Passeando pelos caminhos glamorosos da dramaturgia mais como observadora do que como parte integrante, Maria Casadevall se destaca tanto pelo modo como seleciona seus papéis quanto pela busca por uma trajetória distante do “ser celebridade”
Maria Casadevall assiste. Pelo reflexo das paredes de vidro de um café em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, ela consegue olhar para quem está em volta sem ser percebida. Livre de maquiagem, usando calças largas e um sempre presente par de tênis AllStar, chega ao local três horas antes do horário combinado – além de estudar o entorno, passa o tempo lendo e fazendo marcações no livro O Dilema da América Latina, de Darcy Ribeiro (ela abre a mochila para mostrar: as revistas e os livros que carrega são sempre repletos de trechos sublinhados). “Quando era mais jovem, eu tinha muito uma tendência de me fechar no meu mundo e ficar numa viagem nele. Hoje, acho que essa tendência se reflete em um gosto particular pela solidão”, ela conta. “Gosto muito de compartilhar, só que preciso de um tempo meu para assimilar as coisas – caminhar sozinha, ficar sentada sozinha – para aí, então, poder dividir.”
Atriz versátil e extremamente seletiva em relação aos trabalhos que resolve abraçar, Maria saiu de um projeto que a marcou profundamente (a série Os Dias Eram Assim – ela aponta os pelos do braço arrepiados quando fala sobre a obra) para uma imersão em Ilha de Ferro, primeira série do diretor Afonso Poyart (dos filmes Dois Coelhos e Mais Forte Que o Mundo – A História de José Aldo). Previsto para o segundo semestre, o programa, que tem ainda Cauã Reymond, Sophie Charlotte e Kleber Toledo no elenco, faz parte das investidas da Rede Globo em projetos mais experimentais, com linguagem cinematográfica. “A história toda se passa em uma plataforma de petróleo, em um universo masculino. A minha personagem é uma mulher que, de certa forma, exerce uma liderança dentro desse universo, e isso me chamou atenção”, conta. “Também passa por uma questão muito importante para entender a crise que a gente vive hoje. Entender a riqueza natural que temos no nosso país, algo que, apesar de ser uma questão estratégica na geopolítica mundial, é uma coisa que não costumamos discutir. Isso está inserido no contexto da série.”
Quem vê Maria Carolina Casadevall Gonzaga, de 30 anos, em uma campanha publicitária para grifes como a francesa Dior, dificilmente enxerga nela uma mulher pouco dada a apegos, característica que a artista transmite no modo de se portar, de se vestir no dia a dia e nas relações interpessoais. No segundo semestre de 2017, ela passou um mês estudando em uma cidade do interior da França – em vez de escolher um hotel, recolheu-se na casa de uma família local, em um quarto “com apenas uma cama e uma escrivaninha, tudo muito maravilhoso e simples”. Nem os diários dos anos de adolescência, aqueles dos quais a maioria dos seres nostálgicos não conseguem se desfazer, ela tem mais. “Não guardo nada, tenho poucas coisas para poder me deslocar com maior fluidez”, explica. Se descreveria como um ser livre, então? “Acho que um ser nômade. A liberdade é uma pretensão”, rebate. “Vejo pessoas que considero muito livres e penso: ‘Putz, como estou distante disso, como sou quadrada’. A liberdade é sempre um norte.”
À distância, pode parecer uma visão de mundo ou um comportamento romantizado. Mas algumas horas de convívio fazem acreditar que aquela Maria Carolina, sem retoques de maquiagem e sem truques de media training, é, de fato, real.
A carreira de atriz não era um sonho de menina. O primeiro meio de expressão no qual Maria se encontrou foi, na verdade, o texto. “Eu realmente não me lembro de mim sem a escrita, é impossível dissociar uma coisa da outra. Desde muito pequena era dessa forma que eu traduzia o mundo ao meu redor.” Acabou entrando para a faculdade de jornalismo, em uma época em que já trabalhava em peças publicitárias em busca de independência financeira (quando Maria tinha 8 anos, os negócios do pai, empreendedor, faliram; a família precisou sair de um apartamento no bairro nobre do Itaim Bibi para morar na casa da avó materna, na região central de São Paulo). Foi no tempo em que começou a fazer comerciais para a televisão que tomou gosto pelas artes cênicas. “Uma pessoa que é muito importante para mim é um homem chamado Fernando Leal de Souza. Ele é cineasta, foi com quem fiz meu primeiro curso de interpretação para TV e cinema [anos mais tarde, os dois rodaram juntos o curta A Ordem do Caos… Ou, exibido no Festival de Cannes em 2017]”, relembra. “A gente se conhece desde os meus 16 anos. Ele tirava muito sarro de mim. ‘Apanhei’ demais. No curso, fazíamos cinco cenas por aula, e depois nos assistíamos e comentávamos. E ele acabava com todo mundo, acabava comigo: ‘Zezinha, pra isso ser ruim, ainda falta muito!’ Dizia: ‘Não gaste seu tempo correndo atrás de oportunidades, gaste seu tempo lapidando seu material intelectual, físico’. Tem muitas coisas dele que eu levo comigo.”
A personalidade de Maria caminha entre os opostos extroversão/introversão: extrovertida para se colocar diante das câmeras, introvertida na hora de assimilar o que ocorre à sua volta. Por pouco, o segundo polo não se sobrepôs ao primeiro: logo antes de conseguir o papel de estreia na TV, na novela Amor à Vida, Maria passou por um intenso período de depressão. Achou que o plano de seguir como atriz era um erro de percurso. “Foi um processo de me redescobrir”, afirma. “Pensei que não era mais pra mim. Tinha certeza de que queria fazer ciências sociais e antropologia cultural, e que daí eu estudaria teatro pelas vias acadêmicas. Fiz cursinho, passei na Fuvest e achei que era isso.” Nesse meio-tempo, os colegas da companhia de teatro Os Satyros tentavam fazê-la voltar aos palcos. Depois de várias investidas frustradas, o diretor Rodolfo García Vázquez a convenceu a participar de um projeto inusitado – Os Satyros na montagem de uma peça infantil, com temporada pelos CEUs (Centros Educacionais Unificados), passando por toda a periferia da cidade. “Acho que foi esse processo que me reestruturou”, analisa.
A depressão não é vista por Maria nem com o verniz glamoroso do “artista de alma atormentada” nem com o distanciamento de quem passou por traumas e não pretende retornar a eles. “É curioso, porque às vezes, quando falo dessa experiência, pessoas que acompanharam na época dizem: ‘Poxa, que pena, foi tão chato’. E eu respondo que, pelo contrário, foi difícil, mas foi muito importante”, diz. “Acho que, de certa forma, o contato com o sofrimento te tira de um comportamento meio automatizado. Você está fragilizado e por isso sai um pouco dos caminhos que sempre faz, porque aquilo te desestabiliza. Acredito que se desestabilizar é importante para conseguir enxergar as coisas de outro ângulo. Eu me coloco em situações que me desestabilizam um pouco. Acho importantíssimo para a trajetória do artista se sentir idiota, por exemplo. Quanto mais chance você tiver de se sentir idiota, melhor, porque você vai perdendo o medo do ridículo. Por outro lado, tem que tomar um cuidado para não entrar num caminho viciado atrás de tristeza. É uma armadilha ficar alimentando tristeza.”
Um garçom oferece a degustação de um pudim de chia com manga; Maria pede que ele deixe apenas uma porção na mesa, e a dividimos, usando duas colheres. Uma mulher se aproxima, trazendo consigo uma moça adolescente, e pede um retrato. É tratada com doçura; a atriz aproveita para elogiar o chapéu da mais jovem.
Maria é o tipo de entrevistada que não busca apenas falar e emitir opiniões. Ela passa distante do monólogo – gosta de ouvir, de trocar. Talvez tenha a ver com a busca pela liberdade, não apenas no sentido de ser livre ela mesma mas também no sentido de fazer os outros se sentirem livres. O primeiro relacionamento amoroso, vivido entre os 17 e os 21 anos, foi primordial na construção desse conceito. “Acho que todas as relações acrescentam muito. Sempre que eu saio de uma relação, vejo o quanto daquilo ficou em mim. Esse relacionamento foi muito importante não só por ter sido o primeiro, mas porque foi ali que eu entendi que o amor é muito mais uma questão de liberdade do que de aprisionamento, de posse”, revela. “No começo havia ciúmes, mas foi aí que fui entendendo que isso não tinha nenhuma serventia. Entendi que quando você ama alguém, dentro do conjunto amor, que é gigantesco, existe uma bolinha que se chama relação, que é essa relação cotidiana que você cria com a pessoa. Só que o amor é muito maior que isso.”
Ainda assim, a liberdade – e a coragem para exercê-la – por vezes lhe escapam. “Nesse momento complicado politicamente, às vezes eu tenho opiniões que parecem mais sólidas e mais claras para mim no diálogo comigo mesma do que na maneira como eu me exponho, ainda que eu exponha. Acho que em alguns momentos eu deveria ser mais corajosa e me expor mais, talvez.”
Maria reflete sobre o medo do fortalecimento de nomes como o do deputado Jair Bolsonaro na política com real consternação; se dedica à conversa sem se preocupar com o tempo, enquanto pensa em cada pergunta (e continua a pensar depois que as responde, complementando algumas questões por vontade própria dias depois do encontro no café); experimenta o momento presente tentando ao máximo se manter longe de expectativas. Quando desligo o gravador, ela pede, se referindo ao pudim de chia e manga, no que acaba sendo uma metáfora para o modo como ela se desloca pelo mundo: “Você tem que comer o negócio que está lá no fundo, é bem bom!” Maria Carolina não gosta de ficar na superfície.
Dias de Música
Após Os Dias Eram Assim, atriz pensa em projetos envolvendo o canto
A série Os Dias Eram Assim fez se intensificar em Maria Casadevall a vontade de participar de um projeto musical (ela e o elenco gravaram canções para a trilha do programa). “É um caminho que eu ainda quero trilhar com mais cautela, mais seriedade. Quero ter um tempo na minha vida para me dedicar de verdade ao canto”, afirma. “É uma coisa que me provoca muito. Acho que é uma manifestação das mais genuínas e primitivas do espírito, uma coisa libertadora. Às vezes, a interpretação, principalmente na televisão, preza muito por uma lógica dissertativa, cronológica. Acho que o canto se liberta nesse sentido – não exige lógica, ele pede paixão, entrega.” Uma ideia seria uma performance “com músicas que mexem comigo, que dizem coisas que eu gostaria de dizer de uma forma não lógica”. Caso um projeto nessa linha saia do papel, uma das artistas que Maria gostaria de ter no repertório de canções é a cantora Lhasa de Sela, norte-americana radicada no Canadá que morreu de câncer em 2010.