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O Maior Problema de Todos

A corrupção faz parte da rotina da sociedade brasileira há mais de 500 anos. Será que um dia o país se permitirá extrair esse mal de suas entranhas?

Cristiano Bastos Publicado em 18/10/2011, às 16h35 - Atualizado em 25/11/2011, às 12h33

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Ilustração - Lézio Júnior
Ilustração - Lézio Júnior

“Se há reis ladrões, é questão muito arriscada. Certo é que os há e que não furtam ninharias. Quando empolgam, são como as águias reais, que só em coisas vivas e grandes fazem presa.”

Atribuída ao jesuíta Manuel da Costa (1601-1667), a obra A Arte de Furtar, de 1652, foi oferecida ao rei D. João IV e a D. Teodósio, o príncipe do Brasil. Seus manuscritos, como sugere o título, não ensinam a roubar. Denunciam, todavia, que a malversação de dinheiro público era prática comum no Brasil Colônia – a corrupção veio a bordo das caravelas e ancorou-se na história do país desde o Descobrimento. Em 1516, empossado capitão da Costa Brasileira, o lusitano Pero Capico foi enviado pela coroa portuguesa à novíssima terra com a missão de evitar desvio de direitos reais sobre o comércio de açúcar, pau-brasil e escravos. A passagem é emblemática. Capico desembarcou pobre no Brasil e, dez anos depois, voltou rico a Portugal. Com muita ironia, o padre Antônio Vieira (1608-1697) também escreveu sobre os governantes coloniais: “Eles [as autoridades] chegam pobres nas Índias ricas e voltam ricos das Índias pobres”.

Passaram mais de 500 anos de história, mas o quadro ainda é, praticamente, o daqueles tempos. Se não piorado. A despeito da estabilidade econômica e dos inegáveis avanços sociais conquistados pelo Brasil, a corrupção continua reinando firme no “país do caixa 2”. Em pouco mais de nove meses de mandato, a presidente Dilma Rousseff teve de nadar contra a corrente de indesejáveis crises políticas, em virtude de sucessivos escândalos motivados por denúncias de corrupção. Nessa gestação inicial, cinco ministros “bailaram”. Último a entrar na dança, Pedro Novais (PMDB-MA), do Turismo, foi derrubado na chamada “Operação Voucher” deflagrada pela Polícia Federal (que prendeu mais de 30 pessoas acusadas de desviar R$ 3 milhões, dentre elas o secretário-executivo do Ministério, Frederico Silva da Costa). Novais sucumbiu após denúncias, entre outras, de que pagava empregados domésticos com dinheiro do Congresso Nacional. Sua bancarrota moral, porém, foram os R$ 2.156 que pediu de reembolso à Câmara dos Deputados para pagar a conta de um motel usufruído por ele em São Luís (MA).

Caíram antes dele os ministros Wagner Rossi (PMDB-SP, da Agricultura), Antonio Palocci (PT-SP, Casa Civil), Alfredo Nascimento (PR-AM, Transportes) e Nelson Jobim (PMDB-RS, Defesa). Importante observar que três deles pertencem ao principal partido da base aliada do governo, o PMDB. O único que não tombou pelos mesmos motivos foi Jobim, o qual, literalmente, “morreu pela boca” após “declarações polêmicas”. A respeito do vendaval de escândalos que varreu a paz do primeiro ano de seu mandato, Dilma declarou que o real desafio de seu governo consiste em defender os interesses brasileiros – muito mais do que “solucionar as crises da Esplanada”. “Meu maior objetivo é desenvolver o país e distribuir renda. O resto eu faço por ‘ossos do ofício’. Prioridade são as condições de vida do povo. Faxina é contra miséria”, declarou a presidente.

Ossos do ofício à parte, o custo médio da corrupção no Brasil é altíssimo. Tão elevado que daria para resolver o problema da miséria de uma vez por todas. Segundo estudo realizado em 2010 pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), financeiramente, esse “preço” é estimado entre 1,38% e 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Ou seja, de R$ 50,8 bilhões a R$ 84,5 bilhões. Com os R$ 50,8 bilhões (estimados em um cenário realista) se poderia, por exemplo, aumentar em 138,1% os quilômetros de rodovias brasileiras – as quais passariam, de acordo com a meta estabelecida no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de 45 mil para 107,9 mil quilômetros. O número de aeroportos, por sua vez, se elevaria de 20 para 327 unidades. Entretanto, a corrupção não é uma exclusividade brasileira. O Banco Mundial estima que US$ 1 trilhão seja tragado todos os anos pelos corruptos em escala planetária. Correspondente a 1,6% do PIB mundial em 2010 (US$ 63 trilhões), o valor supera em 43% o gasto dos Estados Unidos com armamentos (US$ 698 bilhões). Paradoxalmente à guerra, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que US$ 30 bilhões por ano são suficientes para acabar com a fome de quase 1 bilhão de pessoas ao redor do globo terrestre. Assim, uma “faxina mundial” em favor da moralidade poderia sumir com a miséria da face da Terra. A berrante diferença entre corrupção no Brasil e nos países mais sérios, contudo, é uma já velha e bastante conhecida: a impunidade.

Os custos da corrupção no Brasil são muito maiores do que, meramente, o do dinheiro roubado em si. São perdas humanas, produtivas, sociais. Um importante levantamento feito entre 2002 e 2008 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que a corrupção subtraiu cerca de R$ 40 bilhões da vida dos brasileiros. Pelas contas, o país perdeu R$ 6 bilhões por ano nesse período. O valor é equivalente ao PIB da Bolívia. Durante seis meses, o economista Marcos Fernandes, que coordena o Centro de Estudos dos Processos de Decisão na FGV, cuja pesquisa é sobre os custos econômicos e políticos da corrupção, reuniu dados de investigações realizadas pela Controladoria-Geral da União (CGU), Polícia Federal (PF) e Tribunal de Contas da União (TCU). De acordo com o economista, o valor que se perde por deixar de se investir dinheiro público roubado – em termos de investimentos não realizados em infraestrutura, saúde pública e desenvolvimento – extrapola a cifra estimada. Considerando-se, por exemplo, os atuais números do programa Bolsa Família, o uso eficaz de recursos desviados poderia assistir mais 23% de famílias ou aumentar o benefício em pelo menos 13%.

O estudo também concluiu que os mesmos R$ 40 bilhões ajudariam a diminuir – de 43% para 22% – o percentual de pessoas que ainda não são contempladas com saneamento básico no país. O efeito dessa melhoria seria um significativo impacto sobre a qualidade de vida medida pelo Índice de Expectativa de Vida Saudável (Healthy Life Expectancy), indicador criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A corrupção, explica o economista, atinge, principalmente, políticas públicas cujo objetivo são melhorar a qualidade de vida da sociedade para as futuras gerações. “A corrupção oblitera a possibilidade que milhares de pessoas têm de serem felizes. Quando não se dá educação e saúde adequadas porque há roubo, se está privando o bem-estar de toda a população”, explica. “É um tiro no pé do próprio governo, que dá com uma mão e retira, de forma velada e sub-reptícia, com a outra.”

No jogo sujo da corrupção, economia e eleições caminham de mãos dadas, enamoradas. Há evidências práticas de que certas regras eleitorais, no entanto, contribuem para reforçar a fiscalização do comportamento político. Ao redor do mundo, pesquisas mostram que a aproximação do eleito em relação ao eleitor tende a minimizar atos corruptos. Isso ocorre, especialmente, no sistema eleitoral baseado no voto distrital puro (em que cada estado é dividido em distritos com número fixo de eleitores: os partidos apresentam o candidato por distrito e quem receber mais votos fica com a vaga) ou no sistema de voto distrital misto ou proporcional (o qual prevê que metade dos candidatos seja eleita pelo voto majoritário e a outra metade pelo proporcional). A lógica é que, estando mais próximo dos seus eleitos, a tendência é que o eleitor venha, por meio do voto, a punir políticos implicados em escândalos. O voto proporcional, de acordo com o economista Fernandes, serve apenas para sustentar o mercado de “partidos picaretas”. “Criar partido é um grande negócio. É como Igreja, não paga imposto e, mais fácil ainda, nem precisa vencer eleição. Para o partidinho de quinta categoria é mais do que negócio, é um modo de vida.”

Com a intenção de apurar os recentes escândalos no governo federal, políticos de oposição estão movimentando forças para a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). Encabeçada por deputados e senadores, o movimento foi iniciado por parlamentares do PSDB, DEM, PSOL e PPS. Cinco deputados do PMDB também assinaram o requerimento de abertura da investigação. O deputado Eduardo Cunha (RJ), vice-líder do partido na Câmara, minimizou a adesão dos dissidentes: “São apenas cinco”, justificou. Caso aprovada, a comissão se destinará a investigar desvios de recursos públicos, sobretudo nos ministérios dos Transportes, Agricultura e Turismo, envolvidos em denúncias de pagamento de propina e contratos com empresas de fachada. Para ser instalada, a CPI precisa do apoio de 171 deputados e 27 senadores. Caso aprovada, o grupo, que será constituído por 17 senadores e 17 deputados, terá 180 dias de trabalho, prorrogáveis por mais 90, para o cumprimento do inquérito.

Segundo o senador Álvaro Dias (PSDB), que considera a limpeza promovida pela presidente “puramente seletiva” e a reboque da imprensa, a expectativa é transformar a CPI em uma “fotografia do Parlamento”. “Destaco sempre que, se tivéssemos índices de corrupção semelhantes aos da Dinamarca, nossa renda per capita seria 70% maior. São justificativas inquestionáveis que recomendam como prioridade o combate implacável à corrupção e à impunidade que a alimenta”, ele diz. O citado, como caso de impunidade, a lentidão do caso do mensalão do PT, que já ultrapassa cinco anos sem solução. O Senador afirma que a prática do mensalão, aliás, continua a existir. Exemplo disso seria o escândalo do Ministério dos Transportes, envolvido em superfaturamento de obras e pagamento de propina. “Discursos em plenário não bastam, é preciso ação”, exige. Para o deputado Duarte Nogueira, líder do PSDB na Câmara, as denúncias revelaram que há vários focos de corrupção no governo. “Estamos no nono mês de mandato, cinco ministros deixaram os cargos, quatro deles por suspeita de irregularidades. Isso é ruim para o país porque o Executivo está paralisado, usando toda a energia para conter as crises políticas. É preciso estancar a crise e isso se faz investigando de forma profunda.”

Cândido Vacarezza, líder do PT na Câmara, coloca-se radicalmente contra a corrupção, porém, no caso da instalação de uma CPI, diz que antes deve haver “investigação, direito de defesa para os acusados e julgamento e punição para os culpados”. O governo Dilma, segundo ele, não tem dado trégua para nenhuma atividade ilícita. “O que veio à tona do nosso governo foi levantado pelo próprio governo. Não foi suscitado por nenhuma CPI”, diz. Todos os ministros ou funcionários públicos que tiveram acusações, Vacarezza completa, foram levados a depor na Câmara. “Infelizmente, a oposição não tem colaborado. Nenhuma inquirição que fez até agora é consistente. Se o cidadão diz que sabe e não fala, ele é leniente. Mas se fica só criando fato, sem saber, está sendo irresponsável. Para se ter uma CPI é preciso existir um fato determinado e o número de assinaturas suficiente, não é uma discussão genérica.”

Governista, o senador Pedro Simon (PMDB-RS), um dos criadores da Frente Parlamentar contra a Corrupção e pela Governabilidade, defende que é preciso dar um “voto de confiança” à Dilma Rousseff. “Se quiserem fazer CPI, podem fazer. Só penso que nosso trabalho deve ter outro objetivo, considerando que a presidenta está tomando providências, como mostrou ao demitir pessoas que foram acusadas.” Simon diz que Dilma vem sofrendo pressões em razão das providências por ela adotadas no combate à corrupção. Nos bastidores, foi, inclusive, de acordo com Simon, cogitado o afastamento da presidente. “Os próprios partidos do governo, PT e PMDB, a pressionaram para que não fizesse essa caminhada na direção de ‘moralizar a coisa’. Esse movimento que iniciei com a frente é, justamente, para lhe dar força. Dilma mostrou que teve coragem de por na rua”, elogia. Simon, para o qual apoio não significa anulação de oposição, recusou-se a assinar o requerimento da CPI. Ele admite, no entanto, a gravidade da situação: “O Brasil nunca chegou tão baixo. O país vai bem, mas as instituições, eticamente, não vão”. O senador acredita, contudo, que há momento certo para tudo. “Houve para a estabilidade, para o combate à miséria e, agora, chegou a vez de acabar com a corrupção.”

Voto secreto, um dia comentou o ex-presidente Tancredo Neves, “dá uma vontade danada de trair”. Com irretocável perfeição, a frase ilustra bem o que foi a absolvição da deputada federal Jaqueline Roriz (PMN-DF), a qual em agosto livrou-se da acusação de quebra de decoro parlamentar – ainda que tenha sido fl agrada em um vídeo comprometedor, divulgado em março, recebendo dinheiro de Durval Barbosa, delator do chamado “mensalão do DEM” no Distrito Federal. Os deputados que defenderam a cassação alegaram que o voto secreto foi o principal fator que levou a deputada à anistia. Há anos, o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) apresentou um requerimento no qual cobra a inclusão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 349/2001, que institui o voto aberto no Legislativo. A iniciativa já conta com adesão de 191 deputados e foi apelidada de “Lei Jaqueline”. Votada em primeiro turno na Câmara, em 2006, desde então a PEC enfrenta resistência para ser aprovada em segundo turno. “O voto secreto é uma vergonha neste Parlamento”, brada Valente, que diz que o caso Jaqueline Roriz é um emblemático modelo de impunidade. “Há provas robustas e muito contundentes e, assim mesmo, ela [Jaqueline] foi absolvida. Em nome da transparência e da ética, os deputados têm obrigação de expor seu voto e assumi-lo publicamente, e não se esconderem atrás das cortinas do voto secreto.”

A meta agora é pressionar o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), para incluir a PEC na ordem do dia. Cândido Vacarezza é explicitamente contra o voto aberto, o qual ele compara a “práticas totalitaristas”. “O voto aberto existia na ditadura no Brasil, no regime de Hitler, na Rússia de Stalin. Nos Estados Unidos, que é a mais antiga democracia, existe até sessão secreta”, compara o líder do PT. Para Vacarezza, o voto aberto “desbalança o voto de consciência”. “Como se vota, por exemplo, o veto de um presidente abertamente? A experiência do voto aberto, que parece ter um ‘jeito democrático’, é experiência própria das ditaduras e do ‘poder do rei’. O voto secreto, sim, é o voto da democracia, que a pessoa usa conforme sua consciência e não por pressão dos mais poderosos. Se a pressão fosse igual na sociedade, se todos tivessem o mesmo peso, o certo seria o voto aberto.” Já o senador Paulo Paim (PT-RS) roga, pelo contrário, que o Legislativo acabe com o voto secreto. Segundo ele, a luta contra a corrupção começa mostrando à população como se posicionam os deputados e senadores em suas votações. “Se não temos o que temer, não há motivo para não expressar no painel, de forma transparente, nossas posições”, diz.

Para o cientista político Ricardo Caldas, que dirige na Universidade de Brasília o Núcleo de Estudos da Corrupção, muitos candidatos a cargos políticos estão completamente comprometidos antes mesmo das eleições. Tudo já começa com o oneroso financiamento de campanha, quando “começam os esquemas”, diz. “Ele [o político] vai cumprir seu mandato não muito preocupado com realizações, mas em como viabilizará sua reeleição.” Quanto à limpeza bancada por Dilma no alto escalão do governo, Caldas pondera que, caso aprofunde tal postura – por mais positiva que seja –, a presidente corre riscos de perder importante parte da base de sustentação de seu governo no Congresso Nacional. A razão seriam os partidos da própria base aliada, os quais estão escancaradamente ligados aos últimos escândalos. “Se ela travar um combate muito rigoroso contra essas forças, estará combatendo seus próprios aliados, o que, em linguagem militar, é o chamado ‘fogo amigo’. E quem vai para a fogueira, na verdade, é sua sustentação política no Congresso”, diz Caldas. A absolvição de Jaqueline Roriz, ele interpreta, foi um recado claro de que Dilma pode estar mandando no Executivo, mas de que no Legislativo ela não apita. “Os políticos são inimigos em vários assuntos, mas se unem na hora de serem cassados. Existe entre eles o consenso de que, ao menos no Congresso, a corrupção não deve ser combatida.”

Embora o Brasil seja o país que, ao lado dos Estados Unidos, preside a parceria internacional Governo Aberto – lançada em setembro, comprometida com a “transparência total das contas públicas” –, a batalha contra a corrupção no Brasil atualmente se encontra em plano secundário. A crítica é feita pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF). De acordo com a entidade, entre os 11 macrodesafios traçados no Plano Plurianual (2012-2015), o combate ao desvio de recursos públicos não passa de um vago apêndice, sendo citado de passagem em três referências relacionadas à “Segurança Pública com Cidadania” e “Democracia e Aperfeiçoamento da Gestão Pública”. Nas palavras de Bolivar Steinmetz, presidente em exercício da ADPF, a atuação da Polícia Federal não é percebida com a devida importância no enfrentamento à corrupção. O Plano Plurianual destaca as ações da PF apenas no âmbito da Política Nacional de Defesa e, quase exclusivamente, no combate ao tráfico de drogas, armas e pessoas, sobretudo, nas fronteiras. “Para a Polícia Federal, a guerra aos traficantes é imprescindível. Mas, também merecedoras de atenção, são as ações contra corruptos e corruptores. Nossas operações têm revelado que a concentração das fraudes e dos desvios de recursos públicos está nas áreas de saúde, educação e infraestrutura”, expõe Bolivar.

No entendimento do frade dominicano e escritor Frei Betto, um dos fundadores do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a corrupção é um pecado religioso e um crime do ponto de vista legal. “É roubar, na verdade, o dinheiro que pertence ao povo”, ele afirma, valorizando o trabalho que Dilma Rousseff vem desempenhando – “Nota dez”, diz. Betto reforça que é preciso aprofundar a faxina institucionalmente, uma vez que não se pode esperar, de qualquer pessoa, um comportamento ético exemplar. São as instituições que precisariam se tornar capazes de coibir a tentação de corromper ou ser corrompido. “Eu não acredito em ética na política. Acredito é na ética ‘da política’. Temos de criar uma institucionalidade na qual o indivíduo tentado a corromper ou ser corrompido iniba-se devido às sanções que ocorrerão, caso transgrida. Definitivamente, não é o que acontece no Brasil”, completa. Um dos efeitos da indignação popular, demonstrada em mobilizações contra a corrupção ocorridas em várias cidades brasileiras, no dia 7 de setembro, pode ser a renovação do debate a respeito de uma série de propostas que permanecem adormecidas no Congresso – dentre as quais, além do voto aberto e do financiamento público de campanha, a tão esperada reforma política.

Apesar de pessimista em relação ao atual Congresso, onde “raros deputados inspiram confiança”, Frei Betto olha a reforma política como uma poderosa arma para se lutar contra a impunidade. “A maioria dos congressistas negocia sua estabilidade no poder em troca de maracutaias. Seria necessário, portanto, convocar um congresso específico para realizar a reforma política”, ele afirma. No entanto, Betto deposita esperanças nas mobilizações populares não partidárias que despontaram após os recentes escândalos. “Creio ser [a mobilização] um caminho para que a sociedade venha a pressionar o governo a criar mecanismos institucionais de inibição e punição.” Embora concorridas, as marchas anticorrupção estão longe de serem fenômenos de engajamento, vide as marchas gays ou “da família”, que levaram de 3 a 4 milhões de pessoas às ruas. Em Brasília, no Dia da Independência, o principal protesto tirou 40 mil pessoas de casa. Ainda temos muito a marchar.

Em tramitação no senado federal e na Câmara dos Deputados, algumas propostas defendem o caráter punitivo que deve ser aplicado aos corruptos. Uma delas é o Projeto de Lei do Senado (PLS 204/11), de autoria do senador Pedro Taques (PDT-MT), que inclui a corrupção na Lei de Crimes Hediondos (atualmente, entende-se por hediondo crimes como sequestro, latrocínio, estupro e genocídio). O PL propõe que, no caso de crime de corrupção, a pena mínima passe de dois para quatro anos. A aceitação pública, por sinal, foi ótima. Em enquete promovida pela Agência Senado e pelo Data Senado, em agosto, 99,4% dos votos, num universo de 426.618, foram favoráveis à proposta do pedetista. “A sociedade brasileira chegou ao limite de sua paciência. A corrupção no Brasil mata, literalmente, não metaforicamente. Ela mata nas estradas que temos hoje, de péssima qualidade, e nas portas dos hospitais. A corrupção rouba o futuro das crianças por causa da péssima qualidade da educação”, diz Taques. Outro ponto que precisaria ser repensado é o benefício da imunidade parlamentar. “A impunidade que se permite por causa da imunidade faz com que tenhamos uma grande sensação de insegurança. Precisamos de mudanças urgentes no código penal.”

Na concepção de Cláudio Weber Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, um dos motes cruciais para o combate à corrupção seria a drástica diminuição dos cargos de confiança no poder público. “Só o presidente da República pode nomear 20 mil cargos, diferentemente dos Estados Unidos, que tem 100 milhões de habitantes a mais e o presidente só pode dispor de 5 mil cargos de confiança. Na França, são apenas 400 cargos”, compara Abramo. Explicitamente, a Constituição brasileira permite que indivíduos situados altamente na hierarquia dos três poderes (em particular no Executivo, que tem mais dinheiro) nomeiem pessoas para ocupar tais postos. É, na realidade, um grande jogo de interesses e “loteamentos”.

“O que fazem o presidente, o governador, os prefeitos? Eles chamam certa quantidade de partidos e dizem: ‘Me apoiem, não me fiscalizem, aprovem o que eu quiser e, em troca, fiquem com esses lotes da administração. Não são cargos para satisfazer as necessidades da comunidade, mas para satisfazer as necessidades dos partidos e dos políticos. É uma usina de corrupção”, prossegue Abramo, que afirma que a transação de cargos de confiança destrói a eficiência da máquina pública. No quesito “precaução”, outro fator a se considerar seria a extinção das chamadas “emendas parlamentares individuais”, tidas como favorecedoras fontes de ladroagem. Segundo o senador Taques, após a promulgação da Constituição de 1988, todos os grandes escândalos estão relacionados a emendas parlamentares individuais, dentre os quais, “anões do orçamento, sanguessugas, mensaleiros e as grandes operações da PF”, enumera.

Nascida da mais legítima iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, que juntou mais de 1,6 milhão de assinaturas em favor da moralização dos costumes políticos no Brasil, enfrenta sério risco de não mais valer nas eleições municipais de 2012, tampouco nas posteriores. Criada com a finalidade de impedir que candidatos condenados pela Justiça concorram à eleições públicas e transformada na Lei Complementar nº 135, a medida foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010. Reconhecida internacionalmente, foi escolhida pela ONU como “a mais importante iniciativa de combate à corrupção”. Em sua última passagem pelo Brasil, Bono, vocalista do U2 e presidente da One Foundation, afirmou que a Ficha Limpa é “um processo que inspira até ele próprio”. Contudo, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não estão tão “inspirados” quanto à permanência da norma – invalidada pelo próprio Supremo nas eleições de 2010 –, cuja constitucionalidade será decidida neste mês de outubro.

Com a aposentadoria da ministra Ellen Gracie, que é pessoalmente favorável à lei, a Ficha Limpa poderá vir a perder um precioso voto. O juiz de direito Marlón Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), lembra que a Ficha Limpa é uma conquista democrática que, para ser aprovada, seguiu os caminhos previstos na Constituição – a qual, ele sublinha, dá poder ao povo para apresentar projetos de lei de iniciativa popular. O atual esforço do movimento é para reunir assinaturas em um documento que será entregue à presidência, exigindo que a Lei da Ficha Limpa seja levada em consideração em todas as decisões governamentais – inclusive na escolha do próximo ministro do Supremo. “Tem uma vaga em aberto no STF e a pessoa que será nomeada terá, muito provavelmente, voto decisivo para a consagração da Ficha Limpa. É essencial que Dilma escolha alguém que tenha foco compromissado no combate à corrupção”, diz Reis. “Há grande número de políticos condenados criminalmente, poderosos e influentes, de olho nas eleições municipais de 2012. A manutenção da Ficha Limpa, que tem poder para detê-los, é um desafio à sociedade brasileira.”

Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), define a corrupção como “o verdadeiro inimigo republicano”. Na Roma antiga, ele observa, foi ela que matou a República – o “governo para o bem comum” –, que, no Brasil, vigora desde 15 de novembro de 1889. Ribeiro classifica a corrupção atual de “pós-moderna”, aquela ocorrida na troca de favores, de cargos, favorecimentos e negociações internas: “É a noção de que ‘um favor paga outro’”, explica. Quando se opta pelo regime republicano, sublinha o filósofo, existe a fundamental obrigação da honestidade – não só dos políticos, mas de toda a sociedade. Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão, simplifica demais as coisas. É sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. Ao desviar dinheiro público, o corrupto não apenas furta: ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior dos bens públicos. “A confiança é um elo social”, ele diz, “e sem elo social não há vida republicana”.