O homem mais influente na batalha da legalização da maconha nos Estados Unidos é um intelectual esquisito que usa jeans careta
Tim Dickinson | Tradução: Ana Ban Publicado em 06/08/2013, às 13h12 - Atualizado em 27/09/2013, às 13h14
A força de propulsão por trás da legalização da maconha nos Estados Unidos – um frenético e inteligentíssimo filho de rabino que mal sabe distinguir os tipos de erva – acaba de entrar em território inimigo. Ethan Nadelmann, o diretor executivo da Drug Policy Alliance [Aliança de Política de Drogas], está na Califórnia, no bastião do conservadorismo, Orange County, para falar sobre a falência da Guerra contra as Drogas e por que o governo deveria deixar quem fuma maconha em paz. Um representante corpulento da Agência de Combate às Drogas [DEA, na sigla em inglês] olha feio para ele da plateia de um auditório na Universidade da Califórnia, em Irvine: está claro que esta gente não se reuniu para celebrar a cultura da cannabis. E é assim que Nadelmann gosta.
Durante mais de duas décadas, ele construiu um movimento de base ampla em prol de reformas partindo da força de uma ideia estratégica que é ao mesmo tempo simples e profunda: a luta contra leis que reprimem as drogas não tem nada a ver com a defesa dos direitos dos usuários de drogas – nem mesmo os de uma substância tão disseminada quanto a maconha. O objetivo dele é lutar contra os exageros federais e as perdas humanas desnecessárias que a proibição das drogas acarreta. Antes de Nadelmann se juntar à causa, a legalização da maconha era uma cruzada órfã de hippies e dos cultivadores fora da lei que pediam para que o governo federal os deixasse em paz. Hoje, em grande parte graças às iniciativas de Nadelmann, a maconha é totalmente legalizada em dois estados e está disponível para tratamentos médicos em mais 16. “Ele é sozinho o proponente de políticas mais influente em relação a todas as questões internas [dos Estados Unidos]”, diz John DiIulio, um acadêmico que recentemente passou para o lado de Nadelmann em relação à regulamentação da maconha. “Ele me venceu pelo cansaço”, resume DiIulio. “O que eu posso dizer?”
Magrela e com orelhas de abano, com um bigodinho ruivo que está ficando branco, Nadelmann, 56, dá a palestra sem anotações. Apesar de ele se conduzir com o destemor de um homem que apostou alto no lado certo da história, ainda não está exatamente pronto para comemorar. “Não parta do princípio de que já está no papo”, ele acautela. “A maconha não vai se legalizar sozinha.” Criado em um lar rígido, que respeitava o Sabá, no subúrbio nova-iorquino de Yonkers, Nadelmann já era versado na construção de movimentos muito antes de tocar em um baseado. Ele admirava a capacidade do pai de unir uma congregação diversa que incluía ao mesmo tempo seus colegas rabinos e integrantes que mal tinham saído da escola. “Ele tinha talento para envolver as pessoas mais sofisticadas do ponto de vista intelectual sem arrancar a cabeça das menos sofisticadas”, diz Nadelmann. A adolescência de Nadelmann sofreu uma reviravolta quando ele estava com 18 anos e partiu para a Universidade McGill, em Montreal, onde começou a fumar haxixe e abrir a mente com as ideias libertárias de John Stuart Mill. Inteligente e ambicioso, logo se transferiu para Harvard para uma maratona de estudos que o levaria a coletar graus de doutor em direito e Ph.D. em ciência política, além de mestre em relações internacionais na Faculdade de Economia de Londres.
Nadelmann se lembra do final da década de 70 como a primavera da maconha nos Estados Unidos. Nos anos da presidência de Jimmy Carter, acabar com a guerra federal contra a maconha parecia apenas questão de tempo: 53% dos calouros de faculdade apoiavam a legalização da erva em 1978. E o próprio Carter era a favor da descriminalização da droga. Mas esse breve momento de sanidade logo seria esmagado pela chegada de Ronald Reagan ao poder, que deu início a uma época que Nadelmann lembra como “um período de histeria nacional” em relação às drogas: qualquer exame racional dava apoio à ideia de tratar o uso abusivo de drogas como crise na saúde pública, mas a reação política foi conduzida por repressão e prisão. “Havia algo fundamentalmente errado”, ele diz. A depreciação moral dos usuários de drogas o preocupava: “Era como se fosse o macarthismo por meio da guerra contra as drogas”.
Nadelmann começou a investigar cada vez mais as iniciativas dos Estados Unidos em policiar o tráfico de narcóticos em escala global. O assunto parecia ser a intersecção óbvia entre relações internacionais e justiça criminal, mas, do ponto de vista acadêmico, era território não mapeado. “Não tinha ninguém dando conta disso!”, ele diz. Mantendo a irritação pessoal em relação ao “absurdo da guerra contra as drogas” para si, ele logo se estabeleceu como um dos maiores jovens especialistas no ramo, o que lhe rendeu um cargo de professor em Princeton, bem quando a guerra contra as drogas estava alcançando um ponto elevadíssimo. Em 1987, ele recebeu convite para dar palestra em uma conferência sobre proibição na Agência de Inteligência de Deefes, onde compartilhou o púlpito com figurões da DEA, do FBI e do Departamento de Estado. E, em ato de afronta descarada, ele escolheu o momento para externar suas verdadeiras crenças. Com o sangue pulsando nas têmporas, o rapaz na época com 30 anos se postou perante um grupo dos mais poderosos combatentes das drogas em seu país para informá-los de que só falavam besteira. “Vocês não são em nada diferentes dos agentes da Proibição da década de 20”, ele se lembra de ter dito. “As políticas de vocês não funcionam melhor do que as deles, e provavelmente estão causando ainda mais mal.”
Quase da noite para o dia, Nadelmann se destacou como um dos maiores críticos à guerra contra as drogas. Nos final dos anos de governo Reagan, as visões dele eram bem discrepantes em relação à regra. Uma reportagem do New York Times a respeito das ideias dele recebeu o título de “Debate sobre o indizível: será que as drogas devem ser legalizadas?” As provocações dele logo chamaram a atenção de George Soros. Um administrador de fundos de investimento de origem húngara, Soros tinha ajudado a financiar movimentos democráticos no Leste Europeu e agora estava ansioso para fazer avançar uma agenda de reformas no país que adotou como lar, começando pela Guerra contra as Drogas. Com o apoio dele, Nadelmann saiu de Princeton em 1994 para fundar o Centro Lindesmith, que recebeu esse nome em homenagem a Alfred Lindesmith, estudioso que passou décadas questionando a criminalização das drogas. Nadelmann começou a remexer nas entranhas da proibição às drogas, tentando ver em que ponto podia ser mais eficiente: “Começamos a fazer pesquisas de opinião e descobrimos algumas questões em que o público acreditava que a guerra contra as drogas tinha ido longe demais”. Número 1? A criminalização da maconha medicinal. Nadelmann resolveu bater nessa tecla. A Califórnia seria o campo de testes.
Liderados por um ex-hippie gay e pioneiro de casas de cuidados para doentes terminais de Aids chamado Dennis Perón, ativistas em São Francisco tinham elaborado uma ampla iniciativa em prol da maconha medicinal em 1995 que buscava disponibilizar a droga para pacientes com problemas tão desimportantes quanto enxaqueca. Mas a ambição de Perón para os usuários ultrapassava em muito o poder de suas arrecadações de fundos e também sua influência política, de modo que ele convocou Nadelmann para ajudar a qualificar a Proposição 215 (do uso da maconha para fins medicinais no estado) para votação popular.
Nadelmann foi buscar fundos junto a Soros, com a seguinte justificativa: “Há uma chance de abrir as coisas aqui”. Em sua primeira investida direta na política norte-americana, Soros se prontificou, assim como outros bilionários: Peter Lewis, chefe da empresa de seguros Progressive Insurance, e John Sperling, fundador da Universidade de Fênix, duas pessoas que tinham usado maconha por necessidade médica. A iniciativa na Califórnia, Nadelmann acreditava, “poderia mudar a face pública do consumidor de maconha” do estereótipo de um “adolescente que largou a escola com dreadlocks” para um paciente de câncer que está passando por quimioterapia. O problema era que os ativistas com que Nadelmann trabalhava se encaixavam exatamente no estereótipo. Enquanto Nadelmann tentava enquadrar a maconha medicinal como questão de bom senso, Perón insistia em afirmar que qualquer uso da maconha era medicinal.
Nadelmann logo percebeu que também precisava salvar a Proposição 215 dos ativistas. “Nós profissionalizamos a questão”, ele lembra. E assim chamou um consultor político californiano, Bill Zimmerman, para assumir a coleta de assinaturas e a campanha na mídia. A tarefa de Nadelmann – na época, assim como hoje – era manter panos quentes sobre o choque de culturas entre os ativistas contrários ao autoritarismo e os profissionais da política que estão no comando e no controle.“Fizemos o papel de policial bom, policial mau”, Zimmerman lembra. “Eu apresentava a lei e Ethan chegava para reparar as relações.” Os eleitores aprovaram a 215 com uma vitória de 56% contra 44%.
Determinado a ampliar o sucesso, Nadelmann recorreu mais uma vez aos bilionários, pedindo financiamento para a aprovação nacional da maconha medicinal. Em apenas 24 horas, ele levantou US$ 8,1 milhões para proposições a serem votadas que logo levariam o uso de maconha medicinal aos estados do Alasca, Washington, Oregon, Nevada, Colorado e Maine. Inicialmente, Nadelmann rebateu qualquer sugestão de que a maconha medicinal fosse um Cavalo de Troia para a legalização completa. Mas, à medida que o movimento foi tomando mais impulso, ele passou a falar mais abertamente sobre o longo prazo. O próprio Nadelmann levantou a questão, em uma entrevista para o New York Times em 2000. “Será que vai ajudar na direção da legalização da maconha? Espero que sim.”
Nadelmann se desligou do império de Soros em 2000 e se estabeleceu em organização própria, a Drug Policy Alliance – que de lá pra cá se transformou em empreitada de US$ 10 milhões, com 60 funcionários, escritórios em cinco estados e alcance internacional. Apesar de falar sobre a reforma da maconha em tons passionais, Nadelmann sempre acomodou a questão dentro de sua agenda mais ampla. Ele posicionou a DPA como o ponto de convergência em que reformistas da droga de todas as vertentes podem se se identificar como aliados em uma luta comum.
Seguindo a época obscura do governo Bush, uma nova oportunidade de fazer avançar a questão surgiu na Califórnia, em 2009. Outra geração de ativistas tinha se estabelecido: não eram mais hippies, e sim empreendedores teimosos como Richard Lee, um ativista preso a uma cadeira de rodas que era proprietário de uma distribuidora legal em Oakland (Califórnia) e tinha lançado a primeira instituição de ensino de comércio de maconha no país, a Universidade Oaksterdam. Lee investiu mais de US$ 1 milhão para qualificar uma medida em votação para legalizar, taxar e regulamentar o uso de maconha por adultos. Estava determinado a fazer com que a medida fosse votada em 2010, apesar de um ano de eleição presidencial (2012) ser mais favorável. “A coisa médica era tão não médica que parecia que precisávamos ser sinceros – e fazer avançar a legalização completa”, diz Lee. Sua iniciativa improvável ia contra a estratégia de Nadelmann de avançar a passos pequenos e nunca se arrepender. “Estávamos operando de acordo com um modelo em que uma iniciativa só era tomada se contasse com pelo menos 55% a favor”, ele explica. “Você vai às urnas quando o público já está do seu lado.” Mas, quando ele viu que não haveria como demover Lee, Nadelmann reexaminou as próprias regras. Logo começou a considerar a iniciativa de legalização como chance de “transformar a discussão nacional”. Como principal arrecadador de recursos, Nadelmann convenceu Soros a dar um grande passo adiante e apoiar a legalização total da maconha pela primeira vez e dar US$ 1 milhão à campanha. A Proposição 19 não venceu, mas assustou tanto os legisladores estaduais, que eles descriminalizaram a maconha como medida preventiva; a Califórnia hoje considera a posse de maconha como ofensa menor, equivalente a uma multa de estacionamento.
Avançando para o Colorado e Washington, em 2012, Nadelmann percebeu que a DPA era mais eficiente quando fazia pressão por trás. “Estamos aqui para fazer papel de liderança, e isso significa nem sempre se colocar de frente”, diz. “Você pode conquistar o mundo se deixar que outros levem o crédito”.
Quem colabora com Nadelmann há anos enxerga as vitórias de legalização como o ápice de quase duas décadas de estratégia meticulosa. Neill Franklin é um exrepresentante da lei dos narcóticos que hoje encabeça a Law Enforcement against Prohibition (Representantes da Lei contra a Proibição). “Sem Ethan”, ele diz, “não estaríamos falando da implementação da legalização da maconha no estado de Washington nem no do Colorado.”
Na manhã seguinte à palestra na Univeridade da Califórnia, Nadelmann me leva a uma reunião da Democracy Alliance, uma confabulação para doadores progressistas ricos, em um resort refinado à beira-mar em Laguna Beach, na frente do qual um par de carros esporte (uma McLaren e uma Ferrari vermelha) está estacionado. Nadelmann não é o tipo de pessoa que se veste para a ocasião. Em vez das roupas de linho ou trajes esporte bem passadinhos dos milionários que circulam por ali, ele parece ter saído de casa para comprar pão na esquina, com uma camisa polo cor de laranja e calça jeans larga e careta.
Nadelmann responde sobre seu próprio consumo de drogas com ar despreocupado. Cocaína? “Experimentei, mas sempre parecia que tinha tomado café demais e ficava com o nariz escorrendo.” Maconha? “Sou consumidor ocasional desde os 18”, diz, mas, afirma que não é especialista. “Sei pouco sobre o assunto”, afirma ele, acanhado. “Finalmente aprendi a distinguir a índica e a sativa.” Fala com mais avidez sobre drogas psicodélicas e compara o uso de cogumelos ao jejum do Yom Kippur: “Uma vez por ano, faz bem”. E já fez duas “viagens visionárias” sob a influência da ayahuasca. “É desperdício gastar drogas psicodélicas com os jovens”, acredita.
Apesar dos sucessos recentes do movimento, Nadelmann afirma que o fim da proibição “vai ser complicado, e precisamos ter disciplina”. Ele observa que os eleitores são receptivos a novas abordagens: “As pessoas querem que os impostos sejam bem empregados, e que a polícia foque em crimes reais. Esses são os dois argumentos campeões”. Mas ele também sabe que mudar a opinião pública não basta, nem de longe. O uso medicinal da maconha conta com 85% de apoio nos Estados Unidos, mas não tem defensores no Senado. Enquanto o governo Obama continua a avaliar sua reação nos estados de Washington e do Colorado, Nadelmann já está tramando seus próximos passos. A DPA está elaborando uma iniciativa no Oregon que pode ser apresentada aos eleitores já no ano que vem, e ele acredita que a Califórnia vai testar a ideia da legalização mais uma vez em 2016. “A única maneira de avançar”, ele diz, “é ir de estado em estado até o Congresso e a Casa Branca pedirem arrego.”
Nadelmann cultiva diversos aliados em Washington – incluindo a exporta-voz do Congresso, Nancy Pelosi, e o líder da coalizão republicana, Grover Norquist –, ao mesmo tempo em que orienta políticos nos estados. “Ele dá um pouco de tutano a pessoas eleitas para cargos”, diz o vice-governador da Califórnia, Gavin Newsom, que recentemente deu o passo ousado de se mostrar simpático à legalização. “Eu me incluo nisso. Não deveria ter demorado tanto.” A preocupação de Nadelmann é que os Estados Unidos simplesmente substituam os males do mercado negro pelos excessos do mercado livre. Espontaneamente, ele confessa: “Me preocupo, porque vejo nas reuniões que cada vez mais gente vem da indústria da maconha. Alguns estão preocupados com os princípios mais amplos. Outros só se preocupam com o dinheiro”.
O trabalho de Nadelmann permite a expansão legal de um setor econômico avaliado em vários bilhões de dólares nos Estados Unidos. Mas, para ele, isso é quase irrelevante: a preocupação é que interesses comuns de reguladores estatais e daqueles que lucram com a maconha possam se unir para criar a “Grande Maconha” – um setor concentrado com apenas poucos cultivadores em larga escala, para facilitar o monitoramento e a regulamentação por parte do governo. Esse seria um desfecho ruim para seus planos, ele acredita; marketing de massa e saúde pública não se misturam. Ironicamente, Nadelmann diz, a evidente determinação do governo Obama em acabar com a maconha em escala industrial pode ser uma salvação. “Se eu puder escolher, prefiro o modelo da microcervejaria ou da vinícola particular”, diz. “Não estou lutando pela ‘marlborização’ da maconha.”