Gustavo Krieger e Olimpio Cruz Neto Publicado em 16/08/2007, às 12h37 - Atualizado em 02/09/2007, às 22h31
São dez da manhã de uma quinta-feira e a reportagem da Rolling Stone está diante do ministro da Cultura, Gilberto Gil. Bom, não exatamente diante. Estamos na frente de um telefone sem fio, ligado no viva-voz. Não houve jeito de marcar uma conversa pessoal. É que os repórteres estão em Brasília e o ministro não costuma passar muito tempo na cidade. Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2003, fez viagens oficiais a 29 países. Só na França esteve 13 vezes. A assiduidade era tanta que os críticos do governo apelidaram o "Ano do Brasil na França" de "Ano do Bragil". E ainda deu tempo para ir seis vezes à Suíça e Espanha, cinco vezes à Alemanha, quatro a Portugal e à Inglaterra& Mas não se cometa a injustiça de achar que Gil anda apenas por terras do Velho Mundo. O roteiro de milhagem do ministro é democrático. Inclui Paraguai, Haiti, Tunísia, Guiné... No Senegal, esteve três vezes. Quando está no Brasil, prefere despachar no Palácio Gustavo Capanema, um prédio histórico no centro do Rio de Janeiro, projetado por Oscar Niemeyer e decorado com painéis de azulejo pintados por Portinari. É lá que estava quando conversamos. E logo fica claro quem está do outro lado da linha, a voz tranqüila e um tanto metalizada pela ligação telefônica.
"Ministro, por que tantas viagens?"
"A não localidade é uma das características da vida contemporânea. Tudo está em todos os lugares. A exigência presencial diminui em certo sentido, porque os meios eletrônicos, as comunicações, o colocam em todo lugar. Por outro lado, você tem de ir cada vez mais aos lugares para complementar essa presença virtual com sua indispensável presença pessoal."
Entendeu? Talvez não, mas não dá para negar que é puro Gilberto Gil. Afinal, esse é o mesmo ministro que escreveu na letra de "Esotérico": "Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais. Mistério sempre há de pintar por aí&"
Não dá para avaliar a passagem de Gilberto Gil pelo Ministério da Cultura sem lembrar disso. Mesmo de terno e gravata, carro oficial e chamado de "senhor ministro", ele continua sendo o personagem Gil. Poético, hiperbólico, às vezes confuso. "Uma das melhores coisas de conviver com o Gil é que ele faz uma das melhores imitações do Gil que eu já vi", brinca um dos sisudos colegas de Esplanada dos Ministérios. Outro deles conta que foi chamado a participar de um debate ao vivo com ele na televisão. "Tive de me segurar para não rir, porque era igualzinho àquele personagem do Chico Anísio que imitava o Gil." Como dizia o personagem do Chico, "Gil é assim. Ou não".
É o próprio ministro quem diz: "Sempre há pelo menos dois jeitos de julgar cada coisa. Nada tem um lado só". Muito menos sua passagem pelo ministério. Gil virou as políticas públicas do avesso, afrontou privilégios, apanhou muito, acumulou polêmicas e algumas denúncias. Quatro anos depois, cita números de sua gestão com a desenvoltura de um Lula em debate na televisão.
Foi uma gestão polêmica, a começar pelas viagens. Gil foi chamado ao governo um pouco como ministro e muito como mito. O papel simbólico cresceu muito nestes quatro anos. Para um governo que tinha como símbolos José Dirceu e Antônio Palocci, duas figuras que mal conseguem andar nas ruas hoje, é um luxo ter um ministro que as pessoas pagam ingresso para ver. Aqui e lá fora. Ele produziu algumas das melhores imagens do governo Lula no exterior.
Em setembro de 2003, Gil foi a atração de um show promovido pela ONU em homenagem aos diplomatas mortos em um atentado em Bagdá. Entre eles o brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Pôs dois mil convidados da ONU para dançar. No final, chamou o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, para uma "canja" na percussão. A imagem do show correu o mundo. A assessoria do ministério exultou. Classificou o evento como "um do-in antropológico em escala mundial". Como se vê, Gil faz escola.
"Gil é mais conhecido aqui que o presidente Lula", conta um diplomata brasileiro com escritório em Paris. Se Lula fez 58 milhões de votos no Brasil, Gil tem álbuns à venda em lojas de várias capitais européias. Quando ele visitou a sede da Unesco, na França, funcionários e diplomatas deixaram as salas para vê-lo. "Só vi coisa parecida quando o Michael Schumacher esteve lá", relata uma testemunha.
"Viajei muito, conheci muitas coisas em muitos países, muitos processos variados, discuti com autoridades de governo, ministros de Estado... Tudo isso tem uma importância muito grande para a minha vida pessoal", reconhece Gil. Mas ele afirma que as viagens têm um saldo mais profundo. "Fizemos uma verdadeira diplomacia cultural", diz o relatório de avaliação do ministério. Entre os saldos, contabiliza "uma decisiva intervenção na Convenção de Diversidade Cultural da Unesco". Também conseguiu a promoção do samba-de-roda do Recôncavo baiano a "Patrimônio Cultural da Humanidade". O fato é que Gil tem portas abertas na Unesco e consegue alavancar projetos e recursos com mais facilidade que ministros de outros países, menos famosos e sem tanto balanço.
É difícil estabelecer um equilíbrio entre essas conquistas e o custo das empreitadas no Brasil no exterior. Não se fala aqui nos R$ 150 mil recebidos pelo ministro a título de diárias internacionais, e sim do custo dos eventos. As duas principais iniciativas internacionais do ministério foram o Ano do Brasil na França e a Copa da Cultura, promovida às vésperas da estréia do Brasil na Copa do Mundo da Alemanha. Juntos, custaram R$ 73 milhões. Ajudaram, claro, na divulgação da imagem do Brasil e da cultura brasileira no exterior. Mas com tanto dinheiro para investir, haveria outras alternativas, talvez menos grandiosas e mais eficientes.
Com tanta visibilidade, Gil já foi acusado de usar o ministério para alavancar sua carreira. Em junho, a revista Veja publicou uma reportagem na qual ele era classificado como "ministro em causa própria". A primeira linha dizia que "a gestão de Gil é fraca, mas alavancou sua carreira". A seguir, vinha a paulada: "A chegada de Gil ao Ministério da Cultura, em 2003, reanimou uma carreira que andava estagnada. Lá se vão dez anos desde que ele lançou seu último álbum inédito, Quanta. Para se manter à tona no período, Gil gravou discos de baião e um de versões de reggae de Bob Marley. Para um artista que sempre viveu mais da imagem que das grandes vendagens, a convocação de Lula abriu uma nova janela de oportunidades. Gil ganhou visibilidade - e reverte isso em lucros. Seu cachê quase triplicou: passou de R$ 70 mil para R$ 200 mil." Esse é um raro assunto capaz de tirar o ministro Gilberto Gil de sua postura zen.
"Primeiro: o meu cachê não é uma imposição minha. Não é decreto. Meu cachê é uma negociação que se faz, é um jogo de mercado. O que tem a ver o ministério com isso? Eu aumentei o meu cachê porque diminuí em 80% a minha atividade artística. É natural que eu tente compensar um pouco", explica. "É uma coisa completamente calhorda esse tipo de associação. A não ser que houvesse realmente uso da dimensão ministerial para efetivamente me beneficiar. Não tem nada a ver com isso. Meu cachê não tem nada de absurdo. Eles falam sem nenhuma base concreta ou real. Apenas eu tento obter um pouco mais nos shows que faço hoje, porque faço absolutamente muito menos shows."
Afinal, de quanto é o cachê. Gil não conta. Diz que depende da negociação. E volta a ficar irritado quando perguntamos se a visibilidade como ministro não ajudou mesmo sua carreira. "Que história! Visibilidade... Visibilidade é riqueza imaterial. E daí? Isso aí eu já tenho. E a visibilidade maior que veio para o ministério a partir de uma visibilidade do ministro? Contabilizam isso? Isso é importante? Por que o ministro é que aumenta a visibilidade por ser ministro? E o contrário, não?"
Melhor mudar de assunto. Gil se orgulha de ter promovido uma mudança na forma do governo encarar a cultura. Aposta em dois eixos quase opostos. De um lado, a promoção da diversidade cultural. De outro, o tratamento da cultura como uma indústria, que gera dinheiro e empregos.
Na área de diversidade e identidade cultural, o ministro tem o que mostrar. A começar pela reativação da Funarte, uma autarquia que estava praticamente abandonada. Com Gil, voltou a respirar. Investiu R$ 3 milhões na área de circo nos dois últimos anos, criou a Caravana de Circulação de Espetáculos, que levou companhias de teatro e dança para mais de 500 cidades. Trouxe de volta à cena o projeto Pixinguinha, entre outros.
Tudo isso custa dinheiro e dinheiro, ao contrário do que se possa imaginar, é mercadoria rara no governo. Especialmente no período em que Antônio Palocci era ministro da Fazenda e controlava com mão de ferro as chaves do cofre do tesouro nacional. "Nossas discussões dentro do governo por causa de dinheiro foram duras", conta Gil. "No governo, convencer o Planejamento, convencer a Fazenda, convencer, enfim, as áreas decisórias de que há necessidade de investir mais em cultura, de que há necessidade de qualificar o projeto institucional-cultural do país é uma dificuldade", admite o ministro. "Cultura sempre foi a coisa do vaso ornamental, o vaso de flores... Aquilo de investir um pouco ali nas belas-artes e nada mais do que isso. Convencer o governo de que tem de ir adiante, tem de ir além dessa conceituação e prestigiar a instituição cultural é muito mais difícil. A nossa luta com o Ministério do Planejamento é muito maior do que parece ser."
"Em todas as reuniões de que eu participei com ele, Gil sempre se mostrou muito articulado e sempre pediu mais dinheiro", confirma o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. De tanto pedir, levou.
Na campanha eleitoral de 2002, Lula prometia que a Cultura teria direito a 1% do orçamento geral do governo brasileiro. Parece pouco, e é. Mesmo assim, a promessa não foi cumprida. Gil comemora o fato de ter conseguido elevar a fatia da Cultura no orçamento para 0,6% . Pouco mais da metade do esperado.
Em 2003, quando assumiu a pasta, encontrou um orçamento de R$ 307 milhões. Emparedado pela equipe econômica, conseguiu gastar pouco mais de 60% disso. Em 2005, este orçamento subiu para R$ 467 milhões, segundo dados da ONG Contas Abertas, especializada no controle dos gastos públicos. Desse dinheiro, boa parte é gasta para sustentar a burocracia do ministério. Sobra pouco para investimentos. Em 2003, foram R$ 18 milhões. Em 2004 a conta subiu para R$ 27 milhões e em 2005, para R$ 66 milhões. "O dinheiro ainda é muito pouco", reconhece o ministro.
Maior, mais disponível e mais cobiçado é o volume de dinheiro garantido pelos patrocínios da Lei Rouanet, aquela na qual as empresas financiam eventos culturais em troca de abatimento no imposto. No ano passado, foram quase R$ 700 milhões. Dessa dinheirama, nada menos que R$ 254 milhões vieram de empresas estatais. E aí está a grande encrenca armada por Gil como ministro.
Até o governo Lula, cada estatal definia como gastar sua verba para projetos culturais. Eram vários balcões, cada um com sua lógica e preferências próprias. Gil centralizou as verbas e obrigou as estatais a obedecer critérios definidos pelo Ministério da Cultura para distribuir os recursos. Criou um grande balcão, controlado por seu ministério. A gritaria veio na hora. O ministro foi acusado de centralismo e dirigismo cultural. A acusação era que o governo queria privilegiar produtores culturais alinhados na hora de distribuir as verbas. As suspeitas fortaleceram-se quando o governo lançou o desastrado projeto da Ancinav, uma agência pública para controlar a indústria de cinema e televisão. O projeto dava, na prática, poder ao governo para interferir no conteúdo produzido no cinema e na televisão brasileiros. Foi bombardeado por todos os setores da indústria cultural. As maiores queixas feitas à gestão de Gil no governo partiram de intelectuais de prestígio nacional dentro dos setores de música, cinema e teatro. Barreto e os cineastas Roberto Farias e Paulo Thiago chegaram a se reunir com o então todo-poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, ainda em 2005, pedindo mais do que o engavetamento da proposta da Ancinav. Queriam a manutenção da política de distribuição dos recursos das empresas estatais para o setor cinematográfico
Gil tentou resistir e levar o projeto adiante. Argumentava que o governo estava aberto à negociação e não continha as intenções ditatoriais apontadas pelos críticos. Perdeu a briga. O presidente Lula acabou retirando o projeto de pauta, mesmo contra a opinião do Ministério da Cultura. Em setembro, uma versão desidratada foi reapresentada ao Congresso.
Para o ministro, toda esta gritaria é pano de fundo para uma luta por dinheiro. Ele diz que os patrocínios para cultura eram controlados por um pequeno grupo e que esse grupo é o responsável pelos ataques contra sua gestão.
"A gente gastou mais do que se gastava antes. E acho que se gastou melhor também. A gente estabeleceu políticas públicas. Evoluímos de um gasto pontual, feito em função de clientelas específicas, por meio de uma política de concentração no Sul e Sudeste, nas áreas mais desenvolvidas do Brasil. Nós fizemos esses gastos agora, esses investimentos, com mais horizontalidade, com mais democratização, com mais conciliação pelas regiões todas, atendemos mais ao Norte e Nordeste, e ao Centro-Oeste. Enfim, estabelecemos uma gestão mais democrática."
As produções culturais do eixo Rio-São Paulo sofreram com o corte de dinheiro. A Região Sudeste respondia por cerca de 80% dos recursos federais para a cultura, no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso. A mudança nos critérios para os repasses de verbas - distribuição pulverizada do dinheiro - mexeu mesmo com a produção no Sudeste. Na outra ponta, diretores do Nordeste vibraram com as mudanças. A ponto de um manifesto ter sido escrito no 15º Cine Ceará, em junho daquele ano, não só em defesa do novo modelo, como também da famigerada Ancinav. O raciocínio dos nordestinos foi simples, ancorado em números: dos 152 filmes financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), durante os oito anos de gestão tucana, apenas dois eram do Norte e Nordeste. Entre 2003 e 2004, esse número subiu para cinco.
No final de 2005, a gestão de Gil voltou a ser duramente criticada e atacada porque estaria incorrendo em formas viciadas de centralização e totalitarismo. Ou seja, tudo ao contrário do que o ministro pregou. As farpas foram disparadas, curiosamente, por dois homens de boas letras: o poeta maranhense Ferreira Gullar e o cantor e compositor baiano Caetano Veloso. Em entrevista concedida em dezembro à Folha de S. Paulo, Gullar declarou que tinha ouvido reclamações de diferentes áreas culturais de que Gil não estava "cumprindo bem seu papel" e que havia "centralização" no ministério. Mas o próprio Gullar ressaltava que não sabia se essa "centralização" continuava. Três dias depois, o secretário de Políticas Públicas do MinC, o jornalista Sérgio Sá Leitão, publicou uma carta no jornal, retrucando as declarações do poeta: "Não deixa de ser curioso um comunista criticar algo ou alguém por uma suposta centralização. A centralização não era a marca registrada dos finados regimes stalinistas dos quais Gullar foi e segue sendo um defensor?" Foi o que bastou para Caetano Veloso entrar na briga. "Estamos sim a um passo do totalitarismo", assinou. Na carta em que reagiu ao ataque de Leitão ao poeta maranhense, Caetano ressalvou o papel do ministro-amigo: "Gilberto Gil é meu irmão, meu amor, meu companheiro de viagem - não pode deixar de observar esses aspectos da questão. Deve haver vários outros aspectos que podem ser discutidos, mas, como Gullar, não estou inteirado (e, como ele, não sou obrigado a estar). De todo modo, não creio que algo desqualificasse os argumentos que expus acima e que são de caráter geral". Houve uma forte reação por parte de intelectuais. O cineasta Zelito Viana partiu para o tudo-ou-nada. Aderiu a um abaixo-assinado, juntamente com Barreto e o arquiteto Oscar Niemeyer, entre outros artistas, em defesa do poeta maranhense e pedindo abertamente a demissão de Leitão.
O jornalista acabou afastado do cargo, em meados deste ano. Está ocupando uma diretoria no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), justamente uma das estatais que faz o trabalho de mecenato para artistas do país. Recordando os ataques, Gil é rápido ao declarar que não guarda mágoa de ninguém. "Não se pode ser gestor público, tendo de fazer opções, gerir no âmbito de uma disputa por espaço e por recursos, tendo de fazer opções de preferenciar tais e tais setores e não outros", esclarece. "Não se pode ser gestor público sem a expectativa da contrariedade de muitos interesses. Então, essas manifestações estavam ligadas a isso. Eram interesses contrariados que se manifestavam. Eu não misturo nada disso com a dimensão pessoal nem com nada. Quando Cacá Diegues ou Luiz Carlos Barreto fizeram críticas a isso ou àquilo, a encaminhamentos esses ou aqueles, não me interessa. Não afeta o relacionamento que tenho com eles." Apesar disso, Gil faz questão de pôr panos quentes e mostrar que essa fase foi superada. "A maior carga de críticas à nossa ação se concentrou mais no princípio, no momento em que as iniciativas estavam sendo tomadas. A dimensão necessariamente experimental de muitas das iniciativas ficava evidente no início em que elas foram propostas. E aí vinham e vieram as reações. Ao longo do tempo, se você tomar hoje os quatro anos, uma série dessas resistências foi se diluindo, na medida em que as propostas iam entrando no campo da realização, no campo do real", avalia. "As intenções foram sendo compreendidas e os eventuais equívocos de encaminhamento foram sendo processados e trabalhados pelo diálogo, que, necessariamente, foi se intensificando entre a sociedade e o ministério."
Gil não escapou de acusações mais próximas da lama, que atingiram boa parte do primeiro governo Lula. Em maio de 2005, quando reclamava da falta de verbas para a Cultura, reservou no orçamento uma verba de quase R$ 9 milhões para uma reforma no prédio do Ministério. Entre as mudanças, compra de mobília nova. As cadeiras eram de couro ecológico, os tapetes, de sisal. Tudo ecologicamente correto, a não ser pelo grande desperdício de papel-moeda. Foram nada menos de R$ 789 mil em móveis. Outros R$ 674 mil foram gastos na compra de novas divisórias, mais baixas que as anteriores. Numa carta aos funcionários, Gil explicou a mudança. "Vamos deixar que a vista do horizonte marítimo de Brasília seja mais acessível a todos e que a clara luz desta cidade-céu invada sem barreiras os andares do Ministério da Cultura." Uma delicada mistura de poesia e dinheiro público, mas o ministro planejava economizar muito na conta de luz.
Também há quem tenha se irritado dentro do governo com o fato de que amigos de Gil teriam sido beneficiados com repasses de recursos públicos federais. Em 2004, o secretário de Desenvolvimento de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura, Roberto Pinho, foi demitido do governo. O antropólogo teria sido o responsável pelo repasse de R$ 21,5 milhões para o Instituto Brasil Cultural, de amigos do ministro. O acordo, que chegou a ser assinado por Gil, foi barrado na última hora. Pinho é compadre de Gil e chegou a ser citado durante o escândalo do mensalão como um dos beneficiados por saques no valor de R$ 250 mil do valerioduto. Ele recebeu o dinheiro da empresa SMP&B, a agência utilizada no escândalo envolvendo o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o publicitário Marcos Valério de Souza. O ministro e o ex-assessor são amigos desde os anos 70, quando chegaram a montar um kibutz no cerrado brasiliense, próximo à capital federal, cantada em "Refazenda", um clássico de Gil.
O ministro demitiu o amigo, que ainda é padrinho da filha Preta Gil. Mas sofreu baixas. Deixaram o MinC Antônio Risério, poeta e parceiro de Gil, que trabalhava como seu assessor especial no governo, o coordenador do Projeto Monumenta, Marcelo Ferraz, além da então presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa. Pinho foi demitido por quebra de confiança. Irregularidades foram detectadas no processo do convênio fechado entre o ministério e o instituto, no que seria o Programa Cidade Aberta, que acabou cancelado devido aos problemas encontrados. O projeto previa a criação de centros artísticos a serem instalados em comunidades carentes. Os ex-colaboradores não comentam mais sobre o afastamento. Nos bastidores do governo, a informação é de que os três se queixaram enormemente da concentração de poder excessiva nas mãos do secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira. Eles chegaram a tornar públicas essas críticas, quando divulgaram uma carta, cujos termos são duros: ''O cotidiano rasteiro da politicagem e da intriga faz as suas cobranças. E pode investir para tentar destruir pessoas grandiosas. Pessoas preciosas, como é, para nós, o companheiro Roberto Pinho. O que está sendo feito com ele nos deixa perplexos'', diz a carta. ''A deslealdade, a mesquinharia na disputa pelo poder, a ignorância, o descaso por tudo aquilo que é social e culturalmente mais importante e profundo nos afastam agora deste ministério.'' Segundo um ex-assessor do governo Lula, o problema, de fato, foi a disputa de poder dentro da máquina pública. "Gil tem no ministério três instâncias em que o poder é dividido: o PT, o PV e os amigos próximos", explica. "Alguns desses amigos próximos partiram. Ficaram o PT e o PV." Os dois núcleos de poder gravitam em torno de Sérgio Mamberti e Antônio Grassi, secretário de Identidade e da Diversidade Cultural e o presidente da Funarte, respectivamente. Ambos, petistas de carteirinha. O outro centro de força política é o secretário-executivo Juca Ferreira, que é membro da Executiva Nacional do PV. A demissão de Pinho e o afastamento dos outros três colaboradores são considerados tabu dentro do ministério. Na queda-de-braço que teria sido travada entre Pinho e Juca, o secretário-executivo teria levado a melhor. De acordo com o antropólogo, o problema teria sido provocado pelas constantes ausências de Gil do ministério, que estaria sendo comandado, de fato, pelo secretário-executivo. O próprio Risério explicitou esse mesmo entendimento.
Com tantas confusões, não é de se estranhar que Gil praticamente tenha parado de compor nestes anos de ministro. Ele jura que não se trata de bloqueio criativo, mas de agenda mesmo. "Não tenho tempo. Eu costumo exemplificar da seguinte maneira: em tempos não ministeriais, eu estava em casa às 10 horas da noite e, de repente, me vinha um estímulo para trabalhar uma canção. Eu podia me dedicar a isso até às 11h da noite, meia-noite, 1h da manhã, 2h da manhã ou até mesmo de manhã, se quisesse. E isso acontecia com freqüência", afirma. "Com a vida de ministro, eu não posso fazer isso. Mesmo que me ocorra, às 10h da noite, em casa,
trabalhar uma música, eu não posso levar aquilo adiante, porque tenho de dormir para acordar às 7h da manhã, no dia seguinte, para trabalhar."
Há pouco tempo, Gil voltou a compor. Escreveu duas músicas novas com o parceiro Jorge Mautner. "Uma é sobre os pais, sobre os costumes, sobre essa questão das relações dos pais com as dificuldades na vida dos filhos, com as grandes ameaças que surgem na vida dos filhos, e ao mesmo tempo do encantamento que os pais têm com os novos desafios existenciais e comportamentais. A outra é sobre o Brasil. Uma música de certa forma ufanista. É sobre essa especialidade do Brasil."
Sobre a outra, melhor deixá-lo (tentar) explicar.
"Fala de profecias sobre o Brasil, feitas por Walt Whitman, Theodore Roosevelt, Maiakowski e Stephen White. Sobre todas essas expectativas."
Tudo isso com letra e música de Mautner e Gil. Como se vê, depois de quatro anos de governo, o ministro continua a ser Gilberto Gil. Ou não&
GUSTAVO KRIEGER, jornalista, repórter especial de política do Correio Braziliense, passou pelas principais redações do país - Zero Hora, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, TV Globo e Época.
OLIMPIO CRUZ NETO, jornalista, foi repórter político da Folha de S. Paulo, do Jornal do Brasil e O Globo. É subeditor de "Brasil" do Correio Braziliense.