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Uma faca de dois gumes

Enquanto Washington e Colorado criam regras e regulações para vender maconha legal, as prisões por porte da droga atingem recordes em outras cidades dos Estados Unidos

Bruce Barcott | Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 10/02/2014, às 08h31 - Atualizado em 02/06/2014, às 18h07

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Ilustração - Victor Juhasz
Ilustração - Victor Juhasz

A indústria da maconha legal nos Estados Unidos está estimada em US$ 1,43 bilhão – e deve atingir US$ 2,34 bilhões em 2014. Se esses números se mantiverem, o aumento de 64% tornará a maconha um dos setores de negócio de crescimento mais rápidos do mundo.

Sinais da nova era estão por toda parte. No estado do Colorado, lojas de maconha no varejo deram as boas-vindas a seus primeiros clientes em idade legal (21 anos) em 1º de janeiro. O estado de Washington deve licenciar a primeira das – programadas – 334 lojas de maconha até o final do segundo trimestre. Uma pesquisa feita pelo instituto Gallup no ano passado constatou que 58% dos norte-americanos apoiavam a legalização, um aumento de 10% em relação ao ano anterior. Alasca e Oregon provavelmente votarão pela legalização em 2014; Califórnia e cinco outros estados devem fazer o mesmo em 2016.

No entanto, esses ganhos tendem a obscurecer a realidade sombria do restante do país. Enquanto Colorado e Washington licenciam cultivadores e vendedores de maconha, policiais em outros estados continuam fazendo uma prisão por porte da droga a cada 42 segundos. Se você deixar cair 1 grama de erva na calçada em Seattle, um policial poderá te ajudar a pegar de volta. Faça isso em Nova Orleans e você poderá enfrentar 20 anos de trabalho pesado. O que se vê agora é um movimento político dando origem a um despertar econômico. A luta para encerrar a chamada “guerra contra as drogas” está criando uma das maiores oportunidades de negócio do século 21.

Em uma recente conferência sobre reforma das drogas em Denver, Ethan Nadelmann, diretor executivo da Drug Policy Alliance, reconheceu a transição desconfortável que ocorre atualmente. Ele apontou que aqueles que sofreram mais na guerra contra as drogas e os que lutaram contra ela podem não estar entre aqueles que irão lucrar com o fim do conflito. “As forças capitalistas em operação em um mercado proibicionista são violentas e brutais”, afirmou Nadelmann, “mas as forças capitalistas em operação em um mercado legal são ainda mais brutais em alguns aspectos. Sabemos que as pessoas que podem vir a dominar essa indústria não são necessariamente aquelas que fazem parte desse movimento”.

Esse pode ser um preço necessário a pagar. Para que a guerra contra as drogas acabe, as iniciativas do Colorado ou de Washington devem ter sucesso. Isso exigirá empreendedores que assumam riscos, e não líderes de movimento. Se os dois estados fracassarem, poderá ser impossível que outros estados os sigam.

Cada estado está testando duas maneiras de regular a maconha legal. Por enquanto, o Colorado tem uma indústria simples e verticalmente integrada de maconha medicinal na qual os varejistas cultivam e processam a maior parte do que vendem. O estado terá um limite flexível quanto à quantia de maconha que pode ser cultivada. Por outro lado, Washington está dividindo a produção em um sistema de três níveis que imita o da indústria do álcool, no qual os fazendeiros vendem para os processadores, que vendem para os varejistas, que vendem para os consumidores, e o estado limita a quantidade que pode ser cultivada.

Há outras peculiaridades. O Colorado permite o cultivo caseiro em pequena escala; Washington, não. O Colorado concedeu às operações de maconha medicinal (MMJ) existentes a prioridade nas licenças para uso adulto. Washington não, forçando proprietários de MMJ a uma loteria de licenças com investidores novatos que nunca tinham plantado ou cultivado uma planta sequer.


Nas semanas e nos meses antes do ano novo de 2014, também conhecido como “Dia Legal 1”, a indústria da maconha no Colorado funcionava como um relógio. Para ter um gosto do primeiro sistema estadual legal do país, passei um dia com Tripp Keber, a personificação do futuro do negócio da maconha. Em 2010, esse ex-incorporador de imóveis de 45 anos fundou uma empresa chamada Dixie Elixirs & Edibles. A Dixie faz refrigerante, doces e bolos com infusão de THC e os vende para dispensários de maconha medicinal em todo o Colorado. Em apenas três anos, Keber fez da Dixie uma das principais marcas da indústria e, agora, tem ações proprietárias em 17 empresas relacionadas à cannabis, incluindo três dispensários de maconha medicinal que estão prestes a se tornar lojas de varejo para uso adulto.

“No Colorado, 100 mil pacientes movimentaram uma indústria de maconha medicinal de US$ 300 milhões no ano passado”, ele afirma. “Agora, pense no mercado para uso adulto. Estudos demonstram que cerca de 10% do público tem uma relação com a cannabis. 10% dos 5 milhões de habitantes do Colorado são 500 mil pessoas. Recebemos 60 milhões de visitantes todos os anos. Mesmo se apenas 5% desses turistas fizessem uma compra, isso representaria 3 milhões de pessoas por ano.”

Há quatro anos, o cenário da maconha medicinal no Colorado era a imagem do caos. “Sem regulações estaduais ou municipais, aconteciam coisas tremendamente suspeitas”, conta Sam Kamin, professor de direito na University of Denver que pesquisa sobre política de maconha. Roubos e assaltos a mão armada não eram incomuns. Oficiais da força de combate aos narcóticos (DEA) suspeitavam que algumas lojas eram abastecidas por cartéis internacionais de droga. O Colorado reverteu o jogo em 2011 com regras que exigiam que donos de dispensários obtivessem inscrição estadual, passassem por uma checagem de histórico criminal, pagassem impostos, instalassem sistemas de segurança, cultivassem 70% de seu próprio produto e rastreassem atentamente o inventário. Os funcionários públicos estaduais não estavam preocupados em maximizar a receita fiscal. “Para eles, tratava-se de facilitar a regulamentação da indústria”, diz Henry Wykowski, ex-procurador federal que agora opera uma das principais firmas de advocacia na indústria da cannabis. “A integração vertical eliminou a necessidade de lidar com diversas entidades na cadeia.” As novas regulações eliminaram os maus participantes do setor, que não conseguiram ter seu histórico aprovado, e os pequenos proprietários que não conseguiram aumentar a produção. Só os fortes e limpos sobreviveram.

Perto do final do dia, Keber se junta ao time de marketing da Dixie Elixirs na nova fábrica da empresa ao leste de Denver, onde a diretora de marketing, Lindsay Jacobsen, 31 anos, revela quatro designs para as novas garrafas de alumínio do refrigerante Dixie. As regulações para uso adulto do Colorado exigem embalagens opacas, então as garrafas de vidro da empresa logo serão trocadas. “Ainda estamos brincando com a cor”, diz Lindsay. “Queremos algo sofisticado, mas divertido, sem ser jovem demais.”

Jacobsen direciona a conversa para o conteúdo de THC da bebida: 75 miligramas. Colorado e Washington não estão apenas implantando uma indústria regulada da maconha – os estados estão abrindo dois dos maiores experimentos de dosagem de psicotrópicos já conduzidos. Os dois estados limitaram a maconha incluída em alimentos e bebidas a 100 miligramas de THC por pacote. O número redondo já diz tudo. Quando se trata de dosagem e o que os adultos conseguem suportar, ninguém tem certeza de nada. Parece haver uma grande diferença entre fumar, inalar, comer e beber em termos de quanto THC vai para a corrente sanguínea, mas “a ciência ainda não chegou lá” em termos de saber qual poderia ser um limite apropriado, diz Mark Kleiman, professor de políticas públicas da Ucla que foi consultor do comitê de controle de bebidas alcoólicas de Washington sobre seus regulamentos quanto à maconha. Não chegou lá, claro, porque o governo norte-americano tornou praticamente impossível estudar a maconha até agora. Então, estabeleceu-se um limite de 100 miligramas de THC por brownie.


Algumas semanas depois, encontro com Pete O’Neil, um empreendedor independente que quer entrar no negócio da maconha no estado de Washington. O’Neil já comandou um clube de comédia em Fort Lauderdale e um salão de beleza para animais de estimação em Manhattan. Agora, está abrindo a C & C Cannabis Company, um empreendimento de maconha no varejo – o nome é uma homenagem aos comediantes – e notórios maconheiros – Cheech e Chong.

Embora o estado só comece a aceitar inscrições para licenças daqui a duas semanas, O’Neil já arrendou duas lojas nos arredores de Seattle. O estado limita titulares de licenças a ter, no máximo, três lojas, para evitar a consolidação do mercado por poucos (e grandes) participantes.

Embora Seattle tenha apoiado mais de 100 dispensários de maconha medicinal em 2012, o comitê de controle de bebidas está licenciando apenas 21 lojas de maconha para uso adulto na cidade – aproximadamente o mesmo número de lojas de bebida comandadas pelo estado que atendiam à cidade antes de 2012, quando o governo deixou o negócio de bebidas. Portanto, essas licenças são consideradas os “21 bilhetes premiados”. Para entrar nessa loteria, os candidatos do varejo tiveram de mostrar ao comitê um compromisso de arrendamento até 20 de dezembro. Nas semanas anteriores, as ruas de Seattle estavam tomadas por empreendedores da maconha buscando espaço para alugar. Uma loja só é considerada legal quando está a pelo menos 300 metros de distância de uma escola ou creche. É uma aposta arriscada: se o investidor não conseguir uma licença, poderá ficar preso aos pagamentos de arrendamento e sem a loja.

Pode parecer que o estado de Washington está abrandando suas leis sobre maconha. Na verdade, está endurecendo-as. Washington nunca colocou sua indústria de MMJ sob controle regulatório como o Colorado. Não há registro, leis de segurança nem requerimentos fiscais. “O pessoal da maconha medicinal está tendo de passar pelas dores do crescimento que o Colorado já superou”, diz Alison Holcomb, diretora de justiça criminal na American Civil Liberties Union (Aclu) em Washington e autora da Iniciativa 502, a medida de votação que liberou o caminho para a maconha legal em 2012. “Atualmente, muitos deles têm um modelo de negócios que não envolve atender a exigências regulatórias ou até pagar impostos. Isso dá uma margem de lucro muito boa. Agora, eles estão entrando em um sistema no qual os concorrentes talvez tenham muito mais esperteza de negócios, e o lucro poderá ser menor.”

É o preço da maconha que ditará tais lucros. Erva de alta qualidade atualmente é vendida no varejo por US$ 250 a US$ 300 a onça (28,35 gramas). No entanto, no longo prazo, esse preço “pode cair até 80% antes da taxação” se a legalização se firmar, diz Rob MacCoun, professor da UC Berkeley que estuda leis e mercados da maconha.

Maconha barata é ruim para os cofres estaduais. O esquema de maconha do estado de Washington contém os mais altos impostos sobre a erva já submetidos a votação pública. O estado abocanha 25% em cada nível de seu sistema de três camadas e se estima que possa recolher cerca de US$ 400 milhões em impostos por ano. O desafio dos elaboradores de políticas estaduais é chegar a um preço “ideal”, um valor influenciado por impostos suficientemente baixo para acabar com o mercado negro, mas suficientemente alto para desencorajar uma alta no consumo. Não é preciso superar o preço das ruas, mas sim chegar perto. “A maioria das pessoas quer cumprir com a lei”, diz Holcomb. “Se você lhes der uma chance de não serem criminosas, elas não serão.”

Há mais um fator: Washington está limitando sua safra inicial de maconha em 92.900 metros quadrados. Isso dá 18 hectares, maconha suficiente apenas para atender a um quarto da demanda estadual estimada (a ideia é evitar um superávit, que pode estimular contrabando). Os varejistas não podem importar de outro estado, então, quando a erva acabar, acabou – o que significa que os preços não cairão tão cedo.

A maconha é legal no Colorado e em Washington, pelo menos até o presidente Barack Obama deixar o cargo, em janeiro de 2017. Os dois estados têm exatamente três anos para mostrar ao restante dos Estados Unidos que é possível haver um mundo saudável e seguro após a legalização. Não importa muito qual sistema funcione, desde que um deles funcione. Então, será possível marcar 2014 como o ano em que o controle da maconha passou de cartéis de drogas e traficantes para as mãos do controle governamental e de comerciantes.