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Marcado Pelo Passado

Em 1990, com vários clássicos no currículo, o diretor Martin Scorsese ainda se preocupava com o futuro do cinema - mas admitia estar de olho no passado

Por Anthony De Curtis Publicado em 11/05/2010, às 09h56

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Reportagem publicada originalmente na edição 590 da RS EUA (novembro de 1990)
Reportagem publicada originalmente na edição 590 da RS EUA (novembro de 1990)

O apartamento de Martin Scorsese fica 75 andares acima da porção média de Manhattan e oferece visão imperial, em uma paisagem que inclui o Central Park e o Upper East Side, estendendo-se até o bairro do Queens, onde o cineasta nasceu, em 1942. Os tons de cinza, preto e branco calmantes que decoram a sala de estar se combinam com a altura de proporções olímpicas da moradia - tão grande que quase elimina o barulho da rua - e fazem Nova York parecer uma abstração distante, um filme silencioso que passa na janela cinematográfica de Martin Scorsese. Não são os Caminhos Perigosos. Para ver os Caminhos Perigosos, seria necessário ir até o telhado e olhar na direção oposta, para trás, para Little Italy, o gueto italiano no Lower East Side onde Scorsese entrou na vida adulta nas décadas de 1950 e 1960. O próprio Scorsese retornou àquele bairro - ou pelo menos a um bairro praticamente idêntico na parte leste do Brooklyn - com seu novo filme, Os Bons Companheiros, baseado no livro de mesmo nome, de Nicholas Pileggi, que conta a história de Henry Hill, um mafioso irlandês-siciliano de nível médio que teve uma carreira de 25 anos no submundo do crime. É a primeira vez desde O Rei da Comédia, de 1982, que Scorsese e Robert De Niro trabalham juntos; o filme ainda reúne um verdadeiro quem-é-quem entre os maiores astros de cinema ítalo-americano do momento, incluindo Ray Liotta (que faz o papel de Hill), Joe Pesci, Lorraine Bracco e Paul Sorvino. O próprio Scorsese escreveu o roteiro, junto com Pileggi. Aterrador, engraçado, violento, cheio de questões morais suscitadas por lealdade, traição e honra pessoal, Os Bons Companheiros também faz com que Scorsese retorne aos temas que pulsam no coração de alguns de seus filmes mais urgentes, principalmente Caminhos Perigosos (1973), Taxi Driver (1975) e Touro Indomável (1980). Apesar de Scorsese, sempre elegante, hoje estar usando jeans e uma camisa azul desbotada, ele não está nem um pouco relaxado para a entrevista. Scorsese fala como quem foi nascido e criado em Nova York. Formula seus pensamentos em voz alta, como se fossem absolutamente importantes. Faz gestos para marcar a pontuação e dar ênfase, dispara rajadas de ideias em staccato quando se anima, dá gargalhadas insanas de suas próprias imitações e de seus excessos verbais. Às vezes, só a energia nervosa de seu intelecto faz com que ele se levante do assento e fale em pé, com o corpo muito ereto - ele é bem baixinho - durante um ou dois minutos.

Com Os Bons Companheiros, você retorna ao terreno do crime organizado. O que o fez voltar ao tema?

Eu li uma resenha do livro quando estava dirigindo A Cor do Dinheiro, e falava alguma coisa a respeito do personagem Henry Hill ter acesso a vários níveis diferentes do crime organizado por ser uma espécie de forasteiro. Ele parecia um pouco mais bacana do que os outros. Ele tinha melhor desempenho como homem de frente e falava um pouco melhor. Achei isso interessante, porque dava para fazer um recorte nas camadas do crime organizado - do ponto de vista dele, é claro. Então eu comprei o livro, comecei a ler e fiquei fascinado com a capacidade narrativa do texto.

Tommy e Jimmy em Os Bons Companheiros são como Travis Bickle em Taxi Driver e Jake La Motta em Touro Indomável, barris de pólvora ambulantes. Qual é o seu interesse em personagens assim?

Existem milhares de respostas para isso. Cria um bom drama. Você vê parte de si mesmo neles. Eu gosto de delinear um personagem assim, ver até onde ele vai antes de se autodestruir. É interessante como a coisa começa a se voltar contra eles depois de um tempo, seja por começarem a dar tiros em gente na rua, seja por discutir em casa, na cozinha ou no quarto. Como, depois de um tempo, chega o momento crucial em que tudo simplesmente explode, e eles ficam sozinhos.

Você já disse que só quando Jake está sozinho em sua cela em Touro Indomável que ele encara seu verdadeiro inimigo: ele mesmo.

Totalmente. O tempo todo, a paranoia dele só tinha a ver com ele mesmo. A coisa vira uma loucura; se o irmão dele e Tommy Como e Salvy e Vickie tivessem feito tudo que ele achava que eles tinham feito, ele só teria duas alternativas: ou matar todos eles ou deixar para lá. Se você deixar para lá, não é o fim do mundo. Mas não, não, ele tem de descarregar tudo aquilo no ringue. Tem de descarregar em casa. Ele tem de descarregar em todo lugar, até que finalmente todo mundo desaparece e ele precisa olhar para si mesmo. E, no final... no final, é só você.

Qual é a origem dessa violência, de toda essa paranoia e raiva nesses personagens?

Isso vem de nós mesmos, não é verdade? E vem da maneira como você ganha a vida. No caso de Jake, ele sai de manhã, bate nas pessoas, e daí elas batem nele e ele volta para casa. É um horror. É a vida em seu nível mais primitivo.

Isso não explica a paranoia sexual.

Bom, eu não sei se explica. Realmente, não sou psiquiatra. Simplesmente deriva do fato de que o sujeito está no ringue, e quando você está soltando tudo nos seus socos, você se sente de certa maneira a respeito de si mesmo. Você poderia usar qualquer pessoa como exemplo, sabe? O ringue se transforma em uma alegoria daquilo que você faz na sua vida, seja lá o que for. Você faz filmes, está no ringue toda vez que faz isso. Se compõe música - quando canta, está no ringue. As pessoas simplesmente vivendo seu cotidiano - quando vão trabalhar, estão no ringue. E é a maneira como você se sente a respeito de si mesmo que dá cor a seus sentimentos e a tudo o mais que existe a seu redor. Se você não se sentir bem a respeito de si mesmo, isso afeta tudo que você faz - seu trabalho, as pessoas que amam você, o seu desempenho para com elas, o seu desempenho no amor, o seu desempenho no fazer amor, tudo. Você começa a se descascar e se transforma em uma ferida aberta. E, se um homem cospe do outro lado da rua, você diz que ele cuspiu em você. E daí é o seu fim; ninguém é capaz de se aproximar. Você pensa: "Por que ele olhou para mim daquele jeito?" Quem vai ficar com você? Quem vai conseguir ficar com você?

Uma das questões importantes no ano que passou é a censura na arte. À luz das suas experiências com Taxi Driver e A Última Tentação de Cristo,como você se sente em relação ao que tem acontecido?

Obviamente, eu sou contra. Sou contra essa merda toda, seja do jeito que for. Eu pessoalmente não gosto de muita coisa que vejo; é ofensivo para mim - mas obviamente sou a favor da liberdade de expressão. Em cada geração há ameaças a ela, e é necessário continuar batalhando e lutando. No que diz respeito à minha maneira de lidar com a questão, não posso permitir que nada me diga: "Não faça isso, as pessoas vão se ofender". Não posso funcionar assim.

Em um nível, quando estou lidando com um filme de Hollywood, isso significa que preciso trabalhar com certo tema que vai render certa quantidade de dinheiro. Se eu resolver ganhar menos dinheiro, posso trabalhar com assuntos mais arriscados. Então, o único critério relativo aos filmes nos quais estou disposto a assumir riscos é ser verdadeiro em relação ao que se sabe ser a realidade a seu redor ou a realidade da condição humana. Se você não acreditar nisso, por que vai fazer? Você vai ofender as pessoas para ganhar um dinheirinho? Para quê? O dinheiro não significa nada. Tudo que importa é o trabalho, aquilo que está na tela. Eu não sou algum tipo de pessoa valorosa que está lá toda corajosa, lutando contra toda aquela gente. Eu realmente não achei que aquelas coisas causariam problemas - e nem estou falando de Taxi Driver. A Última Tentação, eu sabia que haveria problemas, mas essa é uma área especial para mim. Eu realmente exijo que possa falar do jeito como eu me sinto em relação ao assunto, mesmo com a igreja, a Igreja Católica. Se for fazer uma empreitada mais comercial, como A Cor do Dinheiro, é outra coisa. O filme se torna diferente, e acho que dá para ver a diferença. O meu novo filme vai ser outra coisa. É um filme bem mais comercial para a Universal Pictures.

O que você está fazendo?

É um remake de Cabo do Medo, o filme de 1962, dirigido por J. Lee Thompson, com Robert Mitchum e Gregory Peck. Bob De Niro quer fazer. A gente tem certa responsabilidade para com o público em um filme assim, porque existem certas expectativas em relação ao gênero do thriller, e você tem que trabalhar dentro desses parâmetros. É igual a um jogo de xadrez. Você tem que ver se realmente consegue ser expressivo nesse âmbito. Não sei se é possível. Eu sempre tenho esse problema: por adorar filmes antigos, não sei se consigo realizá-los. Quer dizer, New York, New York certamente foi revisionista. Mas, com A Cor do Dinheiro, eu fiquei no meio a meio, e acho que tinha que ter ido para um lado só.

New York, New Yorktem um fundo estilizado, sobre o qual De Niro e Liza Minelli representam um relacionamento atribulado.

Isso foi feito de maneira consciente. Era um amor ao estilo antigo, sabe como é, um amor daquele tipo de filme, mas daí mostrando que ele era de verdade, o mais próximo possível naquele fundo. Acho que é isso que chamam de revisionismo, e foi por isso que o filme não pegou - além de ser longo demais.

Mas, voltando ao ponto sobre a censura, acredito que você deva pensar sobre o impacto em potencial dos seus filmes. Você ficou chocado quando a reação da platéia foi quase de começar a fazer justiça com as próprias mãos no fim de Taxi Driver.

Eu fiquei meio chocado. Fui assistir ao filme e as pessoas reagiam de maneira muito forte na sequência do tiroteio, e eu fiquei incomodado com isso. Não foi feita com essa intenção. Não dá para impedir que as pessoas a absorvam daquela maneira. E também não há como impedir que as pessoas se sintam exultantes com a violência, porque isso é humano, da mesma maneira que acontece com a violência em Meu Ódio Será Tua Herança. Mas a exultação da violência no fim de Meu Ódio Será Tua Herança e em Taxi Driver também está na criação da cena, em sua edição, nos movimentos da câmera, no uso da música e no uso de efeitos sonoros e no movimento dos personagens dentro do enquadramento - e eu sei como foi feita a filmagem, porque eu a registrei e a planejei. Então é como... arte - seja boa, ruim ou indiferente, continua sendo arte. E é aí que a exultação entra. O tiroteio no fim de Meu Ódio Será Tua Herança é uma das grandes sequências de exultação de todo o cinema, e também é uma das grandes sequências de dança do cinema. É um balé.

A intenção não era necessariamente a recepção que eu vi em Taxi Driver. Eu sei que aquela não pode ser a reação da maior parte das pessoas que assistiram ao filme Eu estive na China em 84 e um rapaz da Mongólia conversou longamente comigo a respeito de Taxi Driver, a respeito da solidão. É por isso que o filme parece ser algo que as pessoas assistem vez após outra. Não é por causa dos tiros no fim.

Você sempre fala dos seus filmes em termos espirituais, mas há um aspecto físico brutal em vários deles. Como você faz essa compensação?

É uma luta, nada mais. A luta para continuar vivo e até para querer continuar vivo. Tem essa coisa corporal em que estamos encapsulados e suas limitações e a maneira como o seu espírito tenta pular para fora dela, voar para longe. Mas não dá. Você pode tentar. Dizem que é possível fazer isso por meio da poesia; é possível fazê-lo por meio do seu trabalho. Do pensamento. Mas você continua se sentindo aprisionado. Então, o corpo é aquilo com que você precisa lidar. E é uma luta manter esse corpo vivo.

Por morar em Nova York, é óbvio que a violência está a seu redor o tempo todo.

Ah, fala sério. Acabei de pegar um táxi na 57th Street, íamos virar na 8th Avenue, e três porto-riquenhos começaram a se espancar por cima do táxi. Por cima mesmo - do meu lado, depois no capô, até o outro lado. Isso é uma coisa simplesmente normal - a ponto de o taxista e eu não proferirmos nenhuma palavra. Não dissemos nada. Ele simplesmente fez a curva à direita e seguiu em frente.

Você foi criado em Nova York, no bairro de Little Italy, que fica bem perto de Greenwich Village. Mas nos seus filmes parece que aquele outro mundo nem existia.

No Lower East Side, nós não tínhamos o influxo de outras culturas, aquela cultura boêmia tão importante. Nós não sabíamos que aquele outro mundo existia. Eu só fui ao Village quando me matriculei na New York University, em 1960; eu tinha um pé na universidade e o outro no mundo de Caminhos Perigosos. De 1950 a 1960, durante dez anos, eu nunca me aventurei além da Broadway e da Houston Street. Eu me lembro de que a mãe de um amigo meu - eu tinha uns 9 anos - nos levou ao Village para ver as casinhas e as flores. Era um país das maravilhas. Era uma cultura muito diferente. Eu também era acostumado a coisas maravilhosas, em Elizabeth Street: cinco mercadinhos, três açougues, tudo em um quarteirão. Duas barbearias em uma quadra. Barris de azeitonas. Crescer ali era a mesma coisa que estar em um vilarejo siciliano.

Este mundo é retratado com perfeição em Caminhos Perigosos.

Essa é a história toda de Caminhos Perigosos. Eu queria fazer um estudo antropológico: tinha a ver comigo e os meus amigos. Achei que, mesmo que estivesse em uma prateleira alguns anos mais tarde, as pessoas o pegariam e veriam que era assim que os ítalo-americanos - não os chefões, os figurões - viviam o seu dia a dia. O visual verdadeiro deles era aquele, e era assim que eles falavam e era aquilo que eles faziam. O estilo de vida era assim.

Por que foi importante para você documentar esse estilo de vida?

Ah, sabe como é - por causa de mim mesmo. Quer dizer, por que alguém faz qualquer coisa? Você se acha importante, então faz um filme sobre si mesmo. Acho que é só a velha história de se tornar adulto. Na verdade, para mim, foram dois filmes: Quem Bate à Minha Porta? E Caminhos Perigosos. Eu não consegui acertar em Quem Bate, tirando os aspectos sentimentais. Nisso eu acertei.

Você começou a fazer o filme em 1965, mas o conflito sexual retratado no filme - em que o personagem de Harvey Keitel se recusa a transar com a namorada porque ele a idealiza, e então a abandona quando se dá conta de que ela não é virgem - está fora de sincronia com os costumes da época. Em vez da revolução de abertura dos anos 60, parece...

Medieval! Essa é a maneira ítalo-americana de pensar e sentir. Nós tivemos problemas para arrumar uma distribuidora, e os meus agentes da William Morris disseram para mim: "Marty, o que você espera? Você está com um filme em que um sujeito ama tanto uma mulher que se recusa a transar com ela. Aqui estamos nós, na era da revolução sexual - e você faz um filme sobre repressão! Repressão sexual total. Quem vai assistir a isso? Ninguém!" É, quer dizer, aquela era a minha vida. Foi só muito mais tarde que eu tomei consciência de que havia outras pessoas no mundo e outros modos de viver, outras visões, tanto políticas quanto em relação a outros assuntos. Fui a Woodstock em 69 - e depois disso é que comecei a usar jeans. Eu fui lá de abotoaduras - e perdi uma delas.

Você sempre fala da sua bagagem cultural, mas a vida que tem levado nas últimas duas décadas é bem diferente do mundo do qual você veio. Você sente que existe conflito em dramatizar pessoas e um lugar que você mesmo deixou para trás?

Só porque você o deixou para trás, não significa que ele não pertence mais a você. Foi de lá que você veio. Você tem uma afinidade com aquilo, e com frequência também tem amor por aquilo. Eu não posso existir lá agora; não pertenço mais àquele lugar. Mas, caramba, posso muito bem tentar me assegurar de que, quando o uso em um filme como Os Bons Companheiros, ele seja retratado da maneira mais real possível. O que há de errado nisso? Muito do que eu aprendi na vida veio de lá.

O que você aprendeu?

As pessoas geralmente são o produto do lugar de onde vêm. Os laços que você formou, os códigos que existiam, tudo vai influenciar a sua vida mais tarde. Você pode rejeitá-los. Pode dizer: "Certo, aqueles códigos não existem para mim, porque eu não pertenço mais àquele mundo". Mas as razões para a existência daqueles códigos - por que as pessoas vivem daquela maneira - são lições muito fortes. A razão mais importante é a sobrevivência. O resumo é esse. É a luta da forma humana, do que é corporal, da carne, para sobreviver - qualquer coisa para sobreviver. Acho que essas coisas a gente carrega para o resto da vida.

E é claro que causa problemas em relação à maneira como você reage a certos estímulos. Ao receber os mesmos estímulos agora, precisa tomar cuidado para não reagir da maneira como faria na rua; é engraçado, porque já vi pessoas fazendo coisas que me fizeram pensar: "Meu Deus, se um cara fizesse isso, se aquela mulher ou um amigo fizesse isso em 1960 naquele bairro, não estariam vivos". A gente precisa se dar conta de que é um mundo diferente. Basicamente eu estou aqui, neste prédio. Eu fico aqui. Aqui nesta cadeira. Só isso. Eu atendo o telefone. Permitem que eu saia para fazer um filme. As pessoas vêm aqui para jantar. Só isso. Eu simplesmente faço o meu trabalho e me encontro com alguns amigos próximos. Então, de um jeito engraçado, todo o trauma de tentar encontrar novas maneiras de reagir aos mesmos estímulos nesta nova sociedade meio que já ficou para trás - e isso é bom.

Por que não gosta de sair de casa?

Já fiz tudo que tinha para fazer. Nos últimos 20 anos, em Los Angeles e em Nova York e no resto do mundo, eu vivi assim, e agora está ficando cada vez mais estreito. Só dá tempo de fazer o seu trabalho e encontrar com aquelas pessoas que você aprecia de verdade. Se você vai a um coquetel, e alguém chega para você... tipo, sei lá, ocorre um certo tipo de insulto estranho. Sabe, como você ousa! Antigamente, em bairros como o meu, se você pisasse no sapato de alguém - imagine só chegar e insultar a pessoa - você podia morrer. Ela mataria você. Ah, você ficaria surpreso de saber como são esses insultos - o que eles fazem é simplesmente maravilhoso. E as pessoas ficam se perguntando por que você não quer conversar com ninguém.

Uma pessoa do mundo acadêmico foi apresentada para mim. Estávamos tomando uns drinques depois do jantar do David Lean American Film Institute, e a mulher disse: "Devo dizer que admiro alguns dos seus filmes - porque, afinal de contas, eu sou mulher". Quem precisa disso? Quer dizer, veja bem, eu faço certo tipo de filme que realmente desperta certas coisas nas pessoas. O que posso dizer? Então, você tenta evitar. É um dreno de energia. À medida que você envelhece - eu estou com 47 anos -, a energia precisa ser direcionada para o seu trabalho. O resumo da história é esse.

Não tem medo de perder o contato?

Não. Quer dizer, você vem de certo tempo e lugar. Não posso me virar e dizer: "Bom, caramba, agora só vou escutar rap". Não dá. Quer dizer, eu ainda escuto rock and roll mais antigo; eu escuto a música de que eu gosto. Talvez existam cineastas capazes de acompanhar as tendências e entrar em sintonia com o que o público espera hoje. Eu só acho que somos de um tempo, e vamos falar ou não com as gerações que vêm depois de nós. Quer dizer, é só dar uma olhada no início da década de 1960, quando tínhamos a new wave francesa e a new wave italiana, com os cortes saltados e as imagens congeladas, a destruição da forma narrativa. Havia muitos diretores de Hollywood tentando fazer coisas parecidas, e não funcionava. E o pessoal cujo trabalho permaneceu forte foi aquele que não se deixou levar pela moda, que continuou fiel a si mesmo.

Nos seus filmes, a relação entre a música e a cena realmente varia. Eu estava pensando em Os Bons Companheiros, quando os cadáveres dos mafiosos são encontrados por toda a cidade e a melodia de "Layla" toca.

Aquilo foi filmado ao ritmo de "Layla", sabia? Nós tocamos a música no set. Todos os assassinatos foram encenados no set ao ritmo daquela música, porque é uma tragédia. Muitas daquelas pessoas realmente não mereciam morrer. É como um desvelamento, um desfile, uma revisão, de certa maneira, da tragédia que se desdobra. Tem algo de majestoso naquilo, apesar de serem pessoas comuns. Você pode dizer: "Bandidos comuns" - ainda assim, acho que são pessoas. E a tragédia está na música. A música fez com que eu me sentisse de uma certa maneira, adicionou tristeza e compaixão à cena. A maneira como a melodia de "Layla" toca é como o desdobramento dos resultados desse estilo de vida.

Eu queria perguntar sobre um termo que você usou para descrever a elaboração de Touro Indomável: cinema camicase.

O que eu quis dizer é que joguei tudo que sabia ali, e se fosse significar o fim da minha carreira então ia ter que ser o fim da minha carreira.

Você se sentiu assim?

Absolutamente, sim. Eu nem sei exatamente por que, mas eu me senti assim. Simplesmente achei que talvez fosse ser o fim de tudo, mas achei melhor apostar tudo para ver o que acontecia.

Mas por quê? Talvez fosse demais para as pessoas absorverem?

Bom, eu estava fazendo um certo tipo de filme. Filmes na época... não se esqueça, estávamos no início da era Reagan. Sylvester Stallone tinha criado sua própria nova mitologia, e as pessoas estavam mais inclinadas a isso. Quer dizer, depois da experiência de New York, New York, eu percebi o tipo de filme que eu faria, mesmo que fosse tratar de gênero... é por isso que eu estava falando do thriller novo, Cabo do Medo. É uma situação muito interessante, porque eu não quero necessariamente que seja revisionista, da maneira como New York, New York foi. Mas, por outro lado, quero encontrar meu próprio jeito dentro dele. Agora, será que o meu próprio jeito significa, automaticamente, acabar com um filme de gênero em termos tradicionais? Quer dizer, que não vai ser satisfatório para o público como os filmes tradicionais de heróis são, como todos os Rockys? Esse era o clima do país. E Touro Indomável foi lançado, quem ia assistir? Quem se importa com aquele sujeito? Ninguém - foi o meu pensamento. E talvez algumas pessoas dissessem: "Bom, você tinha razão, porque ninguém assistiu". Só rendeu certa quantia de dinheiro".

O clima geral do país era diferente. Estava-se ganhando muito dinheiro com filmes como Rocky e depois com os filmes de Spielberg-Lucas. Naquele tempo, eles eram os criadores de mitos, e em certa medida continuam a ser. Quer dizer, New York, New York foi um fracasso total, e estreou na mesma semana que Star Wars. Então, na época eu sabia para que lado o vento estava soprando, e certamente não era na minha direção. Portanto, eu simplesmente fiz o melhor que pude com Touro Indomável, porque eu não tinha nada e tinha tudo a perder.

Quando você fala sobre não ser capaz de fazer um filme de gênero sem subverter o gênero...

Acho que seria um erro subverter o gênero. O que eu vou tentar fazer no futuro, espero, é tentar misturar o gênero comigo, em certo sentido - com a minha expressão dele, com os elementos pelos quais eu me interesso para ver se não faz sair demais dos trilhos. Não sei se consigo. Quer dizer, eu continuaria sem interesse em fazer musicais antigos - por mais que eu os adore. Não tenho palavras para eles, alguns deles são tão lindos. Ainda assim, eu não seria capaz de fazer isso; eu não estaria interessado em fazer isso. Ainda quero fazer algo musical que tenha algo de diferente. Mas acho que, quando for fazer, preciso ter uma ideia mais clara em relação à abordagem.

Quais entre os seus filmes são mais importantes para você?

Bom, Caminhos Perigosos é sempre um dos meus preferidos, por causa da música e porque era a minha própria história, e a dos meus amigos. Foi o primeiro filme em que as pessoas prestaram atenção. É meio que um preferido, mas eu com certeza não consigo assistir. É pessoal demais. Gosto de certos elementos de Touro Indomável, gosto da crueza dele e das cenas de briga selvagem, as cenas de briga subjetiva, como se você mesmo estivesse no ringue levando socos. Os efeitos sonoros de Frank Warner simplesmente são maravilhosos. Eu gosto do visual de boa parte do filme. E eu adoro Bob e Joe Pesci e Cathy Moriarty. E Frank Vincent. Adoro as performances, Nick Colassanto. Foi simplesmente maravilhoso.

Taxi Driver?

Não.

Não?

Eu gosto de Bob nele. Ah, eu gosto de todo mundo nele. Cybill Shepherd estava maravilhosa. Jodie Foster. Mas Taxi Driver realmente é de Paul Schrader. Nós o interpretamos. Paul Schrader deu o roteiro para mim porque ele viu Caminhos Perigosos e gostou de Bob no filme e gostou de mim como diretor. Nós - e isso quer dizer Bob e eu - tínhamos as mesmas sensações em relação a Travis, à maneira como ele foi escrito, à maneira como Paul tinha feito. Era como se nós três sentíssemos a mesma coisa, como se fosse um clubinho formado por nós três. Paul Schrader e eu tínhamos certa afinidade em relação a religião e vida, morte e culpa e sexo. Paul e eu somos muito próximos em relação a esse tipo de coisa. Mas devo dizer que o conceito original é todo dele. Não é falsa modéstia - outra pessoa pode chegar e dizer que ele simplesmente interpretou e acabou com o filme. Mas você precisa entender que a ideia original veio dele. E eu acho que, quando dizem "Taxi Driver, de Martin Scorsese", é algo muito doloroso para Paul. Na verdade, é dele.

Juntos, vocês e De Niro criaram um personagem que realmente penetrou na cultura, quer dizer, quantas vezes você já viu alguém imitando o Travis Bickle de De Niro?

Nós improvisamos a cena do espelho. É verdade. Eu improvisei a fala dele na frente do espelho: "Está falando comigo?" Estava no roteiro que ele estava fazendo alguma coisa com as armas e olhando para si mesmo, e eu disse a Bob que ele precisava dizer alguma coisa. Ele precisava falar consigo mesmo. Não sabíamos o quê. Começamos a brincar com a ideia, e saiu aquilo.

Você e o seu trabalho se tornaram praticamente sinônimo de integridade. Isso o inibe?

Não, eu realmente me sinto bem com isso. Eu me sinto grato por as pessoas acharem que o trabalho é - não sei que palavras usar - pessoal ou descomprometido. Mas não importa o que aconteça, há compromissos. Você pode dizer: "É, eu vou fazer A Última Tentação de Cristo. Pode me dar US$ 7 milhões que eu consigo fazer". Mas fica comprometido com US$ 7 milhões. Eu gostaria de ter certos ângulos. Eu gostaria de ter mais dias para filmar. Certo, esse é um comprometimento artístico, e as pessoas podem dizer que a mensagem do filme não foi comprometida. Mas é preciso se dar conta de que isso é assustador, porque é necessário ter equilíbrio. Você quer fazer filmes que expressem aquilo que você tem a dizer, mas o equilíbrio é muito delicado. Eu gostaria de ter a chance de experimentar exatamente o que estou fazendo agora com Cabo do Medo, por exemplo - fazer um grande thriller e dar ao público o que ele espera de um thriller, mas também ter os elementos que fazem os meus filmes serem um pouco diferentes. Eu vou tentar. Eu tentei com A Cor do Dinheiro. Não sei se consegui alcançar meu objetivo muito bem.

Às vezes, é uma troca. A gente tem que fazer certo tipo de filme para conseguir fazer talvez outros dois por conta própria, que você queira fazer. No momento, estou em um período em que quero começar a explorar áreas diferentes, e é preciso aproveitar cada filme que se faz. Você precisa aprender com isso, e precisa utilizar o aprendizado para conseguir fazer os seus próprios filmes - os mais difíceis porque todos eles são, de certo modo, seus próprios filmes. E independentemente do que aconteça, para os que são difíceis de verdade, você só vai receber certa quantia de dinheiro para eles, de todo modo. Então, você também tem que pensar em ganhar dinheiro para passar os anos magros, quando você vai fazer filmes para os quais só vai receber certa quantia. Existe um número muito grande de variações. É um jogo, uma linha sobre a qual você precisa caminhar, levar todo mundo muito a sério: os estúdios e o que eles precisam e o que você precisa. De vez em quando, as duas coisas se unem, como aconteceu com Os Bons Companheiros. Aquele foi o melhor de dois mundos: US$ 26 milhões para fazer um filme pessoal. Foi muito interessante. Quer dizer, todo filme desperdiça dinheiro em certa medida, mas você não vai querer fazer isso a ponto de...

Criar problemas para si mesmo.

A ponto de criar problemas reais. Mas não é assim tão racional. Não é: "Meu Deus, como ele parece ser uma pessoa racional" - Deus me livre de parecer assim. É questão de ter cuidado e ser inteligente. Os artistas que se destacam no cinema norte-americano saem de Hollywood. Dos filmes de Hollywood. E eu me orgulho de ter associação com Hollywood por causa disso. Quer dizer, eu morei em Hollywood por mais de dez anos. Mesmo assim, eles achavam que eu continuava a morar em Nova York, mas eu sou um diretor de Hollywood. Sempre me orgulho de ser considerado como tal pelo resto do mundo. E de mostrar que os Estados Unidos, de vez em quando, vão me dar alguma coisa ou dão alguma coisa a outras pessoas - Stanley Kubrick, David Lynch - que fazem filmes muito pessoais e muito específicos. E você simplesmente aproveita. Às vezes é tão divertido que a coisa se torna gostosa. Mas é perigoso.