A Era dos Extremos
Com discursos radicais e forte tendência ao conflito, políticos como Jair Bolsonaro ganham voz e colocam fogo nos debates ideológicos
Cristiano Bastos
Publicado em 11/07/2011, às 11h59 - Atualizado em 07/07/2014, às 17h06Desde que o Brasil restaurou a liberdade democrática, há 26 anos, o cenário da política nacional parece ebulir na intensidade de um vulcão que desperta em calorosa erupção. Como em nenhum outro momento da história, o debate nunca foi tão vasto, um sinal de que a democracia está amplamente assegurada. Nos últimos tempos, respingando em todas as direções, à direita ou à esquerda, inflamáveis questões impregnaram a opinião pública e os noticiários - uma autêntica "fornalha ideológica" na qual ardem temas controversos da atualidade: homofobia, união homoafetiva, cotas raciais, religião, pena de morte. E, em um déjà vu dos anos militares, até a tortura entrou em pauta.
Mas que novos ares são estes? Afinal, os tempos vivenciados pela política atual não são diferentes dos anteriores, nos quais a democracia reinou no Brasil. Vale lembrar, contudo, que a política sempre foi o "reino do conflito ou do consenso", conforme reforça o cientista político Octaciano Nogueira, autor da obra Vocabulário da Política. "Ou buscamos o consenso ou entramos em conflito. Todos gostaríamos de conceber a política como o reino do consenso e não como a predominância do conflito. O conflito, porém, é inerente à política."
Conflito é quase a palavra de ordem para o deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PP-RJ), cuja popularidade foi alçada graças às suas extremadas declarações sobre tópicos polêmicos como homofobia, preconceito racial, tortura, pena de morte e militarismo. Um militar da reserva, Bolsonaro alardeia abertamente, por exemplo, as "benesses" do golpe militar de 1964. Teria sido, a seu ver, um "glorioso período" da história do Brasil - "Vinte anos de ordem e progresso". Tão anacrônico quanto o totalitarismo, o parlamentar advoga a favor do uso de tortura em casos de tráfico de drogas e sequestro. "O objetivo é fazer o cara abrir a boca", justifica. Mortalmente radical, por outro lado, é sua solução para crime premeditado: execução sumária. Incontáveis são as controvérsias com as quais Bolsonaro se envolveu desde que entrou para a política, em 1988. Seu linguajar impetuoso não poupou a presidente Dilma Rousseff, o ex-Luiz Inácio Lula da Silva e, muito menos, o antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Quando FHC ainda estava no poder, em 2000, Bolsonaro disse que o ex-presidente estava "cometendo um crime" ao governar o Brasil da forma como fazia. Deveria, portanto, "ser fuzilado". Hoje, o deputado afirma que é preciso analisar o contexto da época - e também levar em conta seu nacionalismo exacerbado: "Quando FHC privatizou a Vale do Rio Doce, falei que, se vivêssemos num país sério, ele seria fuzilado". Segundo ele, o lucro da empresa foi de R$ 50 bilhões em 2010. "O que a Vale produziu até hoje para o país? Somente buraco. Tira daqui o que temos de melhor, in natura, minerais, e vende a preço de terra no primeiro mundo."
Na cartilha educativa de Jair Bolsonaro, para "corrigir" filhos com tendências homossexuais, reza um antiquado método: as palmadas. De acordo com ele - que declarou preferir "ter um filho morto em um acidente a um homossexual" -, o propósito seria "mudar o filho gayzinho". Como era de se esperar, a artilharia pesada fulminou como belicoso petardo entre defensores dos direitos humanos e associações LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). A despeito desse flagrante reacionarismo, é válido lembrar que nenhum político está na Câmara, no Senado ou na Presidência da República sem, antes, receber os votos dos cidadãos. "Bolsonaro não sobressai por contribuições, grandes pronunciamentos ou pela defesa de reconhecidas ideias democráticas. Ele faz, justamente, o contrário", afirma o cientista Nogueira, para quem o deputado do PP "prega no deserto", ou seja, fala somente para um pequeno segmento de extrema direita.
Sangue do mesmo sangue e ambos do Partido Progressista (PP) do Rio de Janeiro, os dois filhos de Jair Bolsonaro são seus mais fiéis aliados. Eleito vereador mais jovem do Brasil, aos 17 anos, Carlos Bolsonaro é o "espelho paterno": é a favor da pena de morte e da tortura para traficantes. Trabalhadores sem terra, ele os considera "vagabundos". No Twitter, o jovem vereador dispara suas missivas "bolsonarianas": "O mundo tá acabando mesmo. Gays querendo ser superclasse, maconheiros se dizendo revolucionários e STF libertando assassino", postou, referindo-se ao ativista italiano Cesare Battisti, anistiado pelo governo brasileiro. Seus posts alvejaram, também, a presidente Dilma: "Se assaltar, sequestrar e matar é o mesmo que ser perseguido político, em pouco tempo [o traficante Fernandinho] Beira-Mar será presidente do Brasil!", escreveu. O irmão mais velho, o deputado estadual Flávio Bolsonaro, tal como o pai, bate continência para os anos de regime militar: "Naquele tempo havia segurança, saúde e educação de qualidade e respeito".
Escoltado por sua imunidade parlamentar, Jair Bolsonaro deita e rola em suas declarações. Vê, inclusive, como "muito bem-vinda" a adesão recebida de grupos neonazistas - dentre os quais, o White Pride World Wide (Rede Mundial do Orgulho Branco) -, que se reuniram na avenida Paulista a fim de apoiá-lo. Divulgada na internet, a mobilização conclamava cristãos, nacionalistas e militares para combater "toda essa libertinagem que os direitos humanos vêm impondo para nós e nossas famílias, como 'kit-gay', aborto e tentativas de tirar os direitos dos pais de educar os seus filhos". A incitação também valorizava a figura de Bolsonaro: "Vamos dar nosso apoio ao único deputado que bate de frente com esses libertinos e comunistas!" O deputado, por sua vez, não camufla elogios aos "carecas", como a eles se refere: "O pessoal conhecido como skinhead fez uma manifestação, me convidaram e eu não fui. Mas fiquei muito feliz, porque me apoiaram numa causa mais do que justa, ou seja, contra o fanatismo homossexual".
Com o reconhecimento da união estável de casais homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal, em maio, Bolsonaro embarcou novamente em bate-bocas de "teor homofóbico". Durante reunião da Comissão de Direitos Humanos do Senado sobre o estrepitoso Projeto de Lei Complementar 122/06, que criminaliza a homofobia, o parlamentar tirou do sério a senadora Marinor Brito (PSOL-PA). O tumulto começou quando ele postou-se atrás da relatora do projeto, senadora Marta Suplicy (PT-SP), que concedia uma entrevista sobre a sua retirada da pauta de votação, e protestou, brandindo panfletos. O alvo era o "Kit Brasil sem Homofobia", do Ministério da Educação (MEC), apelidado por Bolsonaro de "Kit-Gay". Embravecida, Marinor Brito revidou: "Tu és homofóbico. Tu deveria ir pra cadeia!", ela gritou para o desafeto, o qual devolveu, chamando-a de "heterofóbica". No mesmo dia, Marinor ingressou com representação contra o deputado no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, por quebra de decoro parlamentar e por ter classificado de "promiscuidade" a possibilidade de um filho seu ter relacionamento com uma mulher negra (referindo-se à cantora Preta Gil), em entrevista que concedeu ao programa CQC, em março. No julgamento do caso, ocorrido em 29 de junho, Bolsonaro acabou absolvido.
Dias antes da sessão que determinou a absolvição de Bolsonaro, Marinor Brito garantiu que nenhuma atitude intimidatória iria "demovê-la da luta", "até que cesse a violência contra homossexuais no Brasil". "Mecanismos legais devem ser criados", ela declarou. "Não admitimos que, em pleno século 21, as pessoas ainda precisem se defender da intolerância. Sempre que necessário usaremos representação contra qualquer um que ousar ofender uma mulher, um negro ou homossexual - que ousar fazer o que Bolsonaro tentou fazer conosco no Senado!" Quanto ao destino que desejava para seu opositor, a senadora foi enfática: "Eu espero que ele seja cassado. Respeito é bom e nós exigimos".
O acusado contra-atacou, ao seu estilo: "Essa mulher é uma desequilibrada". E aproveitou para desacreditar seus adversários - políticos e "midiáticos": "Eu duvido que o senhor Marcelo Tas, Preta Gil ou a Marinor Brito tenham coragem de ir ao Conselho de Ética. Sabem que serão massacrados pelos meus argumentos", desafiou.
Nas últimas semanas, a bancada evangélica bancou duros embates contra o governo federal. O banimento do kit "Escola sem Homofobia" foi uma das cruzadas das quais saíram vitoriosos. Após ceder às pressões da bancada, a cartilha pedagógica, cujo conteúdo abordava a homossexualidade em vídeos, foi vetada por Dilma Rousseff , que desaprovou seu conteúdo. "Não aceito propaganda de opções sexuais. Não podemos intervir na vida privada das pessoas", explicou Dilma. A presidente, contudo, reafirmou que o governo "defende a luta contra práticas homofóbicas". A polêmica, contudo, deve reacender em breve. Fernando Haddad, ministro da Educação, revelou que o kit será refeito e, ainda este ano, estará pronto para ser distribuído em seis mil escolas, em uma versão "light".
Oficialmente, entre os que defendem sua aprovação, o Projeto de Lei Complementar 122/06 é conhecido como "Por um Brasil sem Homofobia". No Congresso, a bancada evangélica não perdoou e batizou-o de "Lei da Mordaça Gay". Entre os francamente contrários estão os deputados federais João Campos (PSDB-GO), Ronaldo Fonseca (PR-DF) e Anthony Garotinho (PR-RJ), além dos senadores Marcelo Crivella (PR-RJ), Magno Malta (PR-ES) e Walter Pinheiro (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar da Família. E, obviamente, Jair Bolsonaro. Magno Malta, também pastor evangélico e integrante da banda gospel Tempero do Mundo, prega que o Senado não tem poder para criar, por meio da legislação, um "terceiro sexo". "Se Deus criou macho e fêmea, não vai ser o Senado que vai criar um terceiro sexo com uma lei. É preciso que eles entendam que o anseio grotesco de uma minoria não vai se fazer engolir." Bolsonaro chama o PLC 122 de "lixo atômico" e que melhor seria "pôr uma camada de cimento em cima e jogar no mar": "Se der para colocar o Jean Willys [deputado pelo PSOL-RJ] dentro, melhor ainda. Será um fundamentalista a menos atentando contra a família, os bons costumes e a religião em nosso país".
Depois da revolução deflagrada pelo PLC 122 e pelo kit anti-homofobia, o deputado João Campos, coordenador da Frente Evangélica, pretende ir além. Campos, que também é delegado, apresentou à mesa diretora da Câmara um projeto de decreto legislativo cujo objetivo é cassar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Em maio, o STF reconheceu a união homoafetiva estável. O deputado tucano - o qual declarou que "ser gay não é normal" - propõe que agora todos os atos decorrentes desse ato sejam anulados. Campos alega que o Judiciário "apropriou-se do tema". A maioria dos deputados, ele afirma, também é contrária à decisão. "Sou contra [a união homossexual estável], assim como é a maioria dos congressistas e da sociedade. Se fossem a favor, o Congresso teria aprovado o projeto", afirma. Outros descontentes, entretanto, já fazem "justiça com as próprias mãos". Semanas após a decisão do STF, o juiz Jerônymo Villas Boas, de Goiânia (GO), anulou a união do casal Odílio Torres e Leo Mendes. Villas Boas, que é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, contestou o Supremo, alegando que a Corte "não tem competência para alterar a Constituição Federal", e a decisão estaria fora do "contexto social brasileiro". "O país ainda não vê com naturalidade a união homoafetiva", diz. O ministro do STF, Luiz Fux, classificou o caso, que está sendo revisto, como um "atentado à Corte".
No circo nonsense da política brasileira, opiniões sobre homossexualidade certas vezes são refutadas, quem diria, até pelos próprios congêneres. Caso clássico é o do estilista Clodovil Hernandez (1937-2009) - filiado ao Partido Trabalhista Cristão (PTC) e terceiro deputado mais votado do país - que dizia "não ter orgulho de ser quem era". Contraditório, Clodovil declarava-se francamente contra o casamento e as passeatas gays e também contra o movimento homossexual brasileiro. Mais burlesco ainda é que, em 2007, Bolsonaro e Clodovil "deram-se as mãos" para aprovar o Projeto de Lei 1127/07 (de autoria de Bolsonaro), que criava a Semana Nacional da Saúde Masculina. "Os homens são preconceituosos quando o assunto é saúde íntima", diz o parlamentar. E, hoje em dia, Clodovil Hernandez seria um bom aliado? O deputado acredita que sim: "É uma pena que ele tenha partido tão cedo. Poderia ter contribuído muito na luta contra o 'fundamentalismo homossexual'". Bolsonaro recorda que, seguidamente, os dois se encontravam nas rodinhas de deputados e Clodovil (do qual, afirma, era "quase amigo"), bem-humorado, sempre "brincava" com ele: "Bolsonaro, você não sabe o que está perdendo!"
Após o hors-concours bolsonaro, a Frente Parlamentar pela Igualdade Racial analisará o teor dos tweets do deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP). Professor de teologia, cantor gospel e um dos parlamentares evangélicos mais votados do Brasil, Feliciano causou rebuliço ao publicar mensagens que foram entendidas como racistas e homofóbicas. Ligado à luta da bancada evangélica contra o PLC 122, o parlamentar escreveu que "africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé". Após soltar o verbo, declarou estar "sofrendo perseguição" de inimigos virtuais - "satanistas, homoafetivos e macumbeiros" e atribuiu as acusações de racismo ao "fogo cruzado" contra os evangélicos. Arrependido, mais tarde o deputado voltou atrás e postou: "Eu amo os homossexuais. Respeito os gays como seres humanos". Na avaliação do deputado Luiz Alberto (PT-SP), integrante da Frente da Igualdade Racial, temas como homossexualidade, delimitação de terras quilombolas e defesa da liberdade de culto das religiões africanas sempre estimulam a reação da bancada evangélica. "Acho absurdo que num Estado laico como o Brasil os evangélicos tenham espaço no Congresso para fazer culto religioso e o mesmo direito seja negado às religiões africanas", ele critica. "Há um ambiente de extremismo."
Por outro lado, Paulo Kramer, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), estimula o debate, pondo à mesa o que nomeia de "vício da esquerda brasileira", a qual "é incapaz de considerar opiniões diferentes". "A esquerda fala muito em 'diversidade', mas desde que ela própria dite os termos dessa diversidade", diz. Para Kramer, o caso de Bolsonaro seria o mais emblemático: "Ele tem posição diversa da dela [a esquerda] e, no entanto, não é respeitado".
Todas essas são circunstâncias típicas de um regime democrático, pondera o cientista político Octaciano Nogueira, que diz que, em uma democracia sólida, o mais importante não é a diferença de ideias e, sim, a "sobrevivência da diferença de ideias". "Se não houver contraditório", decreta, "não há democracia."