A Batalha no Estudio
O fato de o Nirvana saber como In Utero deveria soar não impediu que a gravação fosse regida por conflitos burocráticos, como reportou Fred Goodman em junho de 1993 (RS 659)
Ah, trabalhar sob o manto da obscuridade! Dois anos depois de Nevermind tê-los transformado em deuses do grunge, os membros do Nirvana se encontram lutando pelo status de grupo alternativo e negando as alegações de que tenha se rendido à pressão da gravadora e dos empresários para dar uma cara mais comercial ao novo álbum. A tempestade que cercou o disco começou quando o produtor alternativo-hardcore Steve Albini – que já trabalhou com Pixies, Helmet, Superchunk e PJ Harvey – declarou ao Chicago Tribune duvidar que o selo do qual o Nirvana faz parte, o DGC, da Geffen, lançaria o álbum. “Geffen e os empresários da banda odiaram o disco”, Albini disse, acrescentando que não tinha “esperança nenhuma de que o LP fosse lançado”.
Embora as observações de Albini não tenham despertado resposta imediata do grupo ou da gravadora, uma matéria publicada pela revista Newsweek o fez. “Não houve pressão da nossa gravadora para que mudássemos as faixas que gravamos com Albini", disse Kurt Cobain em um comunicado. “Temos 100% de controle sobre a nossa música.” Os produtores Scott Litt (mais conhecido pelo trabalho feito com o R.E.M.) e Andy Wallace (que mixou Nevermind) foram chamados para trabalhar nas fitas. Mas a banda, a gravadora e os empresários dizem que não foi feita nenhuma tentativa de amenizar a música do Nirvana. “É um monte de merda o que estão dizendo”, diz o executivo de A&R da Geffen, Gary Gersh, que trouxe a banda para a gravadora. “Eles acharam que deveriam trabalhar um pouco mais nas faixas, e concordei com eles. Achei que o som do álbum precisava de ajustes. Pedimos ao Steve para fazê-los, mas ele se recusou. O panorama que Steve traça – de que um grande conglomerado corporativo tenha aleijado o Nirvana – simplesmente não é verdade. Kurt Cobain é como um filho para mim.”
Albini agora soa mais conciliador. “Gostei de trabalhar no disco e admiro a banda”, diz. “Desde o início achei que eles deveriam simplesmente deixar claro o que achavam, e fico feliz que tenham feito isso.” Embora os integrantes do Nirvana não falem diretamente com a imprensa, eles parecem extraordinariamente preocupados com a cobertura que as afirmações de Albini geraram. Uma cópia da carta enviada ao editor da Newsweek, assinada por Cobain e os parceiros, Dave Grohl e Krist Novoselic, repudiando o artigo, também circulou entre veículos de imprensa. Por que toda essa preocupação? Ao definir as faixas que gravou com a banda como “radicais” demais para o gosto da Geffen ou da Gold Mountain, Albini parece ter colocado o Nirvana sob os holofotes. Apesar do enorme sucesso comercial de Nevermind, a banda continua sendo uma das figuras de mais credibilidade dentro da música alternativa. Mas o próximo álbum do Nirvana será com certeza minuciosamente examinado em busca de qualquer concessão comercial, e as declarações de Albini pareceram sugerir que qualquer mudança que a banda faça no material já gravado será resultado da pressão supostamente feita pela gravadora e pelos empresários deles. O produtor diz: “Estou satisfeito em deixar que a banda fale por si própria”.
In Utero Chega as lojas
Em junho de 1994 (RS 683), Neil Strauss analisou os últimos passos de Kurt Cobain e descobriu os problemas por trás do lançamento do derradeiro álbum de estúdio do Nirvana
Mesmo considerando que Kurt Cobain havia prometido não "sair mais em turnês longas", a menos que pudesse manter as dores crônicas de estômago sob controle, o Nirvana caiu na estrada para uma longa sequência de shows nos Estados Unidos e uma série de entrevistas, incluindo uma para a Rolling Stone, em outubro. De acordo com algumas fontes, Cobain se desintoxicou do vício em heroína antes da turnê. Em 8 de janeiro de 1994, o Nirvana apresentou o que seria o último show norte-americano da banda, no Seattle Center Arena. A banda passou as semanas seguintes relaxando na cidade. Durante esse período, em uma atitude considerada pouco comum por muitos, Cobain autorizou a Geffen a fazer alterações em In Utero. Para chegar a grandes redes como Kmart e WalMart, que haviam rejeitado o álbum anteriormente, a gravadora decidiu remover da contracapa a colagem de modelos de fetos que Cobain havia feito.
A Geffen também mudou o título da música “Rape Me” para “Waif Me”, nome escolhido pelo próprio Cobain, de acordo com Ray Farrell, do departamento de vendas da gravadora. “No começo, Kurt queria que ela se chamasse ‘Sexually Assault Me’ [‘Ataque-Me Sexualmente’]”, ele diz. “Mas ia tomar muito espaço. No fim, ele escolheu ‘Waif Me’, porque, assim como ‘rape’ [estupro], a palavra não define um gênero específico. ‘Waif’ [abandono] representa alguém à mercê de outra pessoa.” A versão alterada foi também lançada em Singapura – único país onde In Utero havia sido banido.
A Ressaca Após o Lançamento
Poucos meses antes do suicídio, em janeiro de 1994 (RS 674), Cobain revelou a David Fricke que já não aguentava explorar a velha e infalível receita “verso calmo, refrão explosivo”
Suas melhores músicas – “Smells Like Teen Spirit”, “Come as You Are”, “Rape Me”, “Pennyroyal Tea” – abrem com um verso mais baixo, e então vem o refrão, no volume máximo. O que vem antes, o verso ou o refrão?
[Faz uma longa pausa e sorri] Não sei mesmo. Acho que faço o verso primeiro. Mas estou ficando cansado dessa fórmula. E é realmente uma fórmula. Não há muito que eu possa fazer a respeito. Dominamos esse processo enquanto banda, mas estamos cansados disso. É um estilo de dinâmica, mas só estou usando esses dois tipos. Há muito mais que eu poderia usar. Temos trabalhado nessa fórmula – essa coisa de ir do silêncio ao barulho – por tanto tempo, que está se tornando chato. É tipo “Ok, tenho esse riff. Vou tocar baixinho, com o som limpo, sem distorção, enquanto canto. Depois ligo a distorção e você toca a bateria com mais força”. Quero aprender um meio-termo, ir e voltar, de um jeito quase psicodélico no sentido de haver muito mais estrutura. É algo bem difícil de fazer e não sei se somos capazes – como músicos.
Faixas como “Dumb” e “All Apologies” demonstram que você quer atingir as pessoas sem apelar para a receita tradicional.
Absolutamente. Queria ter escrito mais algumas músicas como essas. Colocar “About a Girl” em Bleach [1989] foi um risco. Havia muita pressão dentro do underground – do mesmo tipo que você sofre quando está no colégio. E colocar uma música meio pop, que lembrava um R.E.M. desafinado em um disco de grunge, no meio daquela cena, foi arriscado. Fracassamos em mostrar o lado mais calmo, mais dinâmico da banda. Os garotos querem ouvir a guitarra barulhenta. Gostamos de tocar essas coisas, mas não sei até quando vou conseguir berrar até me esgoelar todas as noites. Às vezes queria ter seguido o mesmo caminho de Bob Dylan e cantar músicas que não acabassem com a minha voz a cada show, assim poderia ter uma carreira longa se quisesse.
Musica além da vida
Em outubro de 2002 (RS 908), Charles R. Cross investigou como foi a sessão que gerou “You Know You’re Right”, a última gravação do Nirvana, lançada após a morte de Cobain
"A 'briga’ pelo Nirvana acabou”, Courtney Love postou no site dela em setembro, “e vocês vão ter as gravações que queriam.” A disputa – que culminou com dois anos de processos judiciais entre Courtney e os membros restantes da banda, Krist Novoselic e Dave Grohl – terminou quando ambas as partes concordaram em lançar um apanhado dos maiores sucessos do Nirvana, que leva o nome da banda. Embora os autos do processo descrevam “centenas” de demos inéditas gravadas por Cobain ainda guardadas a sete chaves, “You Know You’re Right” é uma das poucas faixas finalizadas pelo grupo. “É uma das melhores músicas deles”, diz Adam Kasper, que produziu a última sessão. “Está provavelmente entre as dez melhores.”
“You Know You’re Right” foi gravada em 30 de janeiro de 1994, dois dias antes de a banda deixar Seattle rumo a uma turnê de três meses pela Europa e apenas dois meses antes da morte de Cobain. O Nirvana havia alugado o estúdio por três dias, mas, por causa dos problemas que tinha com as drogas, Cobain não compareceu nos dois primeiros. Grohl e Novoselic passaram esse tempo trabalhando nas músicas de Grohl, várias delas regravadas posteriormente para o primeiro álbum do Foo Fighters. Em 30 de janeiro, Cobain apareceu, surpreendentemente de bom humor. Eles trabalharam em algumas faixas de Grohl e improvisaram em cima de alguns dos riffs de Novoselic. “Acho que eles estavam tentando abrir mais o processo de composição”, relembra Kasper.
Depois de uma pausa para pizza, os membros da banda voltaram para o estúdio para o que seria a sessão final do Nirvana. Cobain sugeriu uma música que havia tocado uma vez ao vivo. “Ele arrumou parte dos versos na última hora, e ainda não tinha o título”, relembra Robert Lang, dono do estúdio. Após duas tentativas, o grupo gravou o que seria a master de “You Know You’re Right”. “Kurt tinha o riff e nós o ‘nirvanizamos’”, explica Novoselic. Na sala de controle, Kasper e Lang ficaram embasbacados. “Quando começaram a tocar, fiquei quase sem fala”, diz Lang.
Cobain gravou mais quatro takes de vocal, e Kasper duplicou a trilha enquanto ele ficava deitado no chão de mármore do estúdio. A única reclamação do vocalista naquele dia foi sobre as dores crônicas nas costas: ele disse que o chão duro as aliviava. Talvez a condição física dele tenha contribuído para a letra sugestiva: o verso “Things have never been so swell” (“As coisas nunca estiveram tão maravilhosas”) faz par com um refrão em que gritava “Pain!” (“Dor!”) em sua voz mais primitiva. “Isso dizia muito, e era típico de Kurt”, lembra Kasper. “Era como uma mensagem.”
Kurt Cobain nunca explicou a faixa, e ninguém na sala ousou perguntar sobre o que ela era. A banda combinou com Lang de voltar depois da turnê europeia e terminar as músicas para o que seria o quarto álbum do Nirvana. No fim da noite, o líder gravou um último overdub de guitarra, e “You Know You’re Right” estava pronta. A sessão havia terminado, e Cobain saiu pela porta do estúdio.