Maior do que Deus?
Nada é sagrado para o obsessivo-compulsivo e controlador Ricky Gervais, que debocha de tudo: de Hollywood ao Todo-Poderoso
Por Erik Hedegaard
Publicado em 11/07/2011, às 15h50Leia abaixo um trecho da matéria publicada na edição 58 da Rolling Stone Brasil, nas bancas a partir de 8 de julho
Sentado em seu escritório em Hampstead, Londres, com os pés na mesa, tênis pretos balançando, cabelo penteado para trás como sempre, cercado por pouca coisa, nada realmente pessoal ou aconchegante, parecendo levemente irritado e bastante convencido, Ricky Gervais diz que não consegue entender o porquê do burburinho. Ele debochou de alguns astros do cinema ao apresentar o prêmio Globo de Ouro de 2011. E daí? Por que todos estão chateados? "Quer dizer, se você não pode provocar as pessoas mais ricas e poderosas do mundo, quem vai ser o alvo de suas piadas?", alega. "Eram piadas de seis ou sete frases, coisas que escrevi em uma hora. Não foi nada." De repente, tem uma ideia. "Vamos repassar um por um: Johnny Depp não se ofendeu. Falei com ele umas cinco vezes desde então; Hugh Hefner tuitou que não estava ofendido; não consigo imaginar Bruce Willis se ofendendo. Não fiz nada de errado. Sei que não!" Ok, mas e quanto à piada sobre a cientologia, uma referência vagamente discreta sobre os boatos de que Tom Cruise é gay? Gervais, 49 anos, inclina-se para a frente, raivoso. "Nunca mencionei Tom Cruise!", grita. "Nunca fiz menção a alguém! As pessoas é que especulam de quem falei!
Nunca deduraria ninguém, isso é horrível!" Ele continuaria falando, mas também tem uma bexiga pequena, o que o força a parar agora e "dar uma mijada", como diz. Dois minutos depois, joga-se de novo na cadeira. "Tom Hanks e Tim Allen, tudo bem. O problema com aquela piada é que, embora Tim Allen seja um dos atores cômicos mais bem-sucedidos do mundo, quem ficaria bem perto de Tom Hanks? Era só o que eu estava dizendo." Gervais faz uma pausa, batuca com os dedos. "Na verdade, Tim Allen pode ter ficado meio chocado com isso, e, se esse é o caso, desculpe, mas não vou pedir desculpas pela piada. Ela tem base. Minhas intenções foram boas!"
Nunca peça desculpa - esse parece ser um dos lemas de Ricky Gervais. Outro lema pode ser: tire um sarro da religião sempre que possível, como também fez na premiação, dizendo: "Obrigado, Deus - por ter me tornado um ateu!" Gervais está sorrindo agora. Os incisos pontiagudos estão úmidos e brilhantes. "Tá, talvez esse tenha sido um mau uso da plataforma, mas não me importo", afirma. "Todas essas pessoas que agradecem a Deus quando ganham um prêmio, tipo: 'Deus me ajuda mais do que outras pessoas' - isso é ridículo. Eu penso: 'Verdade? Ele estava do seu lado? Odiava o outro concorrente, hein? Uni, duni, tê...' Eu só estava tentando redirecionar a balança! De qualquer maneira, só duas coisas fazem meu sangue ferver: fanatismo religioso e crueldade contra animais. Eu vibro quando um toureiro é chifrado até a morte. Dane-se ele. Pessoas que gostam de esportes sangrentos são idiotas e abomináveis." Tendo dito isso, Gervais dá um salto e vai dar uma outra mijada. Volta mais uma vez, destila fel novamente, justificando suas ações no Globo de Ouro e, em geral, inocentando-se totalmente, dizendo coisas como: "A culpa é o meu inferno, então não quero viver sabendo que fiz algo ruim".
Mais tarde, depois do dia de trabalho, Gervais vai para casa relaxar em um pijama surrupiado da primeira classe da British Airways, bebe algumas taças de vinho, liga a TV, e talvez assista a algum programa sobre a natureza com Jane Fallon, namorada dele há 27 anos, mas só consegue relaxar totalmente depois de fazer uma coisa: ele aperta um botão e venezianas de aço corrugado se fecham em toda a casa, cobrindo as janelas. Agora, ele está vedado lá dentro, ninguém pode atingi-lo. "Elas me envolvem em meu bunker à prova de tanques", diz alegremente. "O lugar se torna uma sala do pânico de metal de 550 metros quadrados. Tem uma piscina coberta, um campo de golfe coberto, academia, comida. Se houvesse uma rebelião líbia, eu nem teria de sair." Esse é outro aspecto sobre Gervais. Ele é muito, muito estranho.
Até agora, os britânicos foram os maiores beneficiados da esquisitice de Ricky Gervais. Em 2001, por exemplo, ele foi o pioneiro da "comédia do desconforto" no Reino Unido com seu seriado The Office, com ele mesmo no papel de chefe sufocante e idiota; então, dois anos depois, Gervais, líder de audiência e transformado em astro, de repente cancela o programa. Do nada. Dois anos depois, fez o mesmo com Extras, no qual fez o papel de ator sufocante e idiota de poucas falas; depois de 12 episódios e um especial, acabou. Aparentemente, é assim que ele funciona. Tem um escopo de atenção minúsculo e sempre está de olho no que vem a seguir. Está escrevendo livros para crianças (Flanimals). Estrela filmes (Ghost Town, O Primeiro Mentiroso). Está em turnê fazendo comédia stand-up (principais tópicos: pedofilia, Holocausto, crianças com câncer - diversão pura!). Reagiu à notícia de que Steve Carell saiu da versão norte-americana de The Office depois de sete anos, dizendo: "Provavelmente esperam que eu, como produtor executivo do seriado, tente persuadi-lo a ficar, mas mandei um e-mail dizendo 'Acho que você está fazendo a coisa certa'". Está fazendo o podcast mais popular da história dos podcasts, que conta basicamente com ele e Stephen Merchant, seu colaborador constante, provocando e detonando o aparentemente estúpido colega Karl Pilkington. Transformou esses podcasts em um programa de TV animado na HBO chamado The Ricky Gervais Show, que já teve duas temporadas. Também com a HBO, participou de um especial chamado Talking Funny, com ele, Jerry Seinfeld, Louis C.K. e Chris Rock, falando honestamente sobre o negócio da comédia. Logo mais à frente há um novo programa, chamado Life's Too Short, estrelando o anão britânico Warwick Davis representando um ator semelhante ao de Extras. Naturalmente, Gervais estará nele também. Está em todos os lugares. É o maior nome da comédia contemporânea. A polêmica do Globo de Ouro, longe de desacelerá-lo, pode tê-lo tornado ainda mais popular. "Você de repente está na cabeça das pessoas de novo", diz. "Normalmente, é preciso matar e comer alguém para obter tanta repercussão nos Estados Unidos."
Ricky está de volta ao escritório agora, de pé, andando e falando ao celular, conversando com Jane, perguntando se ela não se importa de listar as falhas dele. Esses defeitos fazem parte do que ele é hoje - ele os aceita -, mas quer ouvir dela. Será engraçado. "Diga a verdade e farei elas parecerem um pouco melhores", pede. "Tagarelar constantemente? Bom, você faz isso também! O que mais? Você tem de saber! Ah, então não escuto? É porque sou um gênio, Jane! Barro no tapete? Isso é ser desastrado, e não sou desastrado." Ele parece ter uma resposta para tudo. Então: "Um pouco obsessivo-compulsivo e controlador?" Faz uma pausa. "Tá, Ok. Isso sim, acontece o tempo todo. Posso falar disso." Ele desliga o telefone e começa repentinamente. "Quando vamos a um restaurante, e alguém tem uma voz estranha ou alta demais, comento: 'Não dá para sentar aqui!' Sou muito irritante para todos os meus amigos. Tenho uma honestidade meio incontrolável e, como Larry David, sempre tenho de falar: 'Sabe o que é...' Quer dizer, tudo me irrita. Na verdade, é mais o fato de que as pessoas não percebem que estão sendo irritantes que me irrita. Sou muito fã da boa educação. A grosseria me irrita - o que é algo irônico vindo do homem que disse coisas tão horríveis no Globo de Ouro, não?"
Ele está brincando, mas é bastante claro que não brinca sobre ser controlador. Na verdade, essa parece ser uma de suas principais características. Por exemplo, muito raramente assume qualquer projeto, seja um livro, filme ou programa de TV, no qual não tenha controle criativo completo. "Recuso qualquer coisa que me ofereçam", desdenha. "Não sou um ator contratado." Ou digamos que ele está começando a ficar fofinho, para não dizer gordo. Tira sarro disso, outras pessoas tiram sarro disso, mas, um dia, decide dar um basta, então instala a academia no porão, perde 11 kg e ganha músculos, o que o deixa bonitão apesar dos dentões. Que ele ama, aliás. "Na escola, eu os usava para descascar laranja e fazer as pessoas rirem. Gosto de poder abrir uma lata de refrigerante quando o anel quebra. A Jane ama minhas presas." Outra coisa que Gervais faz bastante é procurar maneiras de parecer especial. Ele se esforça para mostrar que suas motivações são diferentes, que suas reações são diferentes, que ele não faria o que você faz. Por exemplo, ao falar sobre alguma suposta crítica sobre ele e seu estilo de comédia. "No meu stand-up, lido com tabus: raça, deficiência física, crianças com câncer, pedofilia, fome, tudo isso, mas os verdadeiros alvos são o preconceito, as informações erradas, as mentiras, a raiva de classe média, a pretensão, eu mesmo. Ainda assim, as críticas sempre estão lá." Tira os pés da mesa. "Constantemente sou parte da crítica! Comecei com a crítica!" Até certo ponto, isso é verdade, mas o cerne da questão é permitir o que ele dirá a seguir: "As críticas não significam nada para mim. Nada!" De certa forma, é como se Gervais quisesse ser visto como intocável e inatingível por sensações e emoções cotidianas. Isso aparentemente funciona, como as venezianas de aço corrugado nas janelas à noite: deixando toda a ruindade lá fora e mantendo toda a bondade dele trancada lá dentro. Ele fica são e salvo, alheio a qualquer tipo de invasão.
Estranhamente, Ricky Gervais parece ter tido uma das infâncias mais perfeitas de todos os tempos. Foi na cidade operária de Reading, a oeste de Londres, onde o pai era pedreiro e a mãe dona de casa econômica. Não importava que fossem pobres ou que ele tivesse de usar roupas feitas em casa ou, sem saber, que os presentes de Natal embaixo da árvore para ele os três irmãos muito mais velhos fossem comprados à prestação. "Eu nem sabia que era pobre", afirma, principalmente porque a família era engraçada e um passava a maior parte do tempo fazendo o outro rir. Era precocemente inteligente, começou a ler aos 3 anos e entrou na escola dois anos depois, onde, conta, "ficou evidente que eu era o garoto mais esperto de lá" - ou, como diz às vezes, "eu era cercado por idiotas". Era excelente em esportes (futebol, corrida e caratê), nunca foi um excluído, sempre teve amigos. Não furtou lojas, não bebia e nem fumava maconha. Só se meteu em uma briga (e venceu). Pelo que conta, nenhuma das calamidades maiores e mais devastadoras da vida o atingiu, tornando-o o único comediante a ter uma história de vida tão boa. Além disso, até os 8 anos de idade, foi um cristão temente a Deus, mas um de seus irmãos questionou sua fé cega. Em minutos, Gervais se tornou ateu e o é fervorosamente e enfaticamente desde então. Nada nunca o perturbava. Aos 14 anos, enquanto comia cereal no café da manhã, olhou para a mãe e perguntou: "Por que meus irmãos são tão mais velhos do que eu?" Ela respondeu: "Porque você foi um erro".
"Simplesmente ri", lembra Gervais. "Ri com a honestidade dela."
Ouvir Gervais contar histórias sobre essa época é um pouco desconfortável. Ele é sempre o maioral, ninguém o supera, e, mesmo quando erra, fez a coisa certa. Na aula, uma vez, um garoto branco bateu em um negro, mas o professor só viu o garoto negro revidando no branco e o mandou para a diretoria. Quando Gervais protestou, o professor disse: "Infelizmente para ele, eu o vi dando o primeiro golpe", ao que Gervais retrucou: "Não, infelizmente para ele, ele é negro", o que o mandou para a diretoria também. No entanto, mais tarde, os irmãos afirmaram que ele havia dito a verdade. Tem orgulho de coisas desse tipo, e com razão; mesmo assim, seria bom se ele não sentisse a necessidade de sempre se retratar da melhor maneira, como se nunca tivesse feito uma grande besteira ou entrado em confusões.
Frequentou a University College London, começou como estudante de biologia, mudou para filosofia, formou-se e decidiu se tornar um astro pop. A banda dele se chamava Seona Dancing, e o clipe disponível no YouTube (cuja música entrou para as paradas, na época) mostra Gervais aos 22 anos, incrivelmente bonito, confiante e andrógino. No entanto, ele logo desistiu do sonho, tentou algumas coisas e acabou conseguindo um emprego no sindicato da University of London. "Trabalhei até virar gerente médio", afirma, "fazendo anotações, obviamente." Cinco anos depois, saiu e foi trabalhar para uma rádio em Londres, onde, como primeira ordem, contratou um garoto estranho chamado Stephen Merchant como assistente. Ambos se tornaram personalidades famosas do rádio, Merchant partiu para um trabalho na BBC, depois do qual a dupla começou a preparar uma fita demo de 20 minutos do que se tornaria The Office. Na primeira apresentação de teste do programa completo, a audiência lhe deu a pontuação mais baixa da história da BBC. Gervais não se importou, nem mudou uma palavra: "Sempre fiz exatamente o que queria, o que é importante para um ateu, porque não há mais nada. Nenhuma recompensa depois. Minha recompensa está aqui e agora. Sou eu quem tem de dormir comigo, somente eu". É assim também, sempre operando com uma pauta e pronto para incluí-la em qualquer tópico de conversa.
Outra coisa: ele é meio detalhista quando se trata de falar sobre a vida pessoal. Ele só teve a primeira namorada séria aos 17 anos, conheceu Jane quatro anos depois e está com ela até hoje. E ele nunca fala sobre isso. Será que ele diria que é uma criatura sexual, já que namora a mesma pessoa há tanto tempo e parece ter tido pouca experiência com mulheres antes? Ele pisca. Os cantos da boca apontam para baixo e repuxam. "Sou um heterossexual e tenho uma namorada. Começo e fim da história."
Na cama, envolvida por aço, ele sonha. Em um desses sonhos, é o único em um grupo que pode flutuar no ar. Isso amedronta as pessoas. Ele diz: "Não, não, desculpe!", mas ainda flutua acima de todos. Mais tarde, Gervais interpreta o próprio sonho. "Acho que é sobre minha necessidade de ter ciência de meu poder ou influência ou privilégio." Ele chega ao escritório por volta das 11h. Não lê jornal nem busca na internet os últimos acontecimentos com os quais informa sua visão cômica. "O espírito do tempo te pega por osmose", diz. "Recentemente, você não conseguia escapar de Egito, Líbia e Charlie Sheen." Faz uma pausa e ri poderosamente. "E, antes disso, houve a desgraça do Globo de Ouro." Claro.
Começa a falar sobre outro de seus tópicos favoritos: fama. "Fico fascinado com a fama", diz. "Fiz um estudo dela com The Office como um documentário falso, e depois Extras enxergava a fama como uma máscara que come o rosto e tudo o mais. Tinha medo dela no início, não é normal ser famoso. Você perde seu anonimato, que é precioso, mas, ao entrar nisso, sabia que minha vida mudaria, e pensei: 'Isso não é um motivo para não fazer algo que você ama'. Ao mesmo tempo, quero que as pessoas saibam que a fama é uma decorrência do que faço. Olha, sei que é show business, mas não estou no jogo da fama. Sou um roteirista, diretor e comediante que por acaso é o rosto do meu trabalho. Entende o que estou dizendo? Não? Tudo bem. Quero, sim, ser parte de um clube exclusivo, mas não enganar pessoas. Não ligo que o que faço seja bem-sucedido, mas não buscava o sucesso. Trato isso como evolução. Os animais não esticaram o pescoço e mudaram de cor. Isso aconteceu e eles ficaram por aí, e é como trato essa questão. Faço o que quero, e vou sobreviver ou não. O que não vou começar a fazer é começar a mudar minha tática de sobrevivência."
Aí está. Ricky Gervais é meio arrogante, convencido, gosta de julgar, é perfeccionista, ateu com complexo de Deus e um bom homem para ter por perto se você quiser que alguém descasque suas laranjas. Também é cheio de ressentimento de classe operária, daí, talvez, seus deboches no Globo de Ouro. "Por ter vindo de onde ele veio", diz Merchant, "você fica com muita vontade de estourar as bolhas da pretensão. Você desconfia do sucesso, do privilégio, do status, e acho que ele é assim." No mínimo, ele parece se entender totalmente e não tem problemas em dizer isto: "Existe alguma coisa sobre mim que não entendo? Tenho de responder não, claro que não. Não é possível que eu não entenda algo sobre mim mesmo. E não, nunca fui ao terapeuta." Mas, às vezes, diz, ele se senta, relembra e se pergunta: "Tive uma vida boa? Trouxe mais bem do que mal ao mundo? Vejamos: não matei ninguém. Tento ser uma boa pessoa, então sei que estou no lucro entre o bem e o mal. Sei que, se houvesse Deus, Ele diria: 'Quer saber? Você é bom. Está 90 a 10. Muito bem, é acima da média, pode entrar'".
Só que, claro, não existe Deus, então Gervais não pode entrar. Tudo o que restou é aqui e agora, e, como ele frequentemente diz, isso terá de bastar.