Quando surgiu, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais simbolizava o Brasil do futuro. Após cinco décadas, o órgão sofre com a perda de identidade e a falta de investimentos
Ao percorrer as arborizadas dependências do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos (SP), a sensação é a de estar em um lugar que parou no tempo. Os prédios de concreto, de linhas geométricas simples, remetem a uma arquitetura datada. Nas diversas salas, uma infi nidade de documentos e pastas se amontoa sobre um mobiliário modesto, típico de repartição pública. Em um dos corredores principais, repousa um enorme maquinário, hoje obsoleto, que outrora custou alguns milhões de dólares aos cofres públicos – trata-se de um processador de imagens arcaico cuja capacidade de armazenamento não ultrapassa a de um pequeno disco rígido atual. Reconhecido internacionalmente pela excelência em seus trabalhos, o Inpe comemorou os 50 anos do início das atividades espaciais no país em meio à maior crise de sua história e ao longo de um lento e dolorido processo de perda de memória.
Dentro de uma sala de reuniões caótica e apertada, juntam-se os chefes de uma das áreas mais badaladas do Inpe, a divisão de Observação da Terra (OBT). Capitaneados por Júlio D’alge, diretor da OBT, estão presentes José Bacelar, gerente de Programa de Sistemas de Solo e Operações, e Dalton Valeriano, gerente do Programa Amazônia, considerado o pai do sistema que vigia o desmatamento na Floresta Amazônica em tempo real (Deter). Todos são engenheiros e cientistas brilhantes, formados doutores por algumas das melhores universidades do mundo e, mesmo assim, ainda demonstram aversão às pompas e aos holofotes. Com vastos bigodes e cabeleiras, sustentando certo ar de antigos amantes de rock progressivo, eles fazem parte de uma turma do Inpe carinhosamente apelidada de “velha-guarda”: hoje, eles representam o maior contingente do Instituto.
Fundado em agosto de 1961, durante o curto governo do então presidente Jânio Quadros, o Inpe envelheceu e não se renovou. Dados do próprio órgão apontam que, em 1989, o Inpe tinha cerca de 1.600 servidores, dos quais apenas 50 deles com mais de 20 anos de serviço – profissionais mais velhos eram minoria. Duas décadas depois, o número total de servidores encolheu, caindo para pouco mais de mil, dos quais apenas 30% representavam a jovem-guarda.
Essa inversão de medidas acabou resultando em um grave problema para a instituição: a extinção do conhecimento. O cerne do problema reside no fato de que não há pessoal novo em número suficiente para absorver a bagagem dos profissionais que hoje se encontram em atividade no Instituto. Tudo isso é agravado pela constatação de que, nos próximos cinco anos, uma quantidade significativa de servidores estará em condições de se aposentar.
“Eu sou um desses”, confirma Valeriano, com seus longos cabelos brancos, indicando que “a transferência de conhecimento é um processo penoso que pode demorar anos numa instituição de ciência e tecnologia.”
Percorrendo o amplo e silencioso campus de 70 mil m2 do Inpe, é possível facilmente descobrir fragmentos da dimensão dos problemas, por meio de conversas paralelas. “Temos servidores com mais de 70 anos”, confi dencia um funcionário do setor de Recursos Humanos. “Isso é inconstitucional, mas eles permanecem aqui porque são apaixonados pela instituição e sabem dos danos que o seu afastamento imediato pode causar.”
A “geração de cabelos brancos” do Inpe se sacrifica para manter os projetos do Instituto em pauta sem deixar que meio século de conhecimento adquirido se esvaia junto ao seu merecido descanso. O Inpe precisa urgentemente renovar os seus quadros para sobreviver. Caso contrário, boa parte do que o Brasil conquistou na área espacial, bens públicos de valor incomensurável para a sociedade, corre o risco de cair no esquecimento. “Cada dia que passa é um dia a menos de conhecimento que a gente está perdendo”, define o cearense Gilberto Câmara, atual diretor geral do Inpe. “Isso vem se dando há muito tempo e pode destruir a instituição.”
Aborrecido com a situação, Câmara recentemente pediu afastamento do cargo, acatado pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, alegando, entre outros motivos, a frustração pela falta de renovação dos quadros do Inpe. “Dizem que temos que prestar um serviço relevante para o país”, ele reclama. “Nós fazemos a previsão do tempo, construímos satélites e monitoramos a Floresta Amazônica. Conseguimos fazer muito com o pouco orçamento que recebemos. Por que temos que mendigar contratações?” Especialista em geoinformática e desde 2005 no cargo, Câmara tem a fala apressada, sobrancelhas grossas e barba desgrenhada, detalhes que lhe aferem um ar carrancudo. “Como diretor, o que a gente faz é criar o caldo”, diz, “ou seja, as condições para que as coisas aconteçam”.
Fazer muito com o pouco que tem, aliás, parece ser a premissa que o Inpe carrega desde os primórdios do programa espacial brasileiro, na década de 60. A ideia inicial era fazer transferência de tecnologia em realizações que fossem palpáveis ao Brasil e que pudessem trazer, com pequenos recursos, grandes resultados. “Nós nunca pensamos em mandar gente para a Lua. Nunca houve verba para isso”, explica Fernando de Mendonça, 87 anos, um dos primeiros diretores do Inpe, de 1971 a 1977. “Mas víamos certos programas que poderiam trazer benefícios para a sociedade brasileira, como a previsão meteorológica.”
A sobriedade com que o programa espacial brasileiro começou a ser desenvolvido reflete pouco sobre sua verdadeira gênese. Histórias da época revelam que o programa surgiu da pretensão que Jânio Quadros tinha de desenvolver um órgão para estudar e procurar discos voadores. “Isso pegou muito mal no conselho nacional de pesquisa, daí ele acabou resolvendo por um programa espacial”, comenta Mendonça.
Não é nenhum segredo que a falta de recursos financeiros seja a razão pela qual os principais esforços do Programa Espacial Brasileiro sempre estiveram voltados para a observação da própria Terra, e não do espaço profundo. “Eu gostaria de ter um orçamento que me permitisse fazer coisas mais ousadas, investir em questões científicas avançadas que não têm um benefício tão imediato”, afirma Câmara. “Investimentos com benefício de longo prazo também deveriam ser financiados.” Diante de tal cenário, a direção do Inpe sempre obedeceu à seguinte linha de raciocínio: é preciso fazer com que o programa se justifique pelos benefícios que traz à sociedade. E se a cultura da sociedade não prevê o investimento em atividades pelos proveitos futuros que elas possam trazer, ela precisa ser convencida de que há benefícios presentes na atividade espacial.
Não à toa, a divisão Observação da Terra e Sensoriamento Remoto – no caso, a técnica de obter informações entre sensores distantes um do outro – foi um dos setores do Instituto que mais se desenvolveu ao longo dos anos. O antigo investimento em pesquisa e desenvolvimento nessas áreas é responsável direto pelo êxito do país no controle do desmatamento florestal. Em dezembro passado, o governo federal anunciou o novo recorde de queda no desmatamento da Amazônia: 6.238 km2, a menor taxa registrada desde 1988, quando o Inpe começou a fazer a medição. Para Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, a visão antecipatória dos pesquisadores do Inpe foi fundamental para que se alcançasse tal resultado. “O Brasil tem uma série histórica de acompanhamento do desflorestamento, um trabalho de altíssimo nível reconhecido no mundo inteiro”, diz Marina. “É o país que tem a maior credibilidade no trabalho de monitoramento de floresta.”
O Inpe desenvolve pesquisas na área de sensoriamento remoto desde 1973, quando foi instalada, em Cuiabá (MT), a antena de recepção das imagens do satélite norte-americano Landsat. O Brasil foi o primeiro país fora da América do Norte a receber dados do Landsat. Desde então, o Inpe passou a acumular um acervo histórico único sobre o país, com imagens fantásticas captadas através das lentes de diferentes satélites. Foi por meio desse sistema que a OBT passou a desenvolver técnicas de mapeamento em larga escala e monitoramento do território brasileiro, o que acabou culminando no Prodes, o Projeto de Monitoramento do Desf lorestamento na Amazônia Legal, que desde então mede as taxas anuais de desmatamento na floresta.
Outro empreendimento de sucesso no Inpe é o LIT, o Laboratório de Integração de Testes, onde são realizadas as experiências e verificações do funcionamento dos subsistemas dos satélites antes de eles serem lançados no espaço. É o único laboratório do tipo em todo o hemisfério sul, além de ser o local onde foram feitos os testes dos primeiros satélites brasileiros. Atualmente, ele recebe até satélites estrangeiros, como o SAC-D/Aquarius, fruto de uma parceria entre argentinos e norte-americanos que atualmente passa por uma temporada de exames no LIT.
Andréia Sorice Genaro, 36 anos, é gestora de qualidade do LIT e pertence ao pequeno grupo de servidores do Inpe que tem menos de 20 anos de casa. Apesar de se declarar orgulhosa de fazer parte do projeto, ela enxerga um cenário catastrófico na instituição. “Se qualquer pessoa-chave aqui se aposenta, não tem outra que possa fazer o mesmo serviço. Até tem, mas a pessoa que vai executar essa função não terá a mesma competência”, diz.
Uma das questões, de acordo com Andréia, é o fato de a atual geração não ter tido o mesmo preparo que a anterior. “Desse pessoal que está para aposentar, muitos tiveram a oportunidade de estudar e estagiar fora do Brasil com outros especialistas. Desde cedo eles passaram a ocupar cargos de decisões e encabeçaram projetos. Essas oportunidades, os jovens de agora não estão tendo.”
Haveria ainda outro problema mais profundo, de ordem burocrática: “Existem equipes de até dez pessoas em que apenas o coordenador do projeto é servidor”, Andréia conta. Atualmente, os projetos do Inpe são tocados por um verdadeiro contingente de funcionários terceirizados – estagiários, bolsistas e estudantes de pós-graduação que trabalham lado a lado com servidores, mas que não contam com as mesmas garantias trabalhistas.
Por um lado, é exatamente esse corpo de colaboradores autônomos que ajuda a manter um bom ritmo de produção no Inpe. Por outro, esses funcionários não garantem a fixação do conhecimento na instituição, já que boa parte dessa mão de obra em treinamento é perdida para indústrias correlatas. No período de sete anos em que permaneceu no Inpe como bolsista, Andréia foi assediada por diversas empresas. “Sou uma das únicas colaboradoras da minha época que resistiu às investidas do mercado”, conta. “Quando surgiu a primeira oportunidade de concurso público, apenas sete anos depois de ingressar no instituto, eu acabei passando. Eu queria muito trabalhar no Inpe.”
Nos bastidores, Gilberto Câmara afirma ter um “número mágico”: se o Inpe quiser ter sangue novo, precisa de autorização para contratar 700 pessoas. O número representa a soma de 300 novos integrantes com a institucionalização de 400 funcionários “terceirizados”. Mas ele também confessa não ter expectativas de que isso possa acontecer.
Mário Quintino, coordenador-geral de Engenharia e Tecnologia Espacial do Inpe, também não acredita na possibilidade de mais contratações. “Nós estamos antevendo: não vai haver uma reposição gigantesca de quadro. Não podemos sonhar demais”, afirma. “Temos que nos focar em fazer reposições estratégicas nos próximos concursos. Para isso, a mão de obra transitória de bolsistas, estagiários e pós-graduandos é importante para que a gente possa ir identificando os talentos.”
Diante dessa situação, é curioso (e ao mesmo tempo lamentável) presenciar uma instituição tão relevante quanto o Inpe sendo negligenciada a ponto de correr um sério risco de esvaziamento. O que estaria emperrando essa importante renovação? Quais seriam os motivos para abrir mão desse bem público incalculável?
A resposta não é fácil, uma vez que são muitos os fatores que podem ter influenciado neste processo. Pode-se dizer, por exemplo, que no Brasil a tecnologia ainda não é enxergada como uma ferramenta de crescimento econômico e redução de desigualdades sociais. Ou ainda que a visão do governo e da sociedade brasileira é a de que a ciência e a tecnologia, na prática, ainda não são assuntos prioritários. E há ainda os partidários da teoria de que vivemos no “ciclo vicioso do Terceiro Mundo”, no qual os perpetuadores do atraso sustentam o argumento de que é mais importante botar comida em um prato do que lançar um foguete para o espaço.
Outras possibilidades apontam para um problema sistêmico: houve, na realidade, uma diminuição da quantidade de funcionários públicos em todo o governo, e não apenas no programa espacial, como uma maneira de enxugar os gastos estatais. Existe também outra vertente que enxerga o problema de modo mais amplo: o envelhecimento do Inpe teria a ver simplesmente com a queda de popularidade dos programas espaciais em um âmbito global. Talvez cada um desses fatores tenha sido determinante para posicionar o Inpe diante da atual crise. O que na verdade ninguém discute é que sempre houve falta de planejamento e coordenação no que diz respeito ao chamado “sonho espacial” brasileiro.
“Há cerca de 20 anos, o nosso programa espacial era quase equivalente aos programas indiano e chinês. Hoje, a Índia está fazendo satélite para ir à Lua e os chineses estão lançando gente em órbita”, compara Salvador Nogueira, jornalista, escritor científico e membro do conselho da Associação Aeroespacial Brasileira. Em dissonância com os programas de países asiáticos, o Brasil continua se debatendo com os mesmos problemas há pelo menos duas décadas. Nos anos 80, houve uma tentativa de organização do programa espacial brasileiro que fracassou: a missão que ficou conhecida como MECB, a Missão Espacial Completa Brasileira. Por uma questão de soberania, o plano da MECB consistia em lançar um satélite brasileiro com um foguete brasileiro em uma base brasileira. Até hoje, tais objetivos não foram alcançados. Durante os anos de atividade da MECB, o Inpe evoluiu, produziu seus próprios satélites e foi considerado o órgão mais adiantado de toda a missão. Tanto que, como até hoje não existe o tal foguete brasileiro os satélites do Inpe foram lançados com a utilização de foguetes de outros países. “A MECB evidenciou uma série de descompassos entre as partes do programa espacial”, explica Nogueira. “Se tivesse tido uma gestão mais estruturada e equilibrada, talvez a MECB hoje pudesse estar completa.” O fracasso da MECB, por si só, talvez seja um dos grandes estopins para o enfraquecimento da vontade política sobre o programa espacial nacional. “É uma lógica simples: se o programa não atinge seus objetivos, não tem visibilidade. Se não tem visibilidade, não tem interesse político. Se não tem interesse político, não tem verba”, define.
A missão espacial nacional foi pautada na tese da soberania, da segurança nacional, que, apesar de ainda ser um argumento válido, não funcionaria mais como na época da ditadura militar e de um planeta dividido pela Guerra Fria. É evidente que em um mundo em que os países são totalmente dependentes dos serviços oferecidos por satélites, seja para monitorar o desmatamento, seja para telecomunicações ou outras aplicações, chega a ser um incômodo não se ter a capacidade para colocar um objeto como esse em órbita. Atualmente, se o Brasil precisar lançar um satélite, terá que contratar um lançamento no exterior. Para ser atendido, terá que contar com condições internacionais favoráveis a esse lançamento. É claro que fica difícil imaginar um contexto político contrário a essa ideia, tendo o Brasil como uma nação pacífica em um mundo relativamente estável. No entanto, esse é o tipo de situação imprevisível, que pode se alterar de uma hora para outra. “O argumento da soberania é negligenciado hoje em dia porque não traz votos nem sensibiliza a população”, opina José Bacellar, gerente do Programa de Sistemas de Solo e Operações do Inpe.
Nogueira, por sua vez, insiste que o programa espacial precisa ser desenvolvido com uma visão mais técnica, apesar de saber que esse direcionamento também não seduz os políticos tradicionais. “Acho que o Brasil tem um grande potencial. Estamos desenvolvendo muito no segmento de ciência e tecnologia. Mas a área espacial depende de verbas muito voluptuosas, e aí é preciso entrar com vontade política também. Precisa de grana grande e gente com visão no governo.”
A expectativa geral é que a recente posse do físico Marco Antônio Raupp no ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (no lugar de Aloizio Mercadante, atual Ministro da Educação) pode representar um importante passo para a retomada da reestruturação política espacial brasileira. De modo geral, a escolha da presidente Dilma Roussef por um perfil técnico no ministério agradou à comunidade científica. “Ele conhece muito bem as nossas dificuldades, as nossas necessidades e também sabe muito bem do nosso potencial”, diz Mário Quintino, do Inpe.
Procurada para falar sobre as possíveis novas diretrizes do programa espacial brasileiro, a assessoria de Raupp alegou indisponibilidade para entrevistas. No entanto, o novo ministro já sinalizou que deve realizar alterações na parte institucional e financeira do programa. Uma reformulação poderia, a longo prazo, acertar os compassos que foram determinantes para o fracasso da MECB. É inadmissível aceitar que os principais órgãos do programa, como o Inpe, a AEB (Agência Espacial Brasileira) e o DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial) continuem trabalhando cada um com propósitos individuais. Estabelecer uma conciliação entre cada organização seria fundamental para um futuro promitente no setor. Entretanto, ainda parece haver um universo infinito de trabalho a ser feito para que sejam criadas condições favoráveis à tal conjuntura política.
Esquentando a cadeira de diretor do Inpe para o seu f uturo e ainda indefinido substituto, cuja escolha ainda tramita no comitê de busca do ministério, Gilberto Câmara está esgotado, mas carrega esperança no discurso. “Eu não estou deixando o cargo porque acho que vai dar tudo errado”, ele diz, acrescentando que, a despeito da delicada crise enfrentada pelo Inpe, o programa espacial brasileiro ainda poderá atingir três importantes marcos em breve. “Mesmo sem o apoio do governo para a reposição de quadros, vamos lançar três satélites nos próximos três anos”, comemora, se referindo aos satélites em parceria com a China, o CBERS 3 e 4 e o Amazônia 1.
Tão obscura quanto o futuro é a vastidão do espaço cósmico. Assim mesmo, Câmara sustenta um inevitável otimismo. “Meu tio-avô Don Helder Câmara costumava dizer: ‘Quanto mais negra a noite, mais ela carrega em si a madrugada’.”