Cinco anos depois de assumir pela primeira vez a presidência da República, Lula e o PT mudaram. E não foi para melhor
Metamorfose Ambulante
Por Lucas Figueiredo
No dia 1º de janeiro de 2003, o Brasil parou para ouvir o novo presidente do Brasil. Do alto do parlatório do Palácio do Planalto, Lula falou: "Mudança: esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições".
O discurso de posse tinha oito páginas. O substantivo mudança e o verbo mudar apareciam 16 vezes.
Passaram-se 1.799 dias (arredondando, cinco anos) e Lula voltou ao tema ao explicar por que mudara de opinião, passando a ser favorável à CPMF: "Prefiro ser uma metamorfose ambulante. Mudar como as coisas mudam".
De fato, Lula mudou. O PT também. A vida é assim mesmo: a gente cresce e muda. Mas também é verdade que, nesse processo, acaba ficando para trás mais do que deveria.
Quando começou a despontar no cenário nacional, no fim dos anos 70, Lula encarnou o cidadão brasileiro farto com a falta de ética na política. Fundou o PT, em 1980, oferecendo ao país uma alternativa - para muitos, mais que isso: uma esperança. Naquela época, ele costumava dizer que, quando seu partido chegasse ao poder, haveria uma redução tão drástica da corrupção que provocaria uma sobra de 10% no Orçamento da União.
A base moral que Lula e seu partido representavam consolidou-se definitivamente no início da década de 1990, quando o Brasil foi enxovalhado pelas diabruras do presidente Fernando Collor de Mello e sua turma. Quando tudo parecia perdido, Lula e o PT ajudaram a apontar uma saída para o Brasil, trabalhando pelo impeachment de Collor e pela fundação do movimento "Pela ética na política". Goste-se ou não de Lula, com ele acostumamo-nos a dar nomes aos bois: corruptos eram corruptos, picaretas eram picaretas, maracutaias eram maracutaias. E quem roubava dinheiro público era ladrãããããããããão!
Em que momento as coisas mudaram? Quando começou a inflexão de Lula? Resposta difícil. Mas alguns momentos - ou eventos, como preferem os historiadores - são simbólicos. Um deles é a reunião de dirigentes do PT e do PL, em 2002, em que ficou acertada a coligação dos dois partidos. Lula tinha o palpite de que conseguiria amainar sua fama de radical caso tivesse na sua chapa o empresário & bilionário José Alencar, do PL. Já o PL topava entrar no barco petista, desde que recebesse R$ 20 milhões. Naquela reunião, enquanto Lula e Alencar jogavam conversa fora numa sala, capas-pretas dos dois partidos discutiam em outra. Na negociação, os R$ 20 milhões caíram para R$ 15 milhões e acabaram virando R$ 10 milhões. Tempos depois, Lula diria que não viu nada, ouviu nada e, mais importante, falou nada. A mudança já tinha começado.
Nessa mesma época, o PT fechou outro acordo, com o PTB do ex-collorido Roberto Jefferson. Preço da fatura: R$ 20 milhões. De onde vinha o dinheiro? Até hoje ninguém sabe. De vendas de buttons de estrelinha é que não foi. O que se sabe é que o partido de Lula usou dos serviços do "empresário" Marcos Valério para fazer estranhos empréstimos (para o Ministério Público, operações de lavagem de dinheiro), no valor de R$ 55 milhões, com os bancos BMG e Rural. Parte do dinheiro foi enviada para o exterior, de forma irregular, para pagar serviços não contabilizados do marqueteiro Duda Mendonça. Ou seja, tudo fora da legalidade. Na questão financeira, foi Roberto Jefferson quem melhor definiu a mudança do PT, chancelada por Lula: "Não passa um filete de água pura num cano de esgoto". E olhe que de lama o petebista entende.
Na presidência, Lula - antes tão atento - teve sua metamorfose acentuada. Não percebeu que muitos de seus antigos companheiros estavam dando demasiado valor para charutos Cohiba Lanceros (R$ 80 a unidade), carros Land Rover usados (R$ 73 mil), uísque Blue Label (R$ 550 a garrafa) e vinhos acima de R$ 300. Não soube que vários de seus colegas se esbaldavam depois do expediente em festinhas com garotas de programa pagas com dinheiro de estranhas transações. Tornou-se "parceiro", quando não amigo de infância, de homens como Renan Calheiros, José Sarney, Jader Barbalho, Paulo Maluf, Newton Cardoso, Geddel Vieira Lima& Por fim, não entendeu o motivo de a multidão gritar ladrãããããããão para petistas tidos, no passado, como homens santos.
No seu processo de mudança, Lula diminuiu. A ponto de levar pito de Antonio Carlos Magalhães, o político profissional baiano que fez fortuna à sombra de governos autoritários e corruptos. "A culpa que ele [Lula] tem", explicou ACM certa vez, "é ter escolhido e loteado o Brasil com pessoas incompetentes e algumas corruptas". Se fosse só ACM (que Deus o tenha!), ainda estaria bom. Ruim mesmo foi engolir a ruptura do jurista Hélio Bicudo com o partido que ajudara a fundar. Na ocasião, Bicudo - uma das maiores reservas morais do país, ex-deputado federal do PT e vice-prefeito de São Paulo na gestão de Marta Suplicy - descascou o Partido dos Trabalhadores e Lula. Sobre o primeiro, disse: "O partido se afastou dos princípios éticos e morais". Sobre o segundo, fulminou: "Lula é um homem centralizador. Sempre foi presidente de fato do partido. É impossível que ele não soubesse como os fundos estavam sendo angariados e gastos". Doeu!
Até em coisas aparentemente desimportantes Lula demonstra o quão está diferente. Em setembro passado, ao inaugurar o Aeroporto de Cabo Frio (RJ), o presidente fez questão de elogiar a pista. "O pessoal que cuida do meu avião só pousa em aeroporto seguro, por isso estou pousando aqui", disse ele. Meu avião? Como assim? Pode parecer um deslize, mas aposto que o velho Sigmund Freud teria uma leitura diferente.
Lula, no entanto, não se avexa. Afinal, como ele mesmo explicou, é uma metamorfose ambulante. Pobre Raul Seixas, deve ter se revirado na tumba ao ver sua música ser usada para justificar a transformação de um homem bom e honesto em político omisso e conivente com um certo tipo de bandalheira que desonra o país há 500 anos. Mas Raulzito sempre soube também o que o ouro de tolo faz com os fracos.