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"Lula É Leniente"

Ex-presidente e cidadão do mundo, Fernando Henrique Cardoso fala sobre drogas, poder, sucessão, crise e sobre o atual presidente

Por José Roberto Maluf e Ricardo Franca Cruz Publicado em 12/06/2009, às 12h48

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Entre compromissos políticos e encontros internacionais, o ex-presidente falou em seu escritório paulistano - Fotos Ignácio Aronovich
Entre compromissos políticos e encontros internacionais, o ex-presidente falou em seu escritório paulistano - Fotos Ignácio Aronovich

Trata-se um político pelo cargo mais alto que ele atingiu em sua carreira. Assim, Sarney é presidente, Collor é presidente. E Fernando Henrique Cardoso, também, ainda que guarde diferenças dos colegas citados, que vão além do não ter recorrido a botox ou processos de cirurgia plástica e não usar bigode ou escrever romances calientes.

Aos 77 anos, o homem cujo governo criou os programas sociais tão caros hoje - e melhor posicionados, é verdade pelo - ao governo do PT, diz participar de algumas decisões do PSDB, partido do qual é presidente - mais uma vez - do Diretório Nacional, "mas não do dia a dia". De longa carreira acadêmica, diz que nunca se sentiu um político profissional e que o prefixo ex, quando junto à palavra presidente, não lhe tirou uma única hora sequer de sono. Nem as crises pelas quais seus oitos anos à frente da República passaram. E, se não perdeu o sono nos dois mandatos, talvez tenha perdido algo quando nomeou Gilmar Mendes para o Supremo. Mas não perdeu o juízo: "Não se pode dizer não ao Gilmar".

Não é de hoje que FHC é um cidadão do mundo, um homem viajado. Somente em 2009, antes de o ano começar para a maioria dos brasileiros, por conta das instituições, órgãos e conselhos dos quais faz parte, ele já esteve na França, Alemanha, Inglaterra, Espanha e México. No dia da nossa entrevista, acontecia uma conferência da ONU sobre drogas, em Viena, mas nesta ele desistiu de comparecer: "Não fui porque eram dois dias só e é aquela coisa de ONU, sempre muita confusão".

É no Instituto Fernando Henrique Cardoso - do qual é, novamente, presidente -, no Vale do Anhangabaú, que FHC nos recebe para uma hora de entrevista cronometrada pela assessora de imprensa. Seria, para nós, o primeiro de, ao menos, dois rounds de conversa com o homem. Sua sala é ampla e estrategicamente mobiliada com poucas, mas bem escolhidas, peças. As janelas que ocupam toda a volta do espaço revelam do 6º andar um belo corte do Vale em que se emolduram as belezas arquitetônicas paulistanas, deixando abaixo a miséria, os mendigos, as prostitutas, os PMs, os transeuntes e toda a fauna que tradicionalmente habita o centro da cidade. É ali que o ex-presidente lê, escreve, prepara palestras, uma excelente fonte de renda atual, e concede entrevistas como esta a seguir, que quase não acontece porque ele supostamente teria um compromisso. No Irã.

Ricardo Franca Cruz - Foi cancelada sua ida ao Irã? O que o senhor iria fazer lá?

Iria ter uma reunião, mas não houve. Pertenço a um grupo que foi criado no ano passado pelo Mandela. Chama-se - o nome não é muito estimulante - The Elders, os velhos, os veteranos, e tem dois personagens muito interessantes: um se chama Peter Gabriel e o outro Richard Branson, fundador do grupo Virgin. Os dois se juntaram ao Mandelae ao bispo Desmond Tutu, lá da África do Sul, e queriam financiar, dar recursos, a um pequeno grupo de pessoas que, no dizer deles, estaria numa fase da vida que não estão competindo, não estão na briga e são respeitados. E o Mandela escolheu. São 11 pessoas, e me botou nisso. São: o Kofi Annan; o Mandela; a Graça Machel, uma pessoa muito interessante, viúva do Samora Machel, que é herói de Moçambique, e mulher do Mandela, herói da África do Sul; Jimmy Carter; uma que foi presidente da Irlanda, chama-se Mary Robinson,; o Desmond Tutu, bispo da África do Sul; um negociador árabe chamado Lakhadr Brahimi, que negociou lá pela ONU, coisa do Iraque; uma senhora cujo nome eu não sei dizer, porque é uma hindu, que tem um banco pra atender só empresa de mulheres. Essa é a que eu menos conheço. Enfim, são pessoas que, em tese, deveriam facilitar conflitos e negociar. E, de fato, no Quênia, naquele último conflito, esse pessoal esteve muito ativo, o Kofi e a Graça. Agora no Zimbábue que é mais difícil. Hoje eu tenho que telefonar pra lá pra amenizar um pouco o Roberto Mugabe, outro que eu conheço e que é uma fera. E é nesse contexto que nós temos que ir ao Irã, negociar.

José Roberto Maluf - O senhor nunca parou de fazer política?

Fazer política no sentido partidário? O pessoal pensa que eu estou muito ativo, mas não estou. Eu fui agora à Brasília e, é claro, me encontrei com os senadores e tal. Com o Serra eu estou toda hora, é muito amigo meu. Com o Aécio Também. Nas questões gerais eu me meto, no dia a dia, não. Dá a impressão de que você está ali mexendo os cordéis e não é bem assim. Mas a imprensa não quer saber o que eu faço para a consolidação da democracia, quer saber a fofoca do dia.

JRM - O que foi fazer em Brasília?

Fui a Brasília porque o Gilmar Mendes, presidente do Supremo, que é uma pessoa de quem gosto - e que foi advogado geral da União no meu tempo, que nomeei para o Supremo - me telefonou e disse: "Tem uma escola de pós-graduação em direito público", e me perguntou se eu não podia dar uma aula inaugural nesse curso. Não se pode dizer não ao Gilmar, então fui para Brasília.

RFC - Por que o senhor aceitou fazer parte da comissão sobre drogas da ONU?

Aceitei participar dessa comissão porque acho que é um problema muito sério, não estamos encontrando meios de avançar e nem podemos deixar só a polícia reprimindo, o governo, que não vai resolver. O problema tem de ser posto de outra maneira. No fundo todo mundo sabe que essa guerra contra as drogas é uma guerra perdida do jeito que está sendo levada.

JRM - Não tem solução?

Não tem. É mais violência, morte. Fui ao México e fiquei muito assustado, porque lá a coisa é muito grave, você tem um estado paralelo. O crime organizado é muito ativo na fronteira com os Estados Unidos e nas cidades mexicanas. Quando eu estava no México, mataram um general em Yucatán. O presidente Calderon é um homem bem enérgico. Ele resolveu fazer a guerra às drogas, demitiu de 2 a 3 mil policiais. Lá eles matam, cortam a cabeça e jogam na rua. Mataram 8 mil no ano passado.

RFC - É como na Colômbia?

Na Colômbia, estive com o presidente Uribe, esse é um homem mais disposto ainda. A superfície plantada de maconha na Colômbia não diminuiu. Na verdade, se você for olhar a América Latina toda, tem 200 mil hectares de terra, todas elas de maconha, marijuana, como eles chamam. Então, a guerra não está sendo ganha. Nos Estados Unidos, na fronteira com o México, tem 12 mil lojas de armas. O armamento é livre nos Estados Unidos, mas se vende na

fronteira para quem? Para os traficantes do outro lado. E daí o governo americano quer que o governo do México acabe com o tráfico. Então, é muito sério. E os americanos estão mudando um pouco os hábitos deles. Primeiro, está havendo produção de maconha nos Estados Unidos, estão ficando autossuficientes. E estão substituindo a cocaína por drogas sintéticas, como anfetaminas. Resultado: os cartéis estão empurrando mais drogas para a América latina, para a África. E isso não tem fim: mata, mata, mata...

RFC - O Brasil está preparado para a legalização da maconha?

A lei já diz que se você for preso com uma pequena quantidade não é crime. O problema é que ela é muito vaga, a polícia é quem resolve e daí há espaço para a extorsão. Mas não sei se o Brasil está preparado. O problema é mais complicado. Isso tem que ser uma decisão global. Não adianta dizer: "Libera aqui e não libera ali". Onde for liberado vai todo mundo pra lá. Os Estados Unidos não querem e prendem. Aqui não tem nem cadeia pra prender, mas lá eles prendem. E quem eles prendem? Os negros maciçamente, porque são os mais pobres, drogados. Então dá a impressão de que é um gueto. Pouca gente sabe, mas tem depoimentos muito interessantes de autoridades da polícia americana sobre a inutilidade de se prender, porque o preso vai aprender outros crimes na cadeia.

RFC - Muda algo com o Obama?

Tem que ser uma mudança global, a pressão conservadora é muito grande, mas nós estamos nos contrapondo a isso porque precisa começar a debater. Talvez agora com o Obama a posição americana possa mudar nessa matéria. Não sei. Me disseram que ele nomeou o czar das drogas lá, alguém que é mais razoável lá nos Estados Unidos. Eu não fui aos Estados Unidos depois da eleição dele, não falei com a Hillary [Clinton, secretaria de estado]. Se eu for, apesar de ela estar sempre ocupada, vou tentar falar. Essas coisas são complicadas, não se resolvem assim, mas temos de criar um antídoto para essa loucura. Se os Estados Unidos não concordarem não vai funcionar. Ou eles entendem ou é difícil.

RFC - Considera o usuário um criminoso?

Criminoso é quem faz o cartel, é o contrabandista. O usuário é uma vítima desse negócio. Não adianta você tratá-lo como se fosse o responsável direto, porque não é. Que é uma tragédia, isso é. A maconha faz mal, o álcool faz mal, também o tabaco faz mal. Mas o mal não é o mesmo. Tem a teoria: você começa na maconha e depois passa pro crack. Mais ou menos. Também tem uma outra questão que ficou muito clara nos estudos que nós fizemos: o problema de quem é permanentemente usuário não existe em uma proporção muito grande. Está muito ligado com a idade. Usa até certa idade e depois para de usar. Então a teoria que necessariamente é uma escadinha, primeiro a maconha e por último é o crack e a morte, é verdade pra alguns, mas não pra todos.

JRM - Aécio ou Serra? Qualquer um dos dois está bom para ser candidato a presidente da República?

Os dois estão capacitados. A minha posição desde o início é a seguinte: o que nos interessa é saber quem tem mais chances de ganhar. Os dois são capacitados, têm qualidades diferentes, mas ambos têm qualidades. É elementar, os três grandes colégios são São Paulo, Minas e Rio. Nós temos possibilidades, temos governadores de São Paulo e de Minas. Temos de arrumar uma maneira de juntar os dois, o que eu não acho difícil, e ter como ponto de partida qualquer um dos dois. O ponto de chegada é quem estiver em melhores condições. Agora, essa discussão sobre prévia. Se houver dois, vai ter que ter um tipo de seleção, é evidente. Não se vai tirar um candidato do bolso do colete.

JRM - Porque até hoje o PSDB decidia na cúpula.

Em 2006, o governador Serra, que era um candidato, desistiu de sê-lo. Então não tinha por que fazer. Ficou o Geraldo Alckmin. Não foi uma decisão da cúpula, foi uma decisão do candidato. Se um dos dois agora desistir, tendo um candidato só, não precisa fazer prévia. Reúne o diretório, mas é formal.

JRM - Mas eles não vão desistir.

Tomara! Porque estarão motivados. Se não desistirem, a lei manda fazer convenção. No nosso caso temos mais ou menos 700 pessoas que votam. Você pode fazer uma convenção ampliada, quer dizer, além dos convencionais, todos os vereadores, todos os deputados, eventualmente todos que tinham títulos no partido, como presidentes de diretórios, secretários. Ou podem ser todos os militantes, os filiados. O problema é que filiação a partidos no Brasil não quer dizer militância. A legitimidade não aumenta se você aumentar assim o número de participantes de uma convenção. Agora, como critério de escolha ampliada eu acho uma coisa boa. É uma pena que o Presidente Lula tenha precipitado o processo eleitoral. Precipitou, primeiro porque ele nunca saiu de campanha e ele gosta de campanha; segundo porque distrai o problema central, que é a crise econômica; e terceiro, porque não há nenhum candidato com perfil político no partido dele - os que tinham, por razões diversas, foram afastados - e sobrou uma candidata que não tem perfil político-eleitoral, nunca foi candidata a nada e tem que ser popularizada. Ele precipitou pra poder chegar. Normalmente, acho que teria sido melhor para o Brasil, e certamente para o PSDB, se deixássemos essa escolha para 2010. Agora nós temos um certo temor de ser muito longe o ano que vem, porque já há um candidato do governo. E há outro temor: a lei. A lei diz que se faça convenção a partir de junho e proíbe se fazer propaganda eleitoral antes disso. Agora, não tenho dúvida de que vamos chegar a uma solução. Tenho relação pessoal muito forte com ambos. Só pra dar uma ideia, quando a Ruth morreu quem fez o discurso na igreja em São Paulo foi o Serra. E no Rio foi o Aécio. A relação minha pessoal é muito direta com os dois. Acho muito pouco provável que não se chegue a um entendimento, que não quer dizer desistência. Pode ser também a forma de decisão. Sempre perguntando o que convém mais para o Brasil e para o partido.

JRM - Com a atuação de caráter assistencial e populista do atual governo, com o Bolsa Família, é possível carregar a Dilma como candidata?

Um governo populista em tempo de crise tem sucesso? Não dá, não funciona, é difícil. Vamos ver o que vai acontecer neste próximo ano, não vamos torcer pelo pior, porque pior é sempre pior, nunca é melhor, mas o problema é que eu acho difícil que o Lula transfira a biografia dele para a Dilma. Porque não é a mesma coisa e o povo sente isso. É um pouco postiço. Estão criando um manequim. Quem inventou o Bolsa Família fomos nós, durante o meu governo. Era Bolsa Escola, Bolsa Gás - que era do Itamar até -, Bolsa Alimentação. O governo do Lula fundiu. Nós tivemos 5,5 milhões e de Bolsa Escola. Agora tem 11 milhões de Bolsas Família. Ótimo! Isso é uma tecnologia que foi muito incentivada pelo Banco Mundial, se chama transferência condicionada de renda. Você dá o dinheiro desde que vá à escola. É um programa que veio pra ficar, mas precisa ganhar de novo o objetivo dele. Não é se criar uma camada dependente do governo indefinidamente. É dar condições para a pessoa avançar.

JRM - Mas a Dilma cresceu, segundo as prévias

E vai crescer mais. Não é crível num país como o nosso, com o prestígio do Lula e com a força do PT, que ela não vá para 25%, vai sem dúvida. E o pessoal do PSDB não deve ficar assustado com isso. Agora, o problema é ter condição de ganhar a eleição.

RFC - O Brasil elegeria uma mulher presidente?

Acho que sim. O Brasil avançou muito nessa matéria de costumes. Você vê que em São Paulo quando foi eleita a Marta não houve problema, a Benedita lá no Rio, a Yeda no Rio Grande do Sul. No Dia da Mulher, 8 de março, uma repórter de Brasília me perguntou: "O senhor não acha que chegou a hora de se eleger uma mulher" Eu respondi: "Depende, acho que sim, mas qual mulher? [risos]". Tem que comparar, na hora de eleger não pode haver discriminação de um lado nem de outro - "Se for mulher, vamos nela; se for homem, vamos nele".

JRM - O PT fez uma oposição furiosa ao seu governo.

Mas na hora de o PSDB ser oposição o partido não quer ou não sabe fazê-la. Por quê? Não estou de acordo com alguns métodos do governo e do PT. Já há alguns anos digo que, no começo, dava a impressão, pela própria propaganda do PT, de que havia uma diferença na condução da política econômica. E não houve diferença alguma. É uma continuidade. Assim como a política social. Houve uma expansão porque os recursos são maiores, mas os programas são os mesmos que nós criamos ou que outros criaram anteriormente a mim. A diferença é na questão da democracia, de como se lida com o Estado, com o governo, o aparelhamento do governo pelo partido, ou pelos partidos e, como consequência, um afrouxamento nas condições de credibilidade ou de moral. Aumentou muito, não é que aumentou o grau de corrupção, é difícil saber, mas se difundiu.

JRM - A corrupção tomou conta do noticiário.

E aí, sim, tem uma diferença. O Lula é leniente. Ele vai e diz: "Não é nada". Ele passa a mão na cabeça de todos que são acusados de corrupção. E isso tem um efeito de demonstração negativo para o país. Mas, por outro lado, ele tem qualidades e correspondeu a ele um momento de felicidade econômica. Eu fui eleito em 1994. Em dezembro de 1994 estourou a crise do México, que prejudicou profundamente o meu governo. No fim de 95 tivemos a crise consequente da estabilização da economia, a crise bancária, do Proer. Hoje todo mundo fala que o Proer era muito bom. Em 96 não teve crise. Em 97, crise da Ásia, em 98, da Rússia, em 99, a nossa mesma e a da Argentina. Em 2000 não teve crise. Em 2001 não só a crise da eletricidade, como a crise dos Estados Unidos, a econômica e a do 11 de setembro. Em 2002 a crise provocada pelo medo do Lula. Dos oitos anos, eu só tive dois anos sem crise; o Lula, ao contrário, terá, dos oitos anos, dois anos com crise.

JRM - Mas em compensação ele teve um momento muito ruim quando foi divulgado o problema do mensalão. No fim ele falou que não sabia de nada, e o PSDB ficou apreciando a situação.

Aí houve um cálculo político...

JRM - A pergunta é: houve algum acordo?

Não, nenhum acordo. Eu li outro dia que teria havido um acordo, que os ministros do Lula vieram falar comigo. De fato, na época da crise, dois ministros do Lula estiveram comigo e não sei se vieram por isso. Vieram conversar e não houve nenhuma proposta de nada, nem acordo de nada. A minha opinião na ocasião era a seguinte: a questão do impeachment é uma questão política, não é uma questão legal. Pela lei, no dia em que o Duda Mendonça declarou na televisão que recebeu US $ 10 milhões numa conta no exterior pra pagar a campanha, já está impedido. Pela lei não tem nem discussão, mas não adianta isso, tem que ganhar no Congresso. E eu acho que nós não iríamos ganhar. Porque só se faz impeachment quando a sociedade se mobiliza pra isso. O Collor foi uma decisão da sociedade. Isso nunca aconteceu no caso do Lula, porque o Lula tem uma história - líder sindical, pobre, migrante. O custo para o Brasil tirar pela via do impeachment um homem que é líder popular, trabalhador, seria muito alto, pensando historicamente. A responsabilidade de certos líderes é de preservar certos valores. Eu assisti a muitos países que se dividiram. Eu estava lá no Chile, estava no finalzinho, quando o Allende caiu e vi o que aconteceu com o Chile, eu vi a Argentina várias vezes, eu vi no Brasil no tempo do Getúlio, agora na Venezuela. Quando um país se divide ao meio e fica de morte um contra o outro são dezenas de anos em que a coisa não anda. Então sempre cuidei dessa questão com muita visão, muito mais histórica do Brasil do que partidária. A minha opinião naquela ocasião, não por acordo porque não houve acordo nenhum, era: não tem clima pra impeachment, o custo é muito alto.

RFC - Fala-se que o poder é inebriante. É verdade?

No meu caso acho que não viciou. Isso depende de cada um. A alguns inebria, fazem besteiras. É difícil ser juiz de si mesmo, mas no meu caso eu não creio que tenha mudado o meu jeito de ser. Os meus amigos são os que eu tinha antes do governo. Alguns dos quais do PT, da universidade. Nunca mudei isso. As pessoas com as quais eu convivo são as mesmas, o meu estilo de vida é o mesmo. Quando morreu a Ruth, o advogado nosso foi lá e perguntou: "O que o senhor tem para a partilha?" Eu disse: "Tenho este apartamento, uma casa em Ibiúna e algum dinheiro que ganhei de 2003 pra cá". Ele disse: "E o resto?" Eu disse: "Não tem resto". E ele: "Mas o senhor foi tudo na vida!" "Fui, fui tudo, fui senador, fui ministro, fui presidente duas vezes. A diferença é que eu não roubei".

RFC - Seu dinheiro hoje não é fruto da política?

O dinheiro que tenho eu ganhei depois que deixei a presidência. Quer saber um detalhe? Depois que deixei a presidência eu estava com um problema. Eu morava num apartamento e tinha outro onde estavam os meus livros. Daí eu vendi os dois e comprei este onde estou hoje, que é um pouco maior. Mas eu não tinha, vendendo os dois, dinheiro para comprar este onde estou. Aí eu fiz um contrato com a editora Record pra publicar um livro, A Arte da Política - que, aliás, me deu bastante dinheiro porque vendeu 100 mil exemplares - e eles me adiantaram R$ 100 mil ou R$ 150 mil, não sei ao certo. Eu tinha medo de não ter dinheiro depois que deixei a presidência. Eu não sabia que eu ia ganhar dinheiro com palestras, sempre falei de graça e continuo falando. Não mudei nada em meu modo de ser. A Ruth, então, era muito contrária a qualquer coisa que fosse diferente de uma pessoa normal, educada, classe média. Meu bisavô foi governador na época do Império, meu avô foi marechal, meu pai foi deputado, foi general. O poder nunca foi pra mim uma coisa que me deixasse enlouquecido. Eu gostei de ser presidente, de ser ministro, de mudar a economia, o Real, tudo isso dá uma certa satisfação. Mas não foi um sofrimento deixar de ser presidente. Já vi outros ex-presidentes reclamando, eu nunca reclamei.

JRM - Não entrou em depressão?

Nunca, nem nas crises. E sempre dormi bem, sempre nadei de manhã. Acho que o poder não é necessariamente inebriante. Quando deixei o governo, eu e a Ruth fomos para Paris. Tomamos um avião de carreira, sem ninguém, fiquei na casa de um amigo. Tinha o automóvel da embaixada à disposição. Mas, de propósito. passei a andar de metrô. Não precisava, mas foi por autoeducação. No ano seguinte fui com a Ruth para Washington, alugamos um flat. A mesma coisa, a embaixada tinha um carro à disposição. Às vezes uso, mas ia para o trabalho de metrô. Hoje tenho segurança, a lei manda, são mais pessoas pra me ajudar. Quando viajo, vou sozinho. Nem com assessores eu vou. Sou basicamente um professor de universidade. Eu me sinto incomodado de estar com um séquito.

RFC - O senhor sempre afirma que nunca foi um político profissional.

Eu não me sinto como tal. Quando deixei a presidência, passei a exercer atividades acadêmicas outra vez. Escrever livro, dar aula, a única diferença é que quando eu falo, eu ganho. O que não é mal. Não tenho nem aposentadoria, só da Universidade de São Paulo.

A assessora se posiciona discretamente ao lado do presidente e lhe diz que seu próximo compromisso no hic o espera e nos avisa que nossa uma hora de entrevista com FHC está prestes a acabar.

RFC - O senhor acredita nas engrenagens da política brasileira, nas boas intenções de quem a faz?

Isso é uma coisa complicada. Não é só na política brasileira. Tem-se uma separação do que se chama política e a vida, é uma tal dificuldade de conexão. Ficam tão isolados, tão à parte. Como o pessoal jovem se informa? É na internet. Temos 50 milhões de internautas. Tínhamos 100 mil antes, era só coisa acadêmica. O pessoal passa noite e dia na web conversando, interagindo sobre futebol, sobre música, sobre livro, sobre mulher. E política? Só em campanha. E o mundo da política está isolado da sociedade. Quem está no executivo é obrigado a reagir à sociedade, mas quem está no parlamento fica muito isolado e o que se chama de política é o parlamento, e o que os jornais chamam de política é a briga entre os parlamentares ou futuros candidatos. E no Brasil? É uma fofocagem como em toda parte. E você se cansa de ler aquilo ou então é corrupção que vira página criminal. Também cansa. Acho que no mundo todo a tendência é essa. Veja os Estados Unidos: contra Washington, contra Brasília, porque Washington também é o símbolo da chamada política nesse sentido. Então, eu acho que esse é um problema não só nosso. De repente dá certo, veja o Obama. Se conectou de que maneira? Usou instrumentos modernos, falou com os jovens, falou com os negros, falou com os que estavam fora, conseguiu chamar o pessoal. Numa proporção menor, o Lula fez isso simbolicamente com os operários. Desperta esperança, depois chega lá e fica igual aos outros.

JRM - O pior da crise econômica já passou?

Não, essa crise é muito séria, todo mundo está vendo. O epicentro é lá nos Estados Unidos, mas todas elas vieram de fora. A diferença é que se dizia que desta vez não nos pegaria. Que estávamos isolados. Não estamos não separados, hoje está tudo conectado, ainda que o epicentro seja lá. E ela quebrou o sistema financeiro mundial. Os bancos estão quebrados. Os bancos americanos estão quebrados, os bancos ingleses estão quebrados e o governo americano está fazendo tudo o que pode para a crise ser diferente da de 1929, agora eles deram muito dinheiro. Só que a crise não é só financeira, não é só das hipotecas. Tem crise no cartão de crédito, na indústria americana. Tem muitas crises juntas e eles estão dando mais dinheiro. Daí os governos reclamam: "Nós damos dinheiro e vocês não emprestam". E os bancos voltam a comprar papel do governo. E todo mundo está comprando papel do governo. No momento que os Estados Unidos estão fracos estão comprando mais títulos do FED. Quando terminar a crise financeira, vão olhar e ver o que sobrou. Vai sobrar uma enorme dívida do tesouro americano e isso pode provocar uma inflação, uma subida forte do dólar mais adiante. Nova complicação, novo aperto. Então não vejo a luz no fim do túnel. Está longe disso e aqui nós estamos no começo da travessia com efeitos graves. Nosso governo está sendo precipitado em dizer que o pior já passou. Isso não adianta, tem limites, não se pode ser tão contrário aos fatos. Está tendo desemprego, nunca houve uma queda tão grande na produção. É uma crise muito grave.

A assessora avisa: fim da entrevista.

JRM - O que o senhor acha das providências que o governo está tomando?

Já deveria ter reduzido os juros antes e teria gasto menos em gastos correntes. Mas, vamos ser francos, o PAC é ridículo. A parte do PAC que diz respeito a investimento público é menos de 1% do PIB. O resto vem de empresa estatal e privada. Não fizeram nada de estrada, nada de geração de energia, nada em infraestrutura.

JRM - A redução de juros ajuda na recessão?

Ajuda, mas hoje o problema é outro. É que o pessoal tem medo de investir. Com qualquer juro. E se abaixar em muito os juros teremos outro problema. É que no Brasil existe um sistema financeiro, em que o governo se endivida no real e se reduzir muito o pessoal tira o dinheiro.

A assessora, ligeiramente ríspida, decreta: nosso tempo com FHC acabou.

RFC - Presidente, obrigado, mas gostaríamos de fazer um segundo round, abordar outros temas...

Por e-mail podemos.

RFC - Por e-mail pode ficar um pouco frio.

Mas vocês têm um material um pouco quente aí, que você pode botar no molho.

RFC - Bem, vamos tentar.

Se vocês conseguirem romper a barreira que existe aqui de proteção a mim, ótimo!

JRM - Obrigado pelo seu tempo e pela entrevista.

Muito bem, espero revê-los.

Apesar de nossa insistência e do desejo do presidente em nos rever, não houve uma segunda entrevista. FHC teria compromissos inadiáveis nas semanas seguintes. Viagens pelo mundo, obviamente.