Eu sinto que qualquer coisa que fiz foi apesar disso [do lado depressivo], não por causa disso. A depressão não era o motor do meu trabalho. Era só o mar em que eu nadava”. A obra de Cohen, no entanto, nem sempre foi melancólica – ele tinha um humor peculiar que muitas vezes se embrenhava em sua voz soturna e no discurso de suas criações. ¶ Ainda assim, a combinação do tom vocal grave e de temas sinistros fazia com que algumas pessoas mantivessem distância dele. Walter Yetnikoff, então chefe da gravadora Warner, teria dito, explicando por que não quis lançar nos Estados Unidos o disco Various Positions (1984), que continha “Hallelujah”: “Leonard, nós sabemos que você é ótimo, mas não sabemos para que serve”. Mas outros sabiam. Durante quase 50 anos, artistas que seguiram Cohen – Patti Smith e Kurt Cobain entre eles – encontraram nele uma firmeza corajosa e uma mente solidária. “Existem poucas, pouquíssimas pessoas que ocupam o mesmo posto que Leonard Cohen”, disse Bono. “Ele é o [Percy Bysshe] Shelley, o [Lord] Byron dos nossos tempos.”
Muitos cantaram as músicas do artista – principalmente “Hallelujah”, que a gravadora Columbia um dia se recusou a lançar e que mais tarde se tornaria um clássico na voz de Je Buckley. Cohen demorou cinco anos para finalizá-la, e teve que reduzir dúzias de estrofes a apenas quatro.
“Hallelujah” era uma liturgia de regozijo que também demonstrava honestidade em relação às decepções impostas por Deus, e surgiu no momento mais fragilizado da carreira do artista. “Eu queria ficar do lado daqueles que enxergam claramente o mundo santificado e despedaçado de Deus pelo que é e ainda assim encontram coragem de dar valor a esse mundo”, ele escreveu certa vez.
Cohen era mais velho do que os artistas de folk e de rock aos quais iria se associar. Nasceu no dia 1º de setembro de 1934, em Westmount, Quebec, Canadá, em uma família
judia de classe média. Porém, a sensibilidade católica latente do local também influenciou Cohen. “A figura de Jesus sempre me tocou.
Ainda me toca”, falou em 2011.
Cohen se tornou conhecido primeiro na literatura e na poesia, publicando livros bem recebidos, embora pouco lucrativos. A alma inquieta o levou a se isolar no começo da década de 1960 na Ilha de Hidra, na Grécia. Ele voltou do autoexílio em 1966, interessado em fazer música especialmente pela possibilidade de conseguir se sustentar por meio dela, diferentemente do que vinha acontecendo com sua carreira literária. Na segunda metade da década de 1960, o folk estava disperso; todo mundo só queria saber de rock psicodélico ou de soul music. Cohen era uma novidade atraente – literato, um intelectual de verdade. Então, a amizade com a cantora folk Judy Collins abriu as portas para ele, que assinou com a Columbia e lançou Songs of Leonard Cohen (1967) quando tinha 33 anos. Parte do trabalho, “Suzanne” foi a primeira música a colocá-lo no mapa como cantor.
Cohen não se tornou um campeão de vendagem ou de popularidade nos anos 1970. E não ajudava o fato de ele gravar de forma intermitente e de não gostar de sair em turnê. Foram quatro álbuns naquela década: Songs of Love and Hate (1971), New Skin for the Old Ceremony (1974), Death of a Ladies’ Man (1977, produzido por Phil
Spector e com resultados controversos – é a única falha no conjunto da obra de Cohen) e Recent Songs (1979). Mas ele não era ignorado, longe disso. “Bird on a Wire”, “Famous Blue Raincoat” e “Chelsea Hotel #2” (sobre um encontro sexual com Janis Joplin), dentre outras, eram regravadas e cantadas por gente de diversas esferas musicais.
Conheci Cohen pessoalmente em 1979, em um restaurante mexicano em Hollywood chamado El Compadre. Quando cheguei ao lugar, uma banda mexicana fazia serenata. Cohen estava acomodado em uma cabine reservada de couro vermelho; elegante, de cabelos escuros, com uma mulher de cada lado, ambas hipnotizadas pelo charme dele. Parecia a capa de Death of a Ladies’ Man.
Conversamos por algumas horas – Cohen era a pessoa mais bem-educada que eu tinha encontrado na vida. Falamos um pouco sobre o fiasco ao lado de Spector. Ele também confessou que não esperava que Recent Songs fosse resultar em alguma coisa. Na época, estava sem gravadora nos Estados Unidos. “A minha música é considerada excêntrica na América”, disse. “As gravadoras não me promovem com o mesmo fervor que promoveriam alguém que
tenha potencial para o Top 20 da parada.”
A Columbia Records lançou Recent Songs pouco tempo depois, e talvez tenha se arrependido. Os temas solenes do álbum não se conectaram com o grande público. O mesmo ocorreu com Various Positions (1984). Desta vez, a Columbia nem se deu ao trabalho de lançar o disco no mercado norte-americano. Anos depois, ao receber um Grammy pelo Conjunto da Obra, Cohen disse a respeito da indústria da música: “Sempre me comovi pela modéstia do interesse deles em relação ao meu trabalho”. Na nossa entrevista de 1979, afirmou: “Quando examino meu trabalho, não é mistério para mim o fato de ainda não ter causado grande sensação. Mas nunca pensei ‘vou criar um tipo de música intelectual’. Tudo o que escrevi, escrevi para todos”.
Falei com ele novamente em 1988, alguns meses depois do lançamento de I’m Your Man,/i>; Cohen divagou sobre uma visão de algo apocalíptico se abatendo sobre a humanidade. Apesar de muito do que ele disse naquele dia ter se revelado como um presságio, eu não fui capaz de compreender que ele não estava falando apenas de uma perspectiva filosófica ou política interessante. No LP seguinte, The Future (1992), aquela noção de apreensão sociopolítica parecia ser profética – as músicas pareciam revelar uma aflição que se encontrava nas profundezas da mente, do coração e da história dele.
I’m Your Man e The Future eram obras-primas – e, desta vez, receberam a devida atenção. As músicas foram tocadas em clubes e usadas em filmes, e aquela combinação de tons e imagens se encaixou à época. Foram os maiores sucessos da carreira dele. Aos 58 anos, o homem parecia estar – de um modo bem improvável – no topo do mundo. Foi aí que ele resolveu abandonar tudo o que tinha.
Em 1994, Leonard Cohen foi viver em um mosteiro de zen-budismo em Mount Baldy, a uma hora de Los Angeles, administrado por seu antigo mestre zen, Kyozan Joshu Sasaki Roshi. O músico estudou periodicamente com Roshi ao longo de 40 anos e o considerava um amigo, um sábio e uma figura paterna. Durante as gravações de Various Positions, levou o mestre para uma sessão de audição em Nova York. “Foi uma época em que todas as notícias a meu respeito eram ruins e deprimentes”, ele contou. “Na manhã seguinte, eu perguntei a ele: ‘O que você achou, Roshi?’ Ele respondeu: ‘Leonard, você deveria cantar mais triste’. Todo mundo me dizia o contrário. Mas ele viu que eu ainda não tinha ido aonde poderia ir com a minha voz”.
Da mesma maneira como deixou para trás sua vida secular, Cohen também deixou para trás o mosteiro e voltou para a família e amigos. Alguns anos mais tarde, em 2004, uma nova devastação o tomou de assalto. A filha, Lorca (ele também foi pai de Adam, que produziu o derradeiro disco, You Want It Darker), descobriu que a empresária e amiga de longa data do artista, Kelley Lynch, o estava roubando. Desde 1996, Kelley tinha desviado mais de US$ 5 milhões das contas bancárias e dos fundos de aposentadoria de Cohen. À época foi feito um acordo, mas em março de 2012 ela foi condenada a 18 meses de detenção por desrespeitar uma sentença que a proibia de entrar em contato com Cohen. O músico não recuperou a maior parte do dinheiro que ela tomou dele, e se viu de volta à posição na qual estava em 1966, quando aceitou que o livro Beautiful Losers não seria suficiente para seu sustento financeiro e resolveu entrar para o mercado da música.
E assim, no verão de 2008, aos 73 anos, Leonard Cohen embarcou em uma turnê que duraria meia década, com algumas interrupções. Ele tocou músicas de todas as fases da carreira ao lado de uma banda meticulosamente ensaiada; tocava durante três horas, às vezes mais. “Nunca achei que eu voltaria a excursionar”, ele declarou à Rolling
Stone em 2012. “Mas eu tinha sonhos. Às vezes, os meus sonhos incluíam estar no palco e não lembrar a letra ou os acordes. Era um tipo de pesadelo que não me convidava a seguir em frente nessa empreitada.” E, no entanto, os companheiros de banda dele notavam como Cohen ganhava vida noite após noite. “Dá para perceber certo
cansaço, mas quando a reação [do público] é calorosa e tangível a pessoa fica revigorada e não exausta”, ele falou a respeito das centenas de shows. A turnê foi apenas o começo da volta notável de Cohen. Ele gravou um álbum novo em 2012, Old Songs, sucedido por Popular Problems (2014); poucas semanas antes de morrer, saiu You Want It Darker.
Durante o último ano de vida, Cohen se mudou para a casa da filha, Lorca, em Los Angeles. Lutava contra o câncer havia algum tempo. Outros problemas de saúde, incluindo fraturas na coluna, impediam que ele viajasse. Ainda assim, via os filhos e os netos com frequência. Para permitir que o pai gravasse os vocais de You Want It Darker, Adam transformou o espaço onde Cohen vivia em um estúdio improvisado. Acomodado em uma cadeira de rodas especial e usando maconha medicinal para diminuir a dor, o veterano só tinha de cantar. “Agora, no final da carreira”, Adam declarou semanas antes da morte do pai, “talvez no final da vida, quem sabe ele esteja no auge de suas capacidades.”
Em julho, Cohen recebeu a notícia de que Marianne Ihlen, namorada dele nos anos 1960 e musa inspiradora de “So Long, Marianne”, estava morrendo de câncer na Noruega. Tinham continuado amigos – coisa que Cohen conseguiu fazer com a maior parte de suas ex-amantes. Cohen escreveu para ela: “Bom, Marianne, chegamos a este momento em que estamos tão velhos e nossos corpos estão caindo aos pedaços e acho que vou segui-la em breve. Saiba que estou tão perto que, se você esticar a mão, acho que consegue
alcançar a minha. E você sabe que eu sempre a amei por sua beleza e por sua sabedoria, mas não preciso falar mais sobre isso porque você sabe disso. Agora, só quero desejar a você uma boa jornada. Adeus, velha amiga. Com amor infinito, nos vemos pelo caminho”. Cohen logo recebeu uma resposta de um amigo de Marianne na Noruega: “Ela ergueu a mão quando você disse que estava logo atrás, tão perto que dava para alcançar. Sentiu uma profunda paz de espírito por você saber qual era a condição dela”.
Cohen estava certo: não demoraria muito para ir também. De acordo com o jornal The New York Times, ele estava trabalhando em um livro novo de poesias e em mais dois projetos musicais: arranjos de cordas para algumas de suas músicas e um conjunto de faixas com inspiração R&B. Antes que isso pudesse se completar, veio a notícia: “Leonard Cohen morreu enquanto dormia no meio da noite no dia 7 de novembro, depois de ter sofrido uma queda”, o empresário do cantor, Robert B. Kory, informou por meio de um comunicado. “Ele morreu de maneira repentina, inesperada e em paz.”
A trilogia de álbuns que Leonard Cohen criou antes de partir é cheia de súplicas e de perigos, e guiada por uma voz sepulcral que soava como a verdade indiscutível. Ele sempre buscava os anjos, mas também se permitia fazer uma avaliação honesta de seu lado menos misericordioso – isso para ele era motivo de alívio e de orgulho. Não estava proclamando orações, mas também via o dever da penitência, em si mesmo e em tudo à sua volta, nos corações amargurados e nos espíritos partidos de um mundo em pedaços.
“Isso parece o clichê mais batido do século 19, mas, no meio de todos os meus problemas pessoais minúsculos, eu me voltei para aquilo que sabia fazer. Então, criei músicas sobre o que acontecia, e no processo boa parte da dor se dissolveu”, Cohen me disse certa vez. “Essa é uma das coisas que a arte é capaz de fazer, ela cura. Um homem que faz essas escolhas na vida geralmente é mais bonito do que suas obras. Qualquer artista que permanece verdadeiro a si mesmo também se torna uma obra de arte, porque essa é uma das coisas mais difíceis de conseguir.
Se alguém de fato tem essa vocação e se dedica com diligência às exigências que surgem dela, vai perder muita coisa, mas terá moldado seu próprio caráter.”