O Brasil pode enfim estar pronto para discutir a legalização da maconha, mas parece improvável que mudará de ideia tão cedo
Antonio Burani e Regiane de Oliveira Publicado em 10/03/2014, às 19h00 - Atualizado em 22/09/2014, às 16h08
As notícias que chegaram recentemente do nosso vizinho Uruguai e dos estados norte-americanos do Colorado e de Washington certamente fizeram sonhar acordados os 1,5 milhão de brasileiros que fumam maconha com regularidade. Para esse exército de consumidores – aferido no Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) –, a possibilidade de seguir o exemplo do país vizinho e comprar legalmente até 40 gramas de erva pura por mês significaria um aumento na qualidade de vida. O estudo, concluído em 2012, também mostra que 7% da população adulta do Brasil, o equivalente a 8 milhões de pessoas, já experimentou a substância pelo menos uma vez na vida.
“Se é assim hoje no Uruguai, por que não pode ser assim aqui?”, questiona o produtor musical J.E.S, 38 anos, enquanto espera a vez de “dar um pega”. São quase 19h e ele está sentado junto a uma das muitas rodinhas que se formam todos os dias na idílica Praça do Pôr do Sol, no bairro Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. Fumar maconha no local ao fim de um belo dia já pode quase ser considerado uma atração turística oficial da cidade. “Nós não precisaríamos mais comprar esse fumo paraguaio prensado, carésimo, horroroso e cheio de amônia”, diz.
No caso do Colorado, desde 1° de janeiro de 2014 a maconha é produzida e vendida ao public legalmente enquanto os responsáveis pelo negócio recolhem impostos, em um sistema semelhante ao que muitos estados norte-americanos fizeram para a venda de bebidas alcoólicas. Na Europa, outros países já administram a questão há mais tempo. A atual legislação da Espanha permite a produção e o cultivo da erva em clubes, enquanto na Holanda é permitido ao usuário (a partir dos 18 anos) comprar a planta em lojas com essa finalidade. Mas foi o Uruguai o primeiro país a definir que o Estado é quem deve controlar a venda ao consumidor. Os aspectos da nova legislação – inclusive os detalhes de como serão concedidas as licenças estatais para a produção – devem ser definidos até o próximo 9 de abril. Essa questão, aliás, interessa muito a outros países que agora se veem obrigados a tirar a pauta da maconha debaixo do tapete.
Sergio Berni, secretário de Segurança da Argentina, divulgou recentemente que é a favor de descriminalizar a produção e comercialização de maconha. Em entrevista, ele afirmou que só descriminalizar serviria apenas para reduzir a carga legal do judiciário argentino, e diz que não acha ser possível impedir a venda e o consumo de drogas apenas com perseguição policial. No entanto, negou que o país seja um grande fornecedor, devido às condições climáticas desfavoráveis.
Entretanto, no Hemisfério Norte, enquanto Portugal já tratou de descriminalizar o consumo no início dos anos 2000, e os países do Caribe começam a se abrir para a discussão da legalização – afinal vale lembrar que mesmo na Jamaica a posse do produto ainda é ilegal –, a Espanha parece nadar contra a corrente. Segundo reportagem do jornal El País, mesmo tendo 80% dos casos de condenação por tráfico de drogas relativos à posse de maconha, o governo espanhol já anunciou que está decidido a acabar com os clubes de fumantes sociais que se multiplicaram nos últimos anos, especialmente na Catalunha e no País Basco. O plano de dar um passo atrás na lei está em linha com uma virada conservadora no país, que recentemente transformou o direito da mulher em fazer aborto em delito. Outro país que deve apresentar mudanças na lei é o México, que há anos enfrenta uma ferrenha guerra contra o tráfico de drogas, pressionado, principalmente, pelos Estados Unidos. Com a mudança na postura do vizinho rico em relação à maconha, legisladores mexicanos começam um processo para descriminalizar o consume da Cannabis no país.
E no Brasil? O que muitos se perguntam, sejam usuários ou não, é se existe realmente algum clima político, viabilidade econômica e estrutura de saúde pública no país para que os exemplos de outras nações sejam seguidos por aqui.
O que existe atualmente é certo consenso entre defensores e críticos da ideia da legalização no mundo científico, político e empresarial de que os brasileiros podem até enrolar, mas ainda não vão acender agora. O primeiro e maior obstáculo da causa da maconha no país é o de ordem política. Ao contrário do presidente uruguaio José Mujica, que governa sem tomar conhecimento de seus índices de rejeição e demonstra desapego pelo cargo, a president Dilma Rousseff só define sua agenda política depois de ler pesquisas quantitativas e qualitativas. O objetivo dela é um só: reeleger-se. Vale lembrar que, tanto no Brasil quanto no Uruguai, a aprovação à tese da legalização da maconha é baixíssima entre a população.
“A cada nova eleição, o Congresso Nacional fica mais conservador e reacionário. No nosso atual quadro político, seguir o exemplo do Uruguai é sonho de u ma noite de verão”, avalia o deputado carioca Alfredo Sirkis. Antes de migrar para o PSB no ano passado, ele construiu a carreira no Partido Verde (PV), unica legenda que ousou levantar a bandeira da descriminalização das drogas após a redemocratização. É importante registrar que do fim dos anos 1980 até hoje a legalização no Brasil deixou de ser um grande tabu. Foi cantada em prosa e verso nas rádios pela voz de Marcelo D2 e o Planet Hemp, ganhou contorno de movimento com as “Marchas da Maconha” e virou até causa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (protagonista do documentário Quebrando o Tabu). O debate, por sua vez, também tem se qualificado. Enquanto nas décadas anteriores a peça de resistência do discurso era a defesa dos direitos civis, hoje se discute a legalização na perspectiva da saúde pública e, em menor proporção, da economia. Nada disso, porém, parece sensibilizar suficientemente os eleitores.
“A correlação de forças do Congresso hoje caminha para o lado contrário: o de punir o usuário”, pontua Sirkis, 63 anos. Ele se refere a um Projeto de Lei do deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), que foi aprovado na Câmara no ano passado e propõe a mudança no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, além do endurecimento das penas para os pequenos traficantes. “O pessoal que defende a legalização diz que o primeiro passo é descriminalizar. Sou contra isso”, afirma o gaúcho Terra, 64 anos.“É preciso de um mínimo de constrangimento para o usuário.” O parlamentar lembra que, apesar de as punições serem leves, a lei atual é clara e define como crime o consumo de maconha. “E isso não pode mudar”, completa.
Ao defender seu ponto de vista, Terra, que também é médico com mestrado em neurociência, cita de cabeça dezenas de estudos para justificar a tese de que a legalização seria um desastre para o Brasil. “Vinte e cinco por cento da população mundial tem predisposição a ter algum problema psicológico que pode ser agravado pelo uso de maconha, como esquizofrenia, depressão crônica, hiperatividade e déficit de atenção”, ele diz, citando dados da Associação Americana de Psiquiatria. “A maconha é uma droga que atua no sistema nervoso e pode desencadear a esquizofrenia. É comum esse diagnóstico em adolescentes que consommé regularmente.” O deputado advoga a tese de que em caso de liberação a oferta aumentaria muito, o que levaria à consequente ampliação maciça do número de usuários. “A lógica é a mesma da epidemia: quanto mais oferta, mais gente doente e violência. No Brasil, a legalização não passa de jeito nenhum.”
A posição do deputado do PMDB é reforçada no parlamento pela poderosa bancada evangélica, que está sempre pronta para implodir qualquer iniciativa considerada “liberalizante”. “Foi um desastre aprovarem a legalização da maconha no Uruguai. Metade dos registros policiais das 22h às 3h da madrugada é causada pelo consumo de bebidas alcoólicas. Se a bebida causa isso, imagine a maconha”, discorre o deputado Pastor Everaldo, provável candidato do PSC (Partido Social Cristão) à Presidência em 2014.
Apesar de reduzido, também há no Congresso e no Senado um movimento que defende a legalização ou pelo menos o início da discussão do assunto. No final de fevereiro, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) assumiu a relatoria de um projeto de lei de iniciativa popular sobre a legalização do plantio doméstico da maconha e comércio em locais licenciados. O projeto de lei foi proposto por meio do portal e-cidadania do Senado, com apoio de 20 mil assinaturas eletrônicas. “Vamos analisar e, no final, chegaremos a uma conclusão: se devemos ou não legalizar, como fizeram
o Uruguai, as cidades norte-americanas e alguns países europeus”, declarou o senador.
A proposta do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) é ainda mais incisiva. “Defendo a legalização e a regulamentação da maconha no Brasil”, afirma o parlamentar de 40 anos. “Estou elaborando um projeto nesse sentido. Se a gente ficar pensando na configuração do Congresso, a gente não faz nada no Brasil.” Wyllys antecipou à Rolling Stone que a base da proposta serão as experiências no Uruguai e na Espanha, com clubes específicos para o consumo (veja página ao lado). “As pessoas precisam se associar”, explica. “Uma vez feito isso, podem usar lá mesmo ou levar uma quantidade para casa. O Estado controla a qualidade e a quantidade de tudo que é plantado. Com isso se controla o tráfico.”
O ponto de partida do discurso de Wyllys é que o usuário da maconha não pode ser comparado ao viciado em crack. “Dizer que a maconha é a porta de entrada para outras drogas é um discurso demagógico. Nem todo mundo que usa uma droga parte para outra”, diz. Ele argumenta, porém, que se existisse uma droga de “entrada”, ela seria o álcool, e não a erva. “Meu pai era alcoólatra, não passava um dia sem beber. Morreu de alcoolismo”, revela. “Eu bebo socialmente e não sou igual a ele.”
Enquanto dava os últimos retoques em seu projeto, Wyllys viu um colega do PV, o deputado Eurico Júnior, antecipar-se a ele. Na antevéspera do Carnaval, o parlamentar divulgou que está protocolando um Projeto de Lei quase idêntico ao do deputado do Psol. “Depois de décadas de pesquisas, estudos e debates sobre o uso e a legalização da maconha, o Partido Verde apresentou, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 7187 de 2014, que estabelece medidas para o controle, a plantação, o cultivo, a colheita, a produção, a aquisição, o armazenamento, a comercialização e a distribuição de maconha (Cannabis sativa) e seus derivados”, informou a sigla. Sinalizando disposição para uma disputa de paternidade da bandeira da legalização, o PV frisou que é “o único partido a apresentar propostas, de forma favorável e clara, em seu programa partidário, para a legalização do consumo da maconha no Brasil”. Tal qual o de Wyllys, o projeto do PV prevê que o Poder Público deve ser o responsável pela implantação da política de uso da maconha, dando prioridade às medidas voltadas ao controle e à regulação das substâncias psicoativas e de seus derivados. A produção, cultivo e colheita, segundo o PL 7187, propõe a permissão para “plantação, cultivo e colheita, em âmbito doméstico, de plantas Cannabis de efeito psicoativo, para consumo individual ou compartilhado no recinto do lar é de até seis plantas”, ou 480 gramas anuais.
Poderia ter sido só um churrasco entre amigos em Porto Alegre (RS), mas o chamativo nome de Copa Growroom e um vídeo liberado na internet criaram um imbróglio, ainda sem solução definida, entre o Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) e os participantes do principal campeonato brasileiro de maconha.
Do ponto de vista de organização e número de participantes, o evento está mais para um primo distante da Cannabis Cup, o festival que, desde 1987, premia variedades de Cannabis em Amsterdã (Holanda) e hoje tem braços nas cidades de Los Angeles, Denver, São Francisco e Seattle. A versão gaúcha, realizada em dezembro, contou com a presença de cerca de 130 pessoas e 25 competidores, que apresentaram amostras da erva cultivadas em várias regiões do Brasil a especialistas do assunto.
Uma notícia publicada no jornal Zero Hora ummês após o evento alertou a polícia e a opinião pública do Rio Grande do Sul, que já se mostra incomodada com as recentes mudanças feitas pelo Uruguai. Na internet, indignados com o evento chegaram a chamar a polícia de “bando de escoteiros”, exigindo providências. E elas vieram: William Latelme, fundador do Growroom, grupo que há 12 anos atua pela legalização da maconha no Brasil, foi convidado a se apresentar às autoridades para esclarecer o ocorrido.
Esse “esclarecer” é um território sombrio quando o assunto é o consumo de maconha no Brasil. Enquanto o Uruguai discute a criação de uma indústria produtora sob o amparo do governo federal, o Brasil ainda tenta diferenciar quem é o usuário e quem é o traficante. Na teoria, a legislação brasileira desde 2006 não criminaliza o usuário, mas enxerga a produção e a comercialização como atividades ligadas ao tráfico – uma dualidade que está no meio-termo entre levar um puxão de orelha da Justiça ou pegar 15 anos de prisão.
“O problema é que a lei é dúbia porque não diz a quantidade que se pode portar para ser considerado um usuário”, afirma Luciana Boiteux, professora e coordenadora de pesquisa de Política de Drogas e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo a pesquisadora, ainda é grande o número de usuários no país que são condenados por tráfico, “especialmente entre a população mais pobre, que não pode pagar para se defender”.
Os ativistas do Growroom, por outro lado, não parecem muito preocupados com ameaças de acusação de tráfico, afinal não é de hoje que eles enfrentam a lei em busca de conseguir legitimar o direito de produção para consumo. Emilio Figueiredo, advogado e ativista do Growroom, garante que não há motivo para alarde. “Não houve tráfico porque não houve venda”, diz. Mas ele admite que já houve casos em que usuários foram presos e até condenados como traficantes por cultivarem sua própria maconha. “Na maioria das vezes, o cultivador consegue apresentar argumentos corretos e é enquadrado como usuário. Inclusive, a Growroom oferece assessoria jurídica. No máximo, perde-se a plantação”, explica Figueiredo. E ficam no lucro, só com o tal “puxão de orelha”.
A situação pode mudar em 2014, com a expectative do julgamento do Supremo Tribunal Federal de um recurso pedido pelo Ministério Público para que seja decidido se é constitucional ou não o dispositivo da Lei 11.343/2006, que prevê punição, mesmo que só uma advertência, em relação ao uso de drogas para consumo próprio. Essa discussão mostra que o Brasil ainda está uns 20 anos atrás dos países pioneiros em políticas de saúde para o combate às drogas. Nos Estados Unidos, foi o próprio governo que passou a fornecer maconha para uso medicinal, sob cerradas críticas, é fato – por causa, por exemplo, do uso afrouxado da maconha medicinal para sintomas como insônia, que muitas vezes é uma forma de disfarçar o uso recreativo. “Os alarmistas falam que o uso medicinal é o caminho para a legalização e eles não estão errados, pois nos locais onde o uso medicinal foi regulamentado, fica claro que a maioria dos argumentos de quem era contra cai por terra”, diz Renato Malcher, neurocientista e professor do departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).
Um caso emblemático de mudança de opinião é o de Sanjay Gupta, consultor para assuntos médicos da emissora norte-americana CNN, que por muitos anos levantou uma verdadeira cruzada contra a legalização da maconha. Em 2012, ele produziu o documentário Weed, em que exibe conversas com médicos, especialistas, pacientes e produtores de maconha ao redor do mundo. De quebra, Gupta também experimentou a erva. O resultado foi bem diferente do esperado, obrigando Gupta a pedir desculpas por não ter baseado sua análise em pesquisas científicas e, de certa forma, ter atrapalhado as discussões sobre o assunto.
Em se tratando de Brasil, os partidários da legalização se declaram otimistas com os novos ventos trazidos pelos acontecimentos no Uruguai e nos Estados Unidos. “Hoje temos uma economia ilícita e descontrolada no Brasil. No Uruguai, a venda e a produção serão controladas pelo Estado, o que abre novas oportunidades de estudos”, diz Luciana Boiteux. “Além do mais, temos um grande número de pesquisadores interessados em avançar nos estudos com maconha no Brasil.”
O neurocientista Renato Malcher é um dos que estão na fila para conseguir realizar pesquisas com componentes da Cannabis. Na teoria, ao contrário do que se pode imaginar, a legislação brasileira contempla sim o assunto. A Lei 11.343 de 2006 afirma que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita exclusivamente para fins medicinais ou científicos. Mas, na prática, fazer pesquisa de fato já é outra questão. Dentre os pesquisadores, é praticamente consenso que o Brasil perdeu a janela de oportunidades aberta nas décadas de 1970 e 1980 por um grupo de análises liderado pelo médico Elisaldo Carlini, que chegou a publicar mais de 40 trabalhos científicos em revistas científicas internacionais sobre os canabinoides, o conjunto de substâncias existentes na planta Cannabis sativa. “Tivemos grupos que tentaram incorporar essas pesquisas na pós-graduação, mas o trâmite para conseguir determinados produtos é muito demorado”, lamenta Malcher. “Não precisamos mudar a lei, mas, sim, que haja um esforço para despolitizar o tema, porque o estigma [negativo da maconha] dificulta ainda mais a ação.” Trabalhar com uma planta considerada proscrita não é para amadores, especialmente porque sem o cultivo em larga escala não é possível estabelecer um processo de produção controlado. Aliás, na surdina, há pesquisadores que não se acanham em trazer ilegalmente os produtos para garantir as pesquisas.
Malcher faz parte de um grupo de pesquisadores da UnB que quer trabalhar com o canabidiol (CBD), uma das substâncias químicas encontradas na maconha e que não tem efeito entorpecente. O objetivo do estudo é ambicioso: o uso da substância no tratamento do autismo e da epilepsia. Para quem trabalha com pesquisas, o problema é que a eficácia dos procedimentos de aquisição precisa ser alta, ou o pesquisador é brecado pela burocracia e perde competitividade em relação a outras pesquisas do mundo. O produto das dificuldades de pesquisadores está nas estatísticas: a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulga que realizou apenas três emissões de autorizações para ensino e pesquisa com uso de maconha nos últimos três anos. “As solicitações referem-se à utilização da maconha em aulas práticas de toxicologia. Nenhuma teve a intenção de avaliar a eficácia terapêutica da droga”, informou a agência.
“A lei permite, mas não se criou a cultura de pesquisar porque é burocrático, falta um plantio controlado”, afirma Luís Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp. “Não adianta fazer estudo com maconha de apreensão da Polícia Federal, que sai do Paraguai, mas tem procedência diversa”, diz Tófoli, que acrescenta que o país vem avançando no campo de pesquisa da ayahuasca, usada em rituais religiosos como os do Santo Daime, e que em altas doses pode provocar alucinações. Desde 2006, a ayahuasca deixou de ser listada como droga e passou a ser regulamentada para fins religiosos. Pesquisas em roedores comprovam que a substância tem efeito terapêutico em casos de depressão e mal de Parkinson. Do ponto de vista de saúde pública, pesquisadores defendem que o uso da maconha pode até reduzir as contas do Estado, uma vez que estudos já comprovam a eficácia da erva para combater sintomas de pacientes com câncer, como dores e náuseas, e no combate à depressão e ansiedade.
Enquanto as pesquisas não avançam, as mais completas estatísticas brasileiras sobre o assunto maconha ainda saem da Polícia Federal. Em 2013, foram apreendidos 220,7 toneladas de maconha no país, um aumento de 26,6% em relação a 2012. Para ordem de comparação, a apreensão de cocaína no mesmo ano foi de 35,7 toneladas. Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo são as principais rotas do tráfico da maconha, que entra no país principalmente pelo Paraguai.
Se do ponto de vista científico as oportunidades ligadas à maconha no Brasil parecem óbvias, do ponto de vista econômico não parece haver tanta clareza. Há quem pergunte como um produto considerado tão útil ainda não foi alvo de pesquisas de grandes corporações. Malcher explica que a indústria farmacêutica ganha com a patente da criação de novos produtos, e não é permitido patentear componentes que já existem na natureza. “No modelo como se trabalha hoje, investir na maconha não é interessante, mas isso deve mudra no futuro”, diz. “Há empresas no Canadá, Estados Unidos, Israel e República Tcheca pautadas por uma nova forma de produzir, em que se incorpora a sabedoria de produtos da natureza e a biotecnologia.”
Entretanto, vez por outra, sobra para alguma grande corporação ser rotulada como futura investidora do segmento da maconha. Foi o que aconteceu com a multinacional Monsanto, praticamente acusada pelas redes sociais de querer patentear uma nova semente transgênica de maconha para explorar o mercado uruguaio – a empresa, por sua vez, nega qualquer pesquisa sobre o assunto no Brasil. E mesmo pesquisadores afirmam que o nome da Monsanto pode ser usado, de um lado, para dar legitimidade ao processo e, de outro, para despertar a desconfiança de legalistas, que poderiam estar sendo explorados por grandes corporações. “É um factoide para discutir quem ganha ou perde”, diz o professor Tófoli. “O que não significa que não dá para ganhar dinheiro com esse mercado. As empresas norte-americanas estão aí para provar que é possível. Mas não temos garantias de que será igual no Uruguai, ou mesmo no futuro, no Brasil.”
Entre Mitos e Verdades
Maconha faz mal mesmo? Especialistas comentam as afirmações mais frequentes sobre o tema
A maconha prejudica o cérebro dos adolescentes?
No cérebro do adolescente em formação pode trazer algumas complicações, mas não é verdade que elas seriam irreversíveis. Segundo o psiquiatra Marcelo Niel, especialista em dependência química da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o cérebro tem a capacidade de se recuperar. “O principal prejuízo é quando a pessoa está usando. A maconha causa déficit de atenção e memória. Mas, depois que ela para, em uma semana a função cerebral se restabelece em mais de 50%. Depois de seis meses, a maioria dos danos desaparece”, afirma.
Valéria Lacks, chefe da unidade de psiquiatria do Hospital Geral de Diadema (SP), concorda com Niel ao afirmar que os danos na memória são passageiros, mas ressalta que o uso da maconha durante a adolescência tem outros efeitos colaterais. “Nessa fase, o jovem está fixando suas experiências no ‘hardware’ do cérebro. Esse é um tempo de aprendizagem e forte interação com o meio ambiente. A maconha acaba tendo o efeito de anestesiar esse processo, o que posterga a formação.” No caso da memória, ela explica, o uso crônico e prolongado faz com que as pessoas retenham menos as informações básicas do cotidiano.
A maconha pode ser uma porta de entrada para drogas mais pesadas?
Esse argumento é discutível. De acordo com uma pesquisa recente da Unifesp, apenas 10% dos brasileiros não consomem bebidas alcoólicas – ou seja: são completamente abstêmios; outros 10% são dependentes, e cerca de 20% a 30% são abusadores, mas não dependentes; o restante, cerca de 50%, são os chamados “bebedores sociais”. O estudo mostra ainda que as primeiras drogas que as pessoas normalmente têm contato são álcool e cigarro, e não a maconha. “Se a teoria da porta de entrada fosse verdade, ela valeria para o álcool”, explica Niel.
A maconha é um “gatilho” para quem tem predisposição para depressão e esquizofrenia?
Sim. A maconha tem um efeito repressor do sistema nervoso. Para quem tem predisposição genética à esquizofrenia, ela pode funcionar como um fator desencadeante.
Maconha faz mal, mesmo se consumida com moderação?
Existe um risco sobre o qual não se fala muito: fumar e dirigir um automóvel. “A maconha causa déficit de atenção e retardo dos reflexos. Se beber junto, então, isso se potencializa. Não fazem campanhas contra por causa da ilicitude”, diz Niel, que reforça que o uso contínuo, diário e crônico da maconha pode causar déficit de atenção e de memória. No caso da droga normalmente comercializada nas chamadas “bocas”, o risco seria maior, uma vez que o fumo é prensado costuma ser misturado com outras substâncias, como a amônia.
Maconha causa mais males do que o cigarro?
Sim. Estudos da Fundação Britânica de Pneumologia apontam que o uso da maconha pode causar mais câncer e problemas circulatórios do que o cigarro.
Maconha causa dependência física?
Sim, mas com menos frequência do que o cigarro. “Pesquisas mostram que de 5% a 10% dos usuários são dependentes. Eles podem ter sintomas de abstinência”, explica Niel. No caso de quem fuma todo dia na hora de dormir, por exemplo, a falta pode causar insônia e ansiedade, além de mal estar e náusea. A psiquiatra Valéria Lacks pondera que o uso crônico causa dependência psicológica, mas não física. “Sem a maconha na rotina, o usuário sente-se nervoso e ansioso. Mas a falta dela não causa desequilíbrio no corpo, como o álcool, a cocaína e a heroína”, explica. No caso de drogas mais pesadas, diz, o corpo sente tanto a ausência que isso pode provocar sintomas físicos, como diarreia e tremedeiras.
A maconha proporciona benefícios médicos?
Mesmo deixando de lado anos de dados clínicos que comprovam a eficácia da maconha no alívio de dores crônicas, náusea, diarreia, glaucoma e outros males, há novas provas de que os compostos ativos da maconha são capazes de matar células cancerígenas. Guillermo Velasco, professor da Universidade Complutense de Madri, descobriu que o THC tem efeito para diminuir tumores em roedores com câncer de seio, fígado, pâncreas e cérebro. Ele espera brevemente testar a hipótese em humanos. “Acredito que veremos testes nos próximos cinco anos”, afirma. O clínico-geral e homeopata Luís Betarello acrescenta que a maconha também tem sido usada como terapia de efeito hipoglicemiante (baixa glicemia no sangue). “Nos Estados Unidos, ela vem sendo usada em pílulas como medicação auxiliar no tratamento de diabete”, diz.