A vida de um ex-assessor de imprensa curdo que, aos 23 anos, se tornou soldado na guerra contra o Estado Islâmico
Foi em 30 de novembro de 2014 que Rawand Amjad Mziri, hoje com 25 anos, deixou para trás a vida que conhecia até então. Naquele dia, Rawand seguia por uma estrada de terra no norte do Iraque a bordo de uma picape 4x4. Como assessor de imprensa do Partido Democrático do Curdistão, ele tinha a missão de reportar aos seus empregadores as atividades de campo de quatro soldados peshmerga (termo usado para designar combatentes de origem curda), que estavam com ele no veículo.
No caminho, o grupo sofreu uma emboscada armada por homens do autodenominado Estado Islâmico; os quatro soldados foram alvejados, sendo que um deles morreu. Desesperado, e sem ferimentos, Rawand tentou convencer os colegas a realizar um contra-ataque; os sobreviventes, porém, não tinham condições de revidar. Foi aí que ele agarrou o fuzil AK-47 de um deles e disparou para todos os lados. Sua reação assustou os membros do EI, que bateram em retirada. Rawand se tornava um soldado. Mas mais do que isso: foi naquele momento que ele se passou a ser o triste e violento produto de uma guerra movida pelo ódio.
Rawand Amjad Mziri é curdo de origem sunita. Vive em Erbil, cidade que é a capital da região conhecida como Curdistão iraquiano. Os curdos são o maior grupo étnico do mundo sem uma nação – são cerca de 26
milhões de pessoas que têm idioma e cultura comuns, em uma região geopolítica que abrange Irã, Iraque, Turquia e Síria, chamada de Grande Curdistão. O Curdistão iraquiano é um pedaço autônomo dentro dessa macrorregião. Hoje em confronto com o EI, a área ao norte do Iraque teve sua história marcada por sofrimento – a cruel guerra química travada contra eles pelo governo iraquiano de Saddam Hussein é uma das páginas mais dolorosas da história do povo curdo.
Em 2003, quando os Estados Unidos depuseram Hussein, o Curdistão iraquiano parecia ter encontrado uma oportunidade para se desenvolver na era moderna. Embora o território continuasse a pertencer ao Iraque, os curdos conseguiram criar ali, na fronteira com Síria, Turquia e Irã, uma região autônoma com parlamento, ministérios, leis e um exército.
A exploração de petróleo financiava o desenvolvimento – shopping centers, arranha-céus, hotéis de luxo, aeroporto internacional, universidades, centros religiosos e serviços de saúde prosperaram. Era nesse clima de esperança que Rawand alimentava seu sonho de ser jornalista. Conseguiu um emprego como assessor de imprensa do Partido Democrático do Curdistão. Era um trabalho burocrático, por vezes tedioso. Até que caiu na emboscada.
Quando Mossul, uma das maiores cidades do Iraque, localizada 85 km ao norte de Erbil, foi tomada pelo Estado Islâmico, um dos mais temerosos grupos terroristas da atualidade, os recursos que financiavam o crescimento curdo foram realocados para defender a região. A prosperidade começou a ruir e com ela as esperanças de jovens como Rawand. Como ele, muitos agora atuam como soldados peshmerga nas frentes de batalha.
O Curdistão iraquiano assinou um acordo com os Estados Unidos para combater o Estado Islâmico. Além da expulsão do grupo terrorista daquelas terras, os curdos esperam com isso obter um reconhecimento internacional e a independência. Mas, em uma era de notícias descartáveis, esse povo corre o risco de cair novamente no esquecimento, embora seu sofrimento continue sem fim à vista. Para quem entra em contato com os curdos, no entanto, é impossível permanecer em silêncio.
Conheci Rawand por meio do Facebook, via indicação de colegas jornalistas que já haviam contado com os serviços dele como guia no Curdistão iraquiano. “A agenda dele vale como ouro por aqui”, diz em inglês Heiko Seibold, um soldado alemão que está lutando lado a lado com os curdos contra o Estado Islâmico. Junto a Rawand – que cobra em média US$ 300 diários pelo serviço de guia – e mais dois soldados alemães, jantamos em um hotel de luxo, o Classic Hotel, a poucos metros do consulado norte-americano em Erbil. São os alemães que pagam a conta. É um lugar supervigiado – seguranças portam armas pesadas em toda a área –, mas é também uma região a ser evitada por ser alvo de ataques terroristas. Em 2015, o consulado foi vítima de um ataque suicida do EI, que matou três pessoas e feriu outras quatro com um carro-bomba. No saguão do hotel transitam os senhores da guerra, pessoas que ganham muito dinheiro com o conflito, comprando e vendendo armas. Rawand se levanta e cumprimenta um deles, segundo diz, “um dos homens mais ricos do Iraque”.
Longe do conforto do restaurante, na estrada, Rawand ameniza o clima com bom humor. “Amigo, você precisa fazer uma foto minha estilo Hollywood”, pede de tempos em tempos, completando, aos risos: “Promete? Não deixo você voltar para o Brasil sem fazer esta foto”. Ele fuma dois maços de cigarros por dia quando está no campo de batalha e não deixou uma companhia o esperando. “Desde que entrei para ser voluntário peshmerga, nunca mais tive namorada. Só penso em guerra.”
Durmo entediado pela paisagem do deserto, enquanto Rawand dirige seu Chevrolet Optra branco e escuta músicas que saúdam os soldados na língua curda. Sou despertado apenas quando passamos pelos inúmeros chekpoints espalhados pelas estradas que rodeiam Mossul. “Eles acham que você é árabe”, Rawand ri.
Os curdos são islâmicos moderados. As mulheres gozam de mais liberdade que em outras culturas – podem dirigir, por exemplo. Muitas vezes, da parte deles, conviveriam sem conflitos com outras interpretações do islamismo. Mesmo o Estado Islâmico a princípio não provocou a ira dos curdos. Apenas quando eles viram seu território ameaçado é que se desencadeou uma reação. E foi aí que o ódio entrou em cena.
Pergunto a Rawand se ele já matou alguém. “Não sei, eu apenas atiro e não sei o que acontece depois”, diz. Comumente partimos do pressuposto de que quem está em uma guerra segue a máxima de “matar ou morrer”. “Eu morreria pelo meu presidente”, conta o ex-assessor, hoje soldado. “Sem dúvidas, me atiraria entre ele e uma bala.” Ele se refere a Massoud Barzani, presidente do Curdistão iraquiano. Novas eleições deveriam ter ocorrido em 2016, mas com a guerra a perspectiva é de que ocorram em 2018. “Os peshmerga ameaçaram abandonar as armas caso Barzani não fosse o presidente eleito”, conta Rawand, que não se importa que tal medida por parte dos soldados tenha implícito um viés ditatorial. “Por mim Barzani seria nosso presidente para sempre.” Embora tenha todo apoio dos soldados, o governo passa longe do exemplar – muitos homens estão sem receber salário há meses e precisam comprar a própria munição. A ideologia é o que os mantém de pé na luta armada.
Após três horas de viagem saindo de Erbil, chegamos à casa da avó de Rawand, na cidade de Al-Shikhan, onde pernoitamos antes de irmos para a zona de guerra. Rahima Mziri tem 71 anos, e sua casa fica a 50 minutos de Mossul e a 15 minutos da linha de frente, na cidade de Bashiqa. Rawand retira um fuzil M16 do carro e uma pistola que leva na cintura. Rahima, uma senhora simpática, parece ficar feliz em receber um ocidental em casa. Serve chá e pão; Rawand faz as vezes de tradutor enquanto maneja o fuzil. Fumamos alguns cigarros até que ele corta o dedo no mecanismo de disparo. Sua avó lhe prepara um pequeno curativo e logo volta a assistir a uma novela turca na TV.
No dia seguinte, acordamos à 6h da manhã. Entre a casa de Rahima e a linha de frente, passamos por três checkpoints, tão irritantes quanto necessários. Em alguns desses locais, ficamos apenas minutos; em outros, são até duas horas de espera. É nos checkpoints que apresentamos permissões de passagem para as autoridades. São sempre lugares ruins para ficar parado, já que são alvo constante de ataques. Qualquer carro que precisa passar por eles é revistado com cuidado, e não é possível dizer quando vem pela frente um carro-bomba.
Quando chegamos a Bashiqa, tudo está quieto. Soldados jogam cartas, fumam, andam de um lado a outro. Não há muito o que fazer até que alguém dispare o primeiro tiro ou lance uma bomba. É possível escutar os ruídos de caças no céu atirando bombas sobre o território ocupado pelo Estado Islâmico. Mas aqui há uma falsa sensação de paz. Se a máxima da teoria das relações internacionais está correta – a que diz que a paz é um intervalo entre guerras –, logo tudo pode começar a explodir. Um dos soldados me empresta seus binóculos e consigo ver a bandeira do EI hasteada do outro lado. Basta um disparo para que tudo mude.
Ando em volta até ouvir “não caminhe por aí”, na voz de meu guia. O alerta diz respeito às minas terrestres, artefatos explosivos disfarçados – a morte pode estar em um tropeço no que parece ser uma simples lata de refrigerante. Se o Estado Islâmico abandona uma área, deixa o local infestado de minas. Quando isso acontece, o lugar é evacuado pelas forças de coalização reunidas pelos Estados Unidos, revistado metro a metro, porta a porta e somente então liberado para que os moradores possam voltar para suas casas. E isso pode demorar meses.
Diferentemente das minas, uma coisa com a qual eu não deveria me preocupar, por ser um exercício absolutamente inútil, eram os snipers, atiradores de elite que podem acertar alvos a uma grande distância. Segundo os soldados, quando um desses atiradores lê em um colete à prova de balas a palavra “Press” (imprensa, em inglês), significa que é um alvo preferencial. Nos meses que se seguiram à minha visita ao Iraque, em outubro de 2016, 14 jornalistas foram feridos e dois foram mortos (Ahmet Haceroglu e Ali Risan).
Alguns dias mais tarde deixo Rawand e me junto a outros jornalistas com as forças especiais iraquianas, a Golden Division. Eles nos levam até a cidade de Al Qayyarah, subdistrito de Mossul. Um fuzileiro é destacado para nos acompanhar. Quando me apresento como brasileiro, ele imediatamente diz “Eu te amo!”, gargalhando. Conta que troca mensagens através de um aplicativo com uma namorada brasileira e que essa é uma das poucas frases que conhece na língua portuguesa. Faz questão de me mostrar uma foto dela no celular.
Naquela época, em outubro de 2016, o sol não iluminava Al Qayyarah fazia mais de 100 dias. Quando foram expulsos de lá, soldados do Estado Islâmico incendiaram poços de petróleo, deixando a cidade completamente coberta por uma espessa nuvem negra. A sensação térmica era de pelo menos 5°C abaixo da temperatura ambiente. Essa nuvem negra também ajudou os membros do EI a se esconderem dos ataques aéreos da coalizão.
O centro da cidade ainda tem moradores, mas muitos estão subindo em caminhões ou caminhando em busca de campos de refugiados. É nesses lugares que a maioria dos refugiados irá permanecer até que a guerra acabe, até que cada casa seja revistada. A periferia de Al Qayyarah parece um cenário de filme sobre zumbis, com ruas completamente desertas e prédios em ruínas.
O fuzileiro que nos acompanha aponta para centenas de cápsulas de bala espalhadas pelo chão de terra. Separa duas delas. “Está vendo esta cápsula à esquerda? Foi disparada pelos terroristas do Estado Islâmico. É de um fuzil AK-47, de origem russa. A da direita é de um fuzil M16, norte-americano, usado pelos curdos [fuzis AK-47 apanhados do EI também são utilizados pelos curdos]. Aquele homem que foi enforcado que acabei de mostrar é um civil iraquiano que provavelmente não seguiu as regras impostas pelo Estado Islâmico.” O corpo que vimos estirado no chão, a poucos metros de nós, tinha sinais de tortura.
Depois da passagem por Al Qayyarah, reencontro Rawand em Erbil, capital do Curdistão iraquiano. Ele parece animado. Tem esperanças de que o povo curdo conquiste a sonhada independência e retome o desenvolvimento. É, porém, um desejar frágil. Ninguém sabe o que irá acontecer caso o Estado Islâmico seja derrotado. Há conflitos cujas causas não se corrigem simplesmente porque a luta chega ao fim, e esse é um deles. A história do povo curdo é extremamente complexa. Os curdos avançaram além do seu território e não deverão recuar, ao passo que Iraque e países vizinhos não têm o menor interesse em sua independência. Ainda que o EI um dia seja sufocado, o conflito para os curdos possivelmente continuará em rebeliões, atritos entre o centro e a periferia, entre a tradição e a modernidade, entre a cidade e o campo, entre a perda e a conquista do poder. Entre as ruínas. “Eu lutarei até o fim”, diz Rawand.