Pela terceira vez, o Brasil lança um plano para exterminar o analfabetismo. As dificuldades, porém, vão muito além das salas de aula
Em 1962, ano em que o Brasil conquistava o bicampeonato mundial de futebol no Chile e os compositores Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes eternizavam “Garota de Ipanema”, o panorama educacional brasileiro, no cenário pintado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, era “calamitoso”.
Então ministro do presidente João Goulart, Ribeiro traçava o Primeiro Plano Nacional de Educação, o qual listava uma série de medidas emergenciais para salvar a educação no país. Entre outras ambições, ele desejava alfabetizar, até 1970, todas as crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos. Na época, o Brasil amargava o pior índice de iletrados de toda a América Latina: um exército de 5,8 milhões de analfabetos – o que representava 39% de toda a população nacional. Mas um golpe de Estado, cujo comando militar tramava obscuros “planos”, enterrou definitivamente o projeto dois anos depois.
Hoje, o Brasil é um dos motores econômicos do mundo, passou a ser a sexta economia global e, antes de 2015, deverá ultrapassar a França e garantir o quinto lugar (conforme as projeções do Fundo Monetário Internacional). Com tanta pujança, é gritante, entretanto, a defasagem do sistema educacional, se comparado ao momento econômico vivido pelo país. De fato, ainda é impossível comparar a educação no Brasil com os níveis de formação profissional das nações mais desenvolvidas. O setor já vingou inúmeras melhoras, mas os números continuam falando por si próprios. É o que mostra a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual 3,7 milhões de crianças e jovens (de 4 a 17 anos) estão fora da escola. As estatísticas não são muito alentadoras. Por exemplo, caiu em apenas 0,3 ponto percentual a taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais. Em 2008, o índice foi de 10% e, em 2009, de 9,7% – no total, ainda há 14,1 milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever.
Para a superação dessas deficiências históricas, uma das propostas que poderá soprar ares renovados a esse panorama é o novo Plano Nacional de E duc a ç ã o (PN E), feito para vigorar no decênio 2011/2020. Encaminhado pelo governo à Câmara dos Deputados por meio do projeto de lei 8035/2010, o projeto foi entregue, em Dezembro de 2010, ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad. A comissão especial que analisa o PNE em plenário marcou para este Fevereiro a apresentação do texto final, que deverá ser votado em março. Após a aprovação, segue para o Senado e, caso avance, vai para a sanção presidencial.
“Fizemos um projeto”, explica Haddad, “com metas para serem aplicadas e honrarem a sociedade. Mas, se chegarmos a 2020 com metade delas não cumpridas, ele [o PNE] perderá credibilidade. Queremos aprovar um plano amadurecido e factível e exigimos um esforço adicional”, conclama o ex-ministro, agora candidato à prefeitura de São Paulo, que recém-entregou o cargo ao titular da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante.
O “PNE de Haddad”, que, em seis anos frente ao MEC sempre defendeu a tese de que “educação não é gasto social, é investimento”, define dez diretrizes objetivas e 20 metas, acompanhadas de estratégias específicas de concretização: aumento de vagas em creches, ampliação de escolas em tempo integral e expansão das matrículas em cursos técnicos estão entre elas. O plano é considerado sucinto em relação ao anterior, concebido durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que vigorou de 2001 a 2010 e enumerava 295 metas. Na avaliação de especialistas, porém, o problema daquele PNE havia sido justamente o excesso de objetivos e a falta de foco.
“Não vingou”, decreta Idevaldo Bodião, colaborador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que afirma que há atualmente uma força-tarefa governamental empenhada em aprovar um plano “nos limites estritos do que pensa o Executivo”. Para ele, o cenário é mais ou menos o mesmo de dez anos atrás: “Um plano generoso em metas e estratégias, como a ampliação da escolarização da educação infantil à pós-graduação, mas que deverá ser estrangulado no mais essencial – o financiamento”.
Mais contidas, as metas do novo Plano Nacional de Educação seguem o modelo de “visão sistémica da educação”, estabelecido em 2007 com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), uma das criações de Fernando Haddad. O PNE, no entanto, aterrissou no Parlamento frustrando expectativas de boa parte da comunidade educacional. A principal razão da indignação é o percentual do Produto Interno Bruto (PIB) que se pretende destinar ao projeto. O texto original enviado pelo governo prevê, até 2020, a meta de aplicar 7% do PIB em investimentos públicos em educação – hoje, o país investe cerca de 5%.
Muitas das emendas ao projeto (a maioria das três mil apresentadas), porém, pedem 10% do PIB – esta seria a bandeira de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Estima-se que o valor que necessitaria ser adicionado ao orçamento para se atingir o patamar de 7% seja de R$ 84 bilhões. Em sua totalidade, os atuais 5% somam R$ 200 bilhões em investimentos da União, Estados, municípios e Distrito Federal. A decisão pelos 10% elevaria os recursos, portanto, para o dobro: R$ 400 bilhões.
Após negociação com o governo, em dezembro, o deputado Angelo Vanhoni (PT-PR), relator do PNE na Câmara, definiu em 8% a meta de investimento público na área. Apesar de elevar o índice, Vanhoni fez uma mudança no texto que foi criticada por alguns parlamentares: o relatório apresentado pelo deputado determinava o percentual como “investimento público total em educação” – a palavra “total”, porém, não existia nos textos anteriores. Dessa forma, por exemplo, estariam incluídas na categoria “investimento” as bolsas de estudo e as contribuições sociais de aposentadoria a trabalhadores da área. O relator foi acusado por alguns parlamentares de “maquiar” os números. Vanhoni alega que vai modificar a meta, e que o índice de 8% do total corresponde, na prática, a 7,5% de investimentos diretos: “Vou mudar [a meta do percentual] para deixar mais claro, mas estou convencido de que 7,5% são suficientes para atender a todos os objetivos que estão no meu relatório”, explica.
Para Luiz Araújo, mestre em políticas públicas em educação pela Universidade de Brasília (UnB) e militante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, houve duas surpresas ingratas no relatório de Angelo Vanhoni. A primeira é não ter acatado os 10% deliberados na última Conferência Nacional de Educação, realizada em 2010 (os 8% teriam sido um “meio-termo”). O segundo problema foi o fato de o deputado ter alterado o indicador que mede o cálculo. “Foi o que mais escandalizou todo mundo”, diz Araújo, alegando que todo debate sobre educação é feito em cima do investimento público direto, ou seja, o gasto que o setor público faz no setor público. “Mantendo os valores que o governo está propondo não serão cumpridas as metas, porque o dinheiro não é suficiente.”
Em defesa do PNE, o senador Humberto Costa (PT-PE) diz que há várias outras áreas que igualmente possuem carência de recursos. “A proposta original dos 7%, apesar de não ser o que gostaríamos que fosse, permite, no entanto, um equilíbrio no orçamento que dará para garantir importantes recursos nas áreas da saúde, assistência social e infraestrutura”, argumenta. Já a deputada Fátima Bezerra (PT/RN) considera o percentual de 7% insuficiente para enfrentar os desafios da educação no Brasil, ainda que o salto dos atuais 5% tenha sido relevante. “Como o governo tem acenado que é difícil chegar aos 10%, temos insistido para atingirmos os 8%. Não desistimos, no entanto, da luta pelos 10%”, diz. Titular da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, a deputada enumera os dados que comprovam o balanço negativo do PNE passado: “O acesso à creche: éramos para ter chegado a 50% de nossas crianças com esse direito garantido, mas ficou apenas em 20%. Também éramos para ter entrado 2012 com 30% de nossos jovens de 19 a 24 anos tendo acesso ao ensino superior. Só 14% deles, porém, ingressaram na universidade”. A falta de sintonia no debate nacional com os estados e municípios também teria contribuído para que as metas não fossem cumpridas. “Faltou coordenação por parte do MEC”, Fátima critica.
O professor Mozart Neves Ramos, conselheiro da ONG Todos pela Educação, traz a questão do tempo ao debate. Para ele, o PNE deveria ter metas anuais ou bianuais, e não para uma década inteira. “Uma das grandes chagas do Plano Nacional de Educação da última década foi exatamente não ter feito um avaliação regular de metas”, ele diz. “Quando se faz uma projeção, é preciso avaliar se a política adotada está surtindo os resultados esperados na velocidade desejada. Para que não chegue ao final e conclua-se que a meta não foi alcançada.” É fundamental também, no entendimento de Ramos, a realização de um monitoramento anual, visando compreender quais estados e municípios estão atingindo seus objetivos – de acesso, aprendizagem, alfabetização e investimento. “Só assim, afinal, a sociedade poderá cobrar”, conclui.
De abril a julho, uma caravana da União Nacional dos Estudantes percorrerá 100 cidades brasileiras para discutir o tema: “Qual educação o Brasil terá daqui a dez anos?” O carro-chefe do debate será justamente o Plano Nacional de Educação. Junto com entidades como a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), a UNE apresentou 602 emendas ao texto original do PNE. São modificações fundadas em três eixos essenciais, conforme pontua Daniel Iliescu, o presidente da entidade: qualidade da educação, democratização do acesso e da permanência e financiamento público. “Financiamento, inclusive, é o eixo condicionante para todos os demais. É a ‘pedra de toque’ da educação”, define. Além de defender os 10% do PIB, Iliescu propõe uma “estratégia financeira” alternativa: a destinação de, no mínimo, 50% do Fundo Social do Pré-Sal para a educação. “Raramente, na história do Brasil, recursos oriundos dos avanços econômicos foram revertidos para as áreas sociais”, diz. “É a oportunidade única, nos próximos 20 anos, quando o PIB multiplicará algumas vezes por causa do Pré-Sal, de concentrar tamanhos proventos em um segmento estratégico como a educação.”
Na visão de Paolo Fantini, coordenador de Educação da Unesco, o Brasil teve melhoras relevantes nas últimas décadas, principalmente devido à democratização da educação no país. Repetência e abandono escolar, contudo, ainda são sérios problemas. De acordo com a Unesco, o Brasil avançou no ensino fundamental, o qual está quase universalizado, mas ainda enfrenta o desafio de garantir educação básica de qualidade para todos. “O importante não foi tanto se o [programa] Brasil Alfabetizado é sucesso ou não”, diz Fantini, “e, sim, testemunhar uma vontade política de pôr a alfabetização de jovens e adultos como prioridade de governo”.
A mais recente avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), que avalia estudantes de 15 anos completos nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), além de convidados, como Brasil e Argentina, trouxe uma boa notícia: a média do Brasil subiu 33 pontos entre 2000 e 2009. Os números, todavia, devem ser festejados com moderação. Ainda figuramos nos últimos lugares da avaliação – 54º de 65 países. Entre outras carências, o Pisa mostrou que a matemática ainda é o ponto mais fraco dos brasileiros. Em leitura, quase metade dos avaliados alcança apenas o nível 1, ou seja, o grau mínimo de habilidade de leitura. Tal informação não é de se admirar, levando em conta que quatro em cada dez estudantes brasileiros têm de zero a dez livros em casa. Em Xangai, província chinesa com o melhor rendimento nas provas, 36,8% dos alunos têm de 25 a 100 livros.
A professora Amanda Gurgel conhece essa realidade de perto. Ela ganhou notoriedade instantânea após a veiculação de um vídeo, filmado durante uma audiência pública, em que punha a boca no trombone sobre as condições caóticas da educação no Rio Grande do Norte. Professora de português, Amanda se tornou uma espécie de heroína da classe (tanto que é pré-candidata a vereadora pelo PSTU nas próximas eleições) ao escancarar seu contracheque de R$ 930 na cara dos constrangidos deputados presentes. As dificuldades, ela alega, são inúmeras e complexas e estão relacionadas à realidade social. “Percebemos os reflexos diretamente em nosso trabalho”, ela opina. “Violência, dependência química, desemprego e desigualdade são fatores determinantes para um fenômeno que lidamos diariamente nas escolas: o analfabetismo funcional.”
No parecer da professora, o contexto do Rio Grande do Norte reflete as condições do sistema educacional brasileiro como um todo. Após o desabafo em vídeo, Amanda teve a oportunidade de percorrer o país, conversando com outros educadores, e presenciou que “estamos todos no mesmo barco”. Não há um estado sequer, segundo ela, em que a educação pública funcione dignamente. “Os governos não investem o suficiente para o funcionamento das escolas. E, regra geral, ainda tentam punir e responsabilizar os trabalhadores que são, na verdade, tão vítimas quanto os alunos deste caos que aumenta a cada ano, empurrando os índices educacionais para baixo, ainda que a economia esteja em alta”, discursa.
Amanda, que também levanta a bandeira dos 10% do PIB, acredita que o Plano Nacional da Educação poderia significar não a solução absoluta, mas um primeiro passo para a superação do abismo educacional. Mas é essencial, propõe, que esse investimento seja realizado imediatamente, e não ao longo de dez anos. “Para os milhões de crianças e jovens nas salas de aula”, ela diz, “significa o futuro.”