Sequestrada por partidos conservadores islâmicos, a revolução egípcia ainda tenta se renovar em meio à frustração geral da população com os rumos do governo atual
Às 8 horas de uma noite fria de março, a ponte Kubri Qasr el-nil, que liga o bairro de Zamalek à praça Tahrir, no Cairo, está estranhamente vazia, apesar do horário. O vento congelante do rio Nilo dificulta a travessia. Os carros fazem meia-volta antes de chegar ao final da ponte, desconfiados. O motivo: manifestantes barram o trânsito dos dois lados da via. Ao longe, na rua que acompanha o Nilo ao sul, uma pequena multidão inebriada pelo gás lacrimogêneo entra em confronto com a polícia. O alvo dos ativistas é a Embaixada dos Estados Unidos, poucos metros adiante. Pequenos grupos de homens em círculos discutem o que fazer. As bombas de efeito moral tentam dispersar os combatentes, inutilmente. Um senhor aproveita para fazer negócio: “Compre um chá e ajude a derrubar o Morsi”.
Eis que uma fileira de jovens encapuzados, de preto dos pés à cabeça, com pneus de carro e coquetéis molovot nas mãos, abre espaço em meio à massa sob gritos animados e aplausos. São os anarquistas do Black Bloc egípcio, inspirado no grupo homônimo alemão surgido nos anos 70 e presente nos protestos antiglobalização da virada do milênio. Os blackblockers do Egito são fruto de uma radicalização na postura do movimento revolucionário do país, iniciado de maneira pacífica em 25 de janeiro de 2011 e que derrubou o presidente Hosni Mubarak, no poder havia 30 anos. O objetivo do grupo é manter a revolução viva a qualquer custo. No front de batalha, os anarquistas, ao lado de outros jovens na casa dos 20 anos, não mostram intimidação diante das forças de segurança do atual presidente Mohamed Morsi, devolvendo as bombas de gás lacrimogêneo e revidando com pedras, paus e garrafas incendiárias. “Fora, Morsi! Fora, Estados Unidos!”, bradam.
Tal manifestação ocorre por uma série de motivos. O primeiro, a insatisfação com o governo de Morsi, eleito em junho de 2012 pelo Partido Liberdade e Justiça, braço político da Irmandade Muçulmana (IM), a principal organização islâmica do Egito e do mundo árabe; o segundo: uma lei que Morsi tenta impor e obrigará os egípcios a notificar às autoridades, com 48 horas de antecedência, a intenção de realizar uma manifestação; e o terceiro, a visita do secretário de Estado norte-americano John Kerry, que prometera ao presidente egípcio apoio político e financeiro no processo de reestruturação do país.
“O Morsi é falso e mentiroso. Ele se esqueceu de como chegou ao poder? Por causa das manifestações espontâneas como esta que derrubaram o Mubarak”, falou naquela noite Mohamed Sahin, estudante de medicina, por entre a kefia preta e branca que cobria metade do rosto, os olhos ardendo com o gás lacrimogêneo. “Ele acha que vai conseguir nos parar? Vamos protestar até ele cair. O Morsi não cumpre as palavras, faz o mesmo que o Mubarak. Ele e a Irmandade Muçulmana não merecem estar onde estão.”
As palavras de Sahin simbolizam a frustração do Egito dois anos após o levante popular. A esperança daqueles 18 mágicos dias de inverno que uniu o povo egípcio na luta por liberdade, autonomia, dignidade e um mundo melhor se faz viva apenas nos relatos dos livros que enchem as prateleiras das livrarias. Nas ruas do Cairo, a Primavera Árabe, movimento iniciado após um jovem tunisiano acender a chama da insurreição popular contra um ditador corrupto no final de 2010, virou pó. Na praça Tahir, epicentro da revolta, algumas tendas ainda de pé lembram os ideais e os mártires dos dois anos de luta. O caos da metrópole escancara o histórico descaso das autoridades que levou à revolução.
No período de semanas em que passei no Egito, não encontrei um único cidadão que direcionasse elogios ao presidente Morsi – talvez eu estivesse procurando nos lugares errados. Afinal de contas, a tarefa dele era ingrata: recuperar um Estado praticamente falido, mergulhado nas trevas de 30 anos do regime de Hosni Mubarak (quando os islamitas eram perseguidos politicamente) e traumatizado pelo temor de fracasso da revolução nos 15 meses de governo “provisório” da SCAF (Supreme Council of the Armed Forces), que antecedeu a primeira eleição democrática para presidente da história do país. Contudo, os nove meses de mandato do islâmico Morsi foram marcados por hesitação, obscurantismo e autoritarismo. “Eu aceito as críticas e respeito a oposição”, declarou Morsi em entrevista ao canal CNN. “Todos nós nos preocupamos com a democracia e com a liberdade no Egito e a oposição tem todo o direito de expressar os pontos de vista. Ninguém hoje no Egito vai para a cadeia por causa de uma opinião.”
Morsi é acusado de ser um fantoche da direção da Irmandade Muçulmana e de seguir os mesmos passos do antigo ditador para se perpetuar no poder. Decretos anunciados pela manhã são suspensos à noite. Irmãos muçulmanos são frequentemente vistos cochichando ao ouvido do presidente durante pronunciamentos públicos. Medidas autoritárias, como a restrição às manifestações e uma declaração constitucional que lhe concedeu poderes ilimitados, buscam suprimir a oposição. A nova Constituição, aprovada em um controverso referendo popular em dezembro de 2012, abre brechas para perigosas interpretações baseadas no Islã a despeito das minorias religiosas do país. A violência da polícia e do exército voltou ao nível de antes da revolução. Apenas nos protestos de janeiro deste ano – que comemoravam os dois anos da revolução e pediam, entre outras reivindicações, a saída de Morsi –, mais de 50 egípcios foram mortos. Nas manifestações em Port Said, há poucas semanas, dezenas tiveram o mesmo destino.
Entre janeiro de 2011 e de 2013, muitas coisas mudaram e tantas outras permaneceram iguais no Egito. A economia continua em decadência (e o turismo, tímido), a corrupção se mantém endêmica, ainda há exclusão política e social em vários segmentos da sociedade e o presidente em exercício está alheio à raiva das ruas. Só que desta vez o mandatário egípcio tem a legitimidade de ter sido eleito pelo voto popular em um pleito limpo. As manifestações populares, no entanto, não são reprimidas apenas pelo aparato de segurança do Estado mas também por milícias apoiadoras do governo. Os embates estão muito mais violentos, de ambos os lados – casos de assédio sexual às mulheres têm ocorrido para oprimir as ativistas. E, enquanto Mubarak tentava instrumentalizar o Islã para servir de base para seu governo, a Irmandade Muçulmana se diz a própria representante do Islã e do presidente Morsi, ele próprio um bom muçulmano que reza na mesquita todas as sextas. Essa exploração política da religião – conhecida como “Islã político” ou islamismo – polarizou a sociedade egípcia: de um lado ficaram os islâmicos moderados da Irmandade Muçulmana e os radicais salafitas, representados pelo partido Al-Nour na coalizão; do outro, os seculares, liberais, progressistas e esquerdistas, além das viúvas do antigo regime. O slogan da Primavera Árabe, “Pão, liberdade e justiça social”, tornou-se, nas mãos dos islamitas, “Pão, liberdade e lei islâmica”.
O novo campus de US$ 40 milhões da American University in Cairo (AUC) fica a uma hora do centro da capital, em uma região conhecida como New Cairo — cuja arquitetura lembra a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Nele, jovens de classe média alta frequentam a cursos exclusivamente em inglês. Em um escritório no 4o andar do prédio de ciências políticas, o professor Ashraf El-Sherif explica que este fenômeno da polarização da sociedade entre islamitas e seculares aparece também na nação precursora da Primavera Árabe, a Tunísia, onde o braço local da Irmandade Muçulmana, na pele do partido Ennahda, assumiu o poder por via eleitoral e se tornou foco de contestação popular de modo semelhante ao que ocorreu no Egito.
El-Sherif explica que há dois fatores para o Islã político não ser a alternativa esperada pelos árabes neste período pós-revolucionário: o conservadorismo e o autoritarismo. “O Islã político não é um movimento revolucionário. Eles não podem introduzir as mudanças políticas e socioeconômicas necessárias de modo convincente, pois têm uma agenda essencialmente contrarrevolucionária, conservadora”, diz. “Os islamitas gostam de se dizer reformistas, mas eles estão na prática reproduzindo o antigo regime. Eles não apresentaram nenhuma solução para os problemas sistêmicos que levaram à revolução. As pessoas se sentem frustradas ao perceberem que a justiça social não será alcançada.”
“O segundo motivo”, conclui o professor, “é a democracia. A população e a oposição começaram a suspeitar das intenções autoritárias dos islamitas, uma vez que estão no poder.”
Na economia, o governo Morsi tem assumido as mesmas políticas neoliberais do antecessor e se mantido sob a esfera de influência dos Estados Unidos, da União Europeia e do capital internacional – o presidente quer fechar em breve um empréstimo de US$ 4,8 bilhões do Fundo Monetário Internacional, mas tem encontrado obstáculos. Na política exterior, o Egito manteve laços políticos com Israel nas bases deixadas por Mubarak, dificultando o trânsito de pessoas para a Faixa de Gaza e fechando os túneis entre Gaza e o Sinai, além de se posicionar como mediador entre israelenses e palestinos. “Eu desejo mais força e estabilidade nos laços bilaterais que servem aos melhores interesses das populações do Egito e dos Estados Unidos”, falou Morsi. “Nossas relações são baseadas na reciprocidade, respeito mútuo e interesses comuns. O Egito apoia a reconciliação palestina longe de qualquer interferência.”
O professor também enumera uma série de leis que buscam limitar as relações sociais egípcias na comunicação, na mobilização popular e na constituição de novos partidos. “Todas as leis são autoritárias. O medo da oposição é legítimo”, avalia. Mas e no caso da sharia – a lei islâmica –, que lida com questões da lei secular, como crime, política e economia, e assuntos de cunho pessoal, como sexo, higiene e credo? “A Irmandade Muçulmana mostrou suas verdadeiras cores após a revolução: eles não são tão islâmicos quanto as pessoas pensavam. São mais conservadores e autoritários do que religiosos. O empréstimo do FMI, por exemplo, é religiosamente errado, pois é baseado na usura, em juros – o que é um pecado para o Islã.”
Localizado a duas quadras da Praça Tahir, o Café Riche é há décadas um tradicional reduto de intelectuais e escritores egípcios. Desde a eleição de Morsi, o local tornou-se ponto de encontro para ativistas que compartilham da indignação com o extremismo do regime atual, que julgam ser pior que o de Mubarak, principalmente por causa das milícias. “Eles chegam em ônibus e reprimem violentamente os manifestantes. São conduzidos a defender o regime a qualquer custo e reprimir quem é contra quando for preciso”, relata Ahmad Ghamrawi, um fixer (misto de intérprete, motorista e guia) que auxilia jornalistas estrangeiros. “Eles estão dispostos a matar pelo Morsi. É fascismo. Hitler tinha uma milícia pessoal nos comícios públicos, assim como Mussolini.”
A falta de representatividade política no Egito pós-revolucionário também é comum entre os opositores. “Estamos divididos entre aqueles que apoiam uma ditadura militar e aqueles que apoiam uma ditadura islâmica”, continua Ghamrawi. “A oposição é frouxa. Onde ficamos nisso?” A oposição egípcia sofre com a fragmentação: liberais, sócio-democratas, trotskistas e marxistas não chegam a consensos. “Falta união”, diz Mohamed Gad, jornalista e membro da Aliança Popular Socialista. O principal bloco de oposição ao governo no Legislativo, a Frente de Salvação Nacional, liderado pelo ganhador do Nobel da Paz Mohamed ElBaradei, não consegue fazer um contraponto significativo aos islâmicos.
Os ativistas concordam que a oposição ao regime carece de base popular. “As manifestações populares ocorrem independentemente das posições ou da convocação da oposição”, opina o engenheiro químico Saleh Juniors. Pensando no futuro, os grupos de oposição têm investido na formação de base social, como as uniões estudantis, que serviram de sustentação para o sucesso eleitoral da Irmandade Muçulmana. “Eles acreditam que estão conquistando corações e mentes dos instruídos universitários que representarão a elite no futuro próximo”, avalia o professor El-Sherif. “Investem no futuro, o mesmo que a IM costumava fazer há 30 anos. Eles aprenderam com os rivais.” E enquanto esse futuro não chega, os próximos passos da revolução são uma incógnita para os insatisfeitos.
“Acho que a IM é apenas um passo, não vai durar muito com essa mentalidade neste período pós-revolucionário”, diz Juniors. “Mais pessoas estão entendendo o lado negativo dos partidos conservadores. Não acho que o Morsi ficará para sempre no poder. Eles ficarão por um curto período, a não ser que tomem o mesmo caminho que o Mubarak.”
“Eles já tomaram”, discorda Ahmad. “Vieram aqui para ficar. Isso pode durar anos.”
Juniors contesta: “Pode ser, mas se lembre de que no ano passado ficávamos sentados na sarjeta da Praça Tahir, imaginando a SCAF governando por anos, assim como Mubarak fez. Mas fizemos a SCAF sair.”
“É preciso uma revolução cultural antes de qualquer coisa”, concorda Ahmad.
Hoje, há um novo fenômeno na sociedade egípcia que pode trazer esperança: a população já consegue distinguir o Islã político da religião. Após anos vista como a esperança de solução, a Irmandade Muçulmana está nua perante os olhos do povo. “O que sobrou da revolução está nas pessoas. A nova geração não tem medo. Eles estão cada vez mais radicais, vão às ruas sem medo de lutar. Agora, já é possível criticar o governo sem pensar na religião”, opina Juniors. “Com o passar do tempo, as pessoas vão ficando mais cientes do que está acontecendo e as demandas surgem naturalmente de dentro da sociedade. Isso pode levar um tempo. A solução para a democracia é mais democracia.”