Uma menina criada no porão, gatos de rua, retiro espiritual, alucinações mil: uma viagem pelo universo colorido de Tatá Werneck
Em certo final de tarde de março, em uma praça movimentada de São Paulo, alguns skatistas trocam impressões sobre suas manobras; uma mulher passeia com um golden retriever; e Tatá Werneck grita “Curitiba, Curitiba” enquanto cavalga o Chewbacca.
Veja a foto ao lado e outras em tamanho ampliado.
A atriz – ela não se considera humorista – está vestindo farrapos e tem os dentes pintados de preto: Tatá participa de uma cena do programa Comédia MTV ao Vivo, em que interpreta Alex, ajudante de um mendigo (Paulinho Serra) fissurado no Jô Soares. Nessa gravação, eles acreditam que conseguiram entrevistar o Chewbacca, a mítica criatura da série Star Wars. Dentro da gigantesca fantasia está um produtor da emissora. Mas parece que Tatá Werneck não sabe disso. A altura limitada (1,52m) e o corpinho miúdo fazem com que ela grude no corpo do bicho feito uma pulga, como se assim fosse possível viajar por outras galáxias e conhecer o Han Solo. A boca entorta e desentorta e o rosto em transe lembra uma argila úmida, que pode ser moldada em qualquer careta. Naquele instante, na mente de Tatá Werneck, ela realmente é uma mendiga alucinada, o Chewbacca existe para valer e o mundo não passa de uma sucessão de eventos absurdos.
Vídeo: veja o making of da sessão de fotos com Tatá Werneck.
Desde sempre, Talita Werneck Arguelhes, 28 anos, carioca da Barra da Tijuca, enxerga a realidade com olhos próprios. Há três anos na MTV, atingiu o sucesso participando de dois programas: o extinto Quinta Categoria e o programa de esquetes Comédia MTV. Já fez todo tipo de papel que a profissão exige, sendo homem, mulher, bicho ou objetos não identificados. Suas duas criaturas mais famosas – Fernandona e Roxanne – têm em comum o olhar ingênuo, a capacidade de acreditar em situações surreais e o discurso embolado. No cotidiano, Tatá também observa o mundo de um jeito engraçado. “Misturo um pouco ficção com realidade, sim”, ela concorda. “Eu sei o que é realidade e o que não é. Mas é que a minha realidade... Xiii!”
Em seguida, demonstra que, assim como algumas de suas personas fictícias, ela própria também é especial. “Sabe como eu vejo o mundo? Sabe aquela bolinha? De vidro? Eu me sinto meio que olhando essa bola de vidro. O tempo todo eu tô assim: ‘Eu sou harmonia, eu sou harmonia’... Mas isso eu não vou falar porque vão me achar maluca. Mas já falei, né?” (Ela jura que não usa drogas, nunca fumou maconha e evita beber álcool).
Longe do mainstream, atuando em um meio predominantemente masculino e sem jogar com a bola da vez dos humoristas – o stand-up –, Tatá Werneck alcançou reconhecimento graças à fala rápida, ao humor nonsense e ao jeitão desnorteado de suas personagens. “Eu não faço stand-up. Meus amigos todos fazem e estão comprando apartamento e ganhando dinheiro. Eu não faço”, ela se posiciona. Tatá se segura na experiência que adquiriu nos palcos – cerca de 20 peças, entre elas clássicos, como Shakespeare e Eurípedes – para construir os hilários trejeitos e as piadas mais absurdas. Também se apega à liberdade proporcionada pela MTV, onde diz colocar no ar o que passa pela sua cabeça. Eleita pelos leitores de um grande portal da internet como “a melhor humorista do Brasil”, acumulando mais de meio milhão de seguidores no Twitter e sendo assediada por outras emissoras (“menos a Record”), ela acha que tudo ainda está no começo. “Espero chegar daqui a 20 anos e falar ‘Eu comecei na MTV’, e não ‘Meu auge foi na MTV’”, diz.
Mesmo amando teatro e jogos de improviso (ganhou prêmios com suas improvisações), Tatá sempre sonhou em fazer humor na TV – além da MTV, também participou das séries Os Buchas e Os Dilemas de Irene. “Mas não queria ir para o Zorra [Total, da Globo]”, confessa. “Nada contra o Zorra, quer dizer, tenho contra, sim. O formato não valoriza os atores foda que eles têm.” Em 2009, foi convidada para fazer o teste do Quinta Categoria. “Um ano antes, estava na casa do meu namorado, me ajoelhei e pedi: ‘Meu Deus, quero muito fazer esse programa’.” Hoje, financeiramente ela pode afirmar que conquistou alguns pontos: pode ser vista vendendo cadernos, apartamentos e refrigerante em esquetes na web. Frisando que é atriz que faz humor, ela cita Fernanda Torres como modelo profissional a ser seguido.
“Eu quero passar de fase”, ela parece falar sério, mas nem tanto. “Chegar aos 90 anos com todos os cogumelos, penas, salvando a princesa...”
Um mês antes da cena com o chewbacca, Tatá desce as escadas da sede da MTV, no Sumaré, em São Paulo. É tão minúscula que parece ser obrigada a viver na ponta dos pés. A estatura dela já deixou a apresentadora Xuxa preocupada. Aos 11 anos, Tatá participou do quadro “Xala Clip” – foi sua estreia na TV –, fazendo perguntas para os convidados. Acabou mandada embora pela empresária de Xuxa na época, Marlene Mattos, após ser indiscreta com um dos entrevistados. “A Xuxa falou para a minha mãe: ‘Tô muito preocupada com o crescimento dela... Ela não tá crescendo, é muito pequena’. Realmente eu tinha 12 centímetros”, fala, emendando que a parte dos “12 centímetros” é brincadeira. É importante alertar um detalhe sobre Tatá Werneck: ela não resiste a uma piada. Em um levantamento precário, mas honesto, 70% das frases dela são acompanhadas de algum disparate. Rápida, não deixa nenhuma sentença no ar ou minuto de silêncio. Exemplo: quando começo uma pergunta com “o que você gosta...” e me perco, ela completa: “Na minha vagina?”
Formada em publicidade pela PUC-RJ e em artes cênicas pela UniRio, ela afirma que desde os 3 anos pedia para ser atriz. Com 9 se matriculou em um curso de teatro. “Aí eu me encontrei”, responde com voz fofinha enquanto entra em meu carro. Naquele dia, ela havia participado de diversas reuniões sobre o novo Comédia MTV (que agora transmite grande parte das cenas ao vivo) e ainda faria um programa de rádio para os capixabas. Com o veículo em movimento, peço desculpas pela bagunça. “Que é isso, no meu [carro] está o Ulysses Guimarães.” No trânsito, comenta o quanto é apaixonada pelo cantor Bruno Mars. “É verdade!”, diz, ao notar minha cara incrédula. A espontaneidade e a capacidade de surpreender são os pilares do carisma de Tatá. Ela pratica um humor que parece inconsciente, como se o lado nonsense sempre estivesse ali, incontrolável. O que não significa que sua trajetória tenha sido fácil.
“Eu sofri muito por ser mulher e ter um jeito que os meninos tinham. Era incompreendida”, ela lembra da infância. Não apenas as crianças não entendiam Tatá muito bem – os adultos também tinham suas reservas. Ela foi expulsa de escolas, do curso de inglês e da academia. Uma diretora de colégio disse que Tatá não conseguia separar a realidade da ficção. “Eu sofria muito. Minhas amigas andavam em câmera lenta, eram meigas, não falavam besteira, e eu estava lá, com a calcinha cravada, fazendo uma garça.” Mesmo com a incompreensão diária, ela continuou fazendo rir. “Agora eu entendi. Eu não preciso ser compreendida. Quando você é jovem, está cheia de sofrimento, quer entender qual é seu lugar no mundo, se aquela loucura faz algum sentido. Hoje, sei que não precisa fazer sentido pra ninguém. Ela tem que fazer pra mim! Se ela não fizer pra mim, aí eu enlouqueço”, diz. Porém, assim como um iceberg, mesmo com a parte séria boiando, dá para ver que longe da superfície há toda uma imensidão de Tatá pensando em centenas de piadas capazes de acabar com a tensão.
“Você é da MTV, né?”, questiona uma fã que acabou de tirar fotos abraçada a Tatá Werneck na Avenida Paulista. O mercado de humoristas está inflacionado, com muitos comediantes se tornando celebridades e desfilando dotes por aí. Então, às vezes, as pessoas sabem o que Tatá faz, mas acham que é de algum outro lugar – do CQC, por exemplo, programa da Bandeirantes em que ela fez teste para ser uma das repórteres, mas não foi aprovada. Porém, no tempo em que passamos juntos, foi reconhecida diversas outras vezes – e sempre sabiam que ela era ela. O figurino tradicional – naquele dia vestia calça jeans, blusa rosa, sapatilhas e bolsa douradas – deixa visível sua predileção pela discrição. E se algum fã pedir, ela imediatamente prende os cabelos, revira os olhos e começa a fazer a personagem que decretou sua fama.
“Para mim, a Fernandona é outro ser, uma entidade”, ela fala sobre a garota vesga de voz pastosa abandonada pelos pais e criada em um porão. A ideia surgiu “no desespero”. Durante uma gravação, pediram que ela improvisasse e criasse o depoimento de uma personagem qualquer, o que viesse na cabeça. “Caraca, vou fazer uma mulher feia que se acha muito bonita... Aí, fiz. E saí chorando, achando que tinha ficado horrível.” O conceito do nascimento de Fernandona resume o processo criativo de Tatá. Ela não racionaliza sobre o humor que pratica. Apenas deixa o inconsciente fluir, como se estivesse dirigindo um carro – se você pensar sobre isso, bate em um poste. “Em nenhum momento faço a Fernandona pensando em ser engraçada. Eu acredito tanto, mas tanto. Ela é uma mulher que nasceu, não sei se com deficiência, e a trancaram num porão e tinham vergonha dela. E ela criou a própria realidade. Pra mim, é isso.” Filosoficamente falando, a questão pode ser complexa. Por que a Fernandona é engraçada?
“Boa pergunta”, ela diz. “Alguns vão achar que é porque ela é vesga, mas não é meu objetivo. Acho que é engraçado ver uma pessoa realmente acreditando numa realidade forjada.”
Tatá tem uma estrutura física tão maleável que lembra algum personagem de desenho animado. Ao atravessarmos a Avenida Paulista, penso que se ela fosse atropelada, não me surpreenderia se simplesmente fosse achatada e voltasse à vida, inflando o próprio corpo como uma bexiga. Ela ainda se move com cautela na cidade, onde passa a semana para as gravações e sofre com a falta de tempo para arrumar um canto. Não conseguiu ligar a TV a cabo, tem apenas um frigobar e rouba papel higiênico da academia. No começo, morou em um hotel e flat, mas foi despejada duas vezes. Ela conta diversas versões sobre cada expulsão. Como as narrativas são contraditórias, não cheguei a um veredicto sobre o real motivo. Mesmo morrendo de medo de avião, faz a ponte aérea toda semana para ver a família e o namorado, um engenheiro com quem está há seis anos. No Rio, brinca que é uma dondoca, vivendo sob os cuidados da família. A mãe, Claudia Werneck, é uma bem-sucedida jornalista e palestrante sobre discriminação e inclusão, tendo escrito um pioneiro livro para leigos sobre síndrome de Down. Fala com grande admiração dela, do pai (editor) e do irmão mais velho (doutor em direito pela Universidade de Yale). “Minha mãe é tão engraçada... Meu irmão é muito engraçado. Meu pai não é nada engraçado. Meu irmão é como eu, só que muito inteligente e muito tímido”, defne.
Desde pequena, Tatá convive com as questões que envolvem os deficientes físicos e mentais. Depois da estreia como profissional nos palcos aos 11, no musical Annie (“me mijei inteira”), fez diversas peças e em uma delas interpretou uma personagem com síndrome de Down. Sua encarnação foi aplaudida pela imprensa. Uma das críticas inclusive apontava que Tatá tinha síndrome de down. “Fiquei superfeliz”, diz, acrescentando que sempre discutiu a questão em casa e por isso fala com propriedade sobre deficientes. “Preconceito e discriminação para mim é falar: ‘São seres’.” Em 2003, ajudou a fundar Os Inclusos e os Sisos, grupo que viaja pelo Brasil fazendo peças totalmente acessíveis, com intérprete de libras e rampas para deficientes físicos, entre outras facilidades.
E, como hoje o humor nacional é caso de polícia, Tatá comenta sobre o ocorrido em uma piada sobre deficientes. Em 2011, a MTV exibiu Casa dos Autistas, uma sátira do programa Casa dos Artistas, com os atores – Tatá entre eles – supostamente imitando trejeitos de quem sofre de autismo. Entidades se manifestaram, um deputado solicitou uma investigação e a direção da MTV retirou o quadro do ar. Os envolvidos pediram desculpas e a emissora passou a exibir chamadas sobre o autismo. “Não acho engraçada [a sátira]. Não quero humilhar. Quero que faça as pessoas rirem. Eu nem revi. Mas se ficou pejorativo, sou a primeira a falar: ‘Galera, foi mal’.” Mas Tatá também observa outro lado da polêmica. Por trás das opiniões, ela crê que pode haver simplesmente a vontade de tirar a liberdade dos humoristas.
“Setenta por cento, 80, 90, só queriam ver o [Marcelo] Adnet se fodendo, a Tatá se fodendo, fazer comentário no Twitter”, reclama. “Se aquela força fosse usada para garantir o direito do autista ao ensino regular, aí sim, obrigado, desculpa. Mas muita gente só quer fazer alarde.”
Ao pararmos no restaurante anunciado como sendo de comida “saudável” – aonde Tatá vai quase todos os dias –, ela elege um ídolo na atual onda do humor brasileiro. “Admiro muito a coragem do Rafinha [Bastos]”, diz, referindo-se aos problemas que o humorista gaúcho enfrentou ao fazer piadas sobre estupro e o bebê da cantora Wanessa. “Todo comediante fala: ‘Cara, não tem que ter limite, o limite é o bom senso, pode falar sobre tudo’. Mas todo mundo peida na farofa. O Rafinha é o único com essa coragem. É o cara que tem uma importância para a classe muito grande.” Uma classe que às vezes parece desunida, competitiva e muitas vezes mal-humorada. “A classe age muito individualmente”, ela define. “A gente pode fazer muita coisa, mas não chegamos nessa união ainda.” Mesmo assim, acha que a maré é forte para comediantes nacionais. “Temos muitos talentos. Tina Fey [da série 30 Rock] é maravilhosa, mas temos no Brasil mil mulheres mais talentosas do que ela. Temos muito a oferecer. Apesar de que ainda somos tolhidos.” E arremata com uma frase que tem tudo para virar hit de para-choque dos carros da turma do stand-up: “Hoje meus ídolos não morrem de overdose, mas são processados por tentarem fazer as pessoas rirem”.
Porém nem tudo é graça no universo de Tatá Werneck. Ela tem um humor negro, mas confessa uma autocensura. “Se eu sei que vai virar polêmica, vai magoar, meus pais vão ficar preocupados... Entre fazer uma piada para poucos – porque humor negro e ácido poucos entendem – e deixar um monte de gente chateada... Não quero deixar ninguém chateado.” Ao mesmo tempo, defende a liberdade de as pessoas brincarem com o que quiserem – e ela mesma adoraria impedir essa autocensura e “falar um monte de coisa”. Ela tem uma lista (pequena) de temas proibidos, entre eles, brincadeiras com a figura de Jesus – lembrando que Tatá é muito cristã. “Mas eu zoaria o papa. Em toda peça eu zoo o papa.”
No restaurante, ela pede salada, cuscuz, peixe (“se eu babar, não repare”) e fala sobre amor pelos bichos – não come carne vermelha e frango. Já teve 22 gatos, todos de rua. “Eu comprei um sítio agora no Rio... É muito metido falar isso?”, diz, preocupada. No terreno, pretende abrir um instituto para animais carentes. “Principalmente gato, porque cachorro tem um monte. Acho que gato sofre mais. Gato preto então, coitado.” A todo tempo, interrompe a refeição para perguntar se o dente dela estava sujo. Não se considera vaidosa e foge das publicações que pretendem tirar a sua roupa ou fazer um “ensaio sensual”. “Eu prefiro estar com um cocô parecendo uma tangerina e tirar uma foto do que fazer sensual.” Ela passa a mostrar fotografias no celular. Em várias faz caras e bocas, ridicularizando a “pose erótica”; em uma delas, faz questão de apontar “para a calça que separa o lábio vaginal”. “Minha sensualidade, se é que eu tenho alguma é...”, ela pensa por alguns segundos. “Não sei.”
Ao pedir sorvete com calda de maracujá, Tatá avisa que vai chorar. Não pela guloseima, mas ao ouvir a pergunta sobre como se sente hoje, com tantas conquistas acumuladas. “Eu pensava: será que nunca vai dar certo? E agora estou aqui.” Ela agradece a oportunidade de ter um contrato e também de conhecer ídolos, como os integrantes do seriado Chaves. “Deus é foda. Meu Deus, obrigada! Conheci a Chiquinha e almocei com Seu Barriga e o Quico! Incrível, cara.”
Para 2012, Tatá continua no Comédia MTV ao Vivo e na sitcom Razzle Dazzle (em inglês, com legendas em português), além de comandar o novo Trolalá ao lado do humorista Paulinho Serra, todos na MTV. Também faz shows de improviso, ensaia uma peça com Serra e deve participar de pelo menos três filmes. Um dos sonhos dela é fazer novela – uma vilã, claro. “Não sei se as pessoas me veem como atriz. Mas queria fazer um filme em Hollywood com direito ao Oscar. As pessoas riem. Mas eu vou sonhar. Se eu sonhar baixo... Um quadro semanal no Fantástico? Não, meu sonho é voar, é Meryl Streep. A Meryl Streep é superespiritualizada, sabia?”, diz, e emenda com relatos sobre suas buscas espirituais, confessando que sempre visita um retiro com os pais.
“Tá me achando louca? Tá me achando louca?”, Tatá me olha firmemente e fica impossível dizer se está ou não falando sério. Eu acho que está.
Após pagar a conta (fez questão), Tatá continua a explicar sua ligação com algo maior. Como hobby, quando está no Rio, gosta de pintar (“coisas horrorosas, deprimentes, você vomita”) e adoraria ter uma “Central do Riso”, um lugar com aulas de teatro, música e apresentações – de valor artístico e terapêutico.
“Eu vivo num... Meu filho, eu vejo cores!”, ela bate de leve na mesa. “Eu vejo lilás aqui!”, dá um tapa na cadeira. “A chama violeta tá aqui”, indica a cadeira ao lado. “Sério! A sociedade não vai entender. Você não vai entender. Tu é muito humano. Tu é muito carne ainda. Tu não vê o lilás.” Eu me imagino dentro daquela bola de vidro a que ela havia se referido anteriormente. Estamos todos boiando ali dentro, com Tatá nos observando por fora. “Eu vejo o mundo em movimento! É ridículo, tá. Eu tô te assustando? Você está com a coroa abertíssima”, ela continua, em uma espécie de pregação absurda. Em vez de apontar o dedo para meus defeitos, tentar me salvar ou passar a sacolinha, Tatá sorri e desfila sua visão de mundo. Mas ela estaria falando sério? A fala incongruente a transforma em uma personagem irresistível e enigmática. “Você ficou bolado com esse negócio das cores? Minha mãe já falou com tromba de elefante. Telepatia com animais. Eu te juro que isso existe!”
Antes de entrar no táxi, Tatá se despede com um aviso: “Quando eu for arrebatada, transcender tudo, aí você vai falar: ‘Eu entrevistei essa menina’”. Diante do meu silêncio, emenda: “Você deve estar pensando: ‘Jesus, protegei-a’”. Então desaparece no meio do trânsito.