Hebe Camargo tornou-se ícone definitivo da hospitalidade televisiva ao transformar a rotina profissional no trabalho de uma vida
Na saída da igreja, duas senhoras – mãos dadas, dedos entrelaçados – comentam, preocupadas, sobre o avanço do crack entre os jovens brasileiros. A cena em questão não foi protagonizada por mulheres anônimas em um domingo qualquer de uma cidadezinha do país, mas pela presidente Dilma Rousseff e pela apresentadora Hebe Camargo no início de 2011.
O momento de comadres encerrou uma das mais espetaculares entrevistas televisivas já concedidas por um chefe de estado brasileiro – porque, quando o entrevistador bate palmas e diz “êêê” diante de um plano de governo, isto é espetáculo. Ali, não havia nenhum amador envolvido: para Hebe, estreando em uma nova emissora após quase 25 anos no SBT, era a chance de mostrar que era independente da antiga casa; para a RedeTV!, que acabara de contratar indiscutivelmente seu maior nome, a oportunidade era de provar que tinha munição para atrair a presidente e uma estrela; e, para Dilma, então recém-eleita, era uma brecha para humanizar sua imagem durona.
Mas, até chegar ao passeio de mãozinhas unidas que sucedeu uma conversa sobre a santa favorita de cada uma, aqueles foram quase 40 minutos de exibição exemplar do domínio transformador que Hebe possuía sobre as situações e sobre seus convidados. Mesmo no Palácio da Alvorada, arranjou-se um sofá para oficializar que, ali, quem recebia era ela. Aliás, onde se armava o sofá de Hebe era o detalhe de menor importância, já que a recepção era sempre na casa dela – a televisão. Começa agora a primeira fase da TV brasileira sem Hebe Camargo.
Não havia amadores na produção da entrevista com Dilma. Afinal, TV é um negócio milionário. Mas não há roteiro que preveja alguém perguntando a um chefe de governo: “Como é que você dá conta, meu amor?” Ou que ensine como reagir a uma declaração como “pim pum pim pá” – expressão elogiosa da apresentadora loira à assertividade da presidente, que nesse momento dava risada, lisonjeada e confusa. Quem imagina que, ao apresentar o tour pelo palácio presidencial, receberá dois braços agarrando o seu? O que fazer agora? Agarrar de volta? É apropriado? Para Dilma, quais seriam as implicações políticas de se andar abraçadinha com uma malufista histórica como Hebe – que usava o PIB de um pequeno país nas orelhas – enquanto anunciava seu projeto de erradicação da miséria? A presidente passou minutos com o braço duro e esticado antes da vitória da cordialidade da estrela de Taubaté. Pouco mais de um ano depois de ter cedido ao entrelaçamento dos dedinhos, ao lamentar a morte de Hebe em nota oficial, Dilma referiu-se a ela como “minha querida amiga”.
Amiga, sim: amigos viravam quase todos que passavam por aquele sofá. Porque Hebe não tinha entrevistados, mas sempre teve convidados. E este é o primeiro de seus dois grandes talentos; ela nunca foi entrevistadora, nem jamais foi apresentadora – descontando a bissexta atração musical em playback, não havia o que se apresentar em seus programas. Ela já até foi humorista e cantora, mas mais por ofício que vocação. Hebe era uma verdadeira anfitriã, e o que melhor fazia era receber bem.
A tão citada espontaneidade de Hebe Camargo, que hoje paradoxalmente virou fórmula controlada e linha editorial de dezenas de outros programas de televisão, brotava desse fato simples que o programa dela era apenas Hebe sentindo-se em casa e recebendo convidados para entreter e serem entretidos – a simples e cada vez mais rara arte de receber bem. Em vez de um elogio chapa-branca, buscar algo que mereça elogio de verdade, embora a intenção seja mesmo agradar (“pele bárbara”, ela disse sobre Dilma); as famosas rosas colombianas com que enfeitou por tanto tempo seu cenário/lar; os temas dos papos, algo entre o malicioso e o infantil; a presença das amigas de sempre ao redor.
Tudo isso provavelmente explica a multidão quase unânime e ultra-heterogênea de xodós que Hebe arrastou em vida. Voltar-se contra seu anfitrião é provavelmente a última fronteira do caráter humano – não há livro sagrado que não considere a hospitalidade idem. O resultado de ser bem recebido é gratidão (sempre) e entretenimento (neste caso).
Assim, a morte de uma celebridade paulista milionária e ostentadora, ícone de uma singular direita festeira, é publicamente lamentada pela deputada comunista Leci Brandão, por exemplo, enquanto galerias históricas de seus selinhos mostram bitocas em nomes tão diversos como MV Bill e Rita Lee. Quem é bem tratado sabe que ideologia não é contagiosa. Nem a fronteira do dinheiro resistiu: há dois anos, quando foi diagnosticada com câncer pela primeira vez, Hebe foi ao programa do Faustão, na TV Globo, para receber homenagens dos colegas da concorrência.
Ser uma pessoa naturalmente otimista e socialmente agradável foi o ponto de partida para transformar isso no seu grande foco durante a vida pública. As declarações de Hebe sobre a alegria, e sua opção pela alegria, vêm desde o famoso “pobrete, mas alegrete” de sua infância, até as variações do “alegria atrai alegria”, que repetiu incansavelmente.
O segundo talento de Hebe é ter decidido ser assim. Em tudo, sua figura se mistura com todos os clichês sobre paulistas. Do amor por Paulo Maluf ao deslumbramento de viagens a Miami; da origem rigorosamente caipira (de Taubaté) ao comportamento em que a palavra ganha sua versão jocosa. Em tudo, e também no clichê positivo: talento e espontaneidade à parte, Hebe é o fruto do trabalho dela mesma. Uma das loiras mais icônicas do Brasil, ela escolheu ser assim porque era mais do que a Moreninha do Samba. O glamour exagerado que virou sua marca registrada era comprado por ela: as insanas joias de Hebe não eram presentes nem herança, eram o destino de seu salário.
É comum, nos tributos a grandes medalhões, especialmente nos póstumos, que tudo seja tratado como mágica, que as pessoas sejam descritas como portadoras de dons divinos. Uma injustiça, muitas vezes, com o trabalho de uma vida – como o que foi realizado com perfeição por Hebe Camargo.