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O Mundo de Jô

Jô Soares diariamente invade as casas brasileiras, mas poucos o visitam em seu próprio lar. Em uma rara conversa em seu universo privado, o homem de mil talentos comprova por que há 50 anos é ícone obrigatório da cultura nacional

Paulo Cavalcanti Publicado em 09/11/2011, às 10h02 - Atualizado em 16/01/2013, às 13h54

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<b>MOMENTO LÚDICO</b> Jô Soares relaxa no cantinho dos brinquedos - Bob Wolfenson
<b>MOMENTO LÚDICO</b> Jô Soares relaxa no cantinho dos brinquedos - Bob Wolfenson

Encravado no centro de São Paulo, o bairro de Higienópolis às vezes se confunde com a bem mais popular Santa Cecília. Higienópolis é considerado um local habitado por gente tradicional e bem-sucedida. Suas ruas tortuosas e prédios antigos, mas bem conservados e espaçosos, são escondidos por jardins imensos de árvores frondosas. Em uma tarde pouco convidativa de sexta-feira, com chuva intermitente, temperatura baixa e de trânsito ruim, um desses prédios ancestrais é o local a ser visitado. Dentre os intelectuais, acadêmicos e artistas que habitam a região, poucos são tão notáveis quanto Jô Soares.

Aos 73 anos, o carioca José Eugênio Soares é um dos pilares do show business brasileiro. Em mais de 50 anos, deixou sua marca na televisão, na literatura, no palco e nas artes plásticas. A vida e a trajetória de Jô nunca foram convencionais e, naturalmente, isso é refletido no local onde ele reside. Na verdade, o apresentador possui dois andares em seu prédio: em um, está o apartamento de cerca de 600 metros quadrados onde efetivamente mora; no andar de baixo, encontra-se o Espaço Cultural Jô Soares, um local gigantesco e sem paredes, nada prosaico, simultaneamente exótico e confortável – uma mistura de museu, biblioteca, sala de reuniões e parque de diversões. É um ambiente incomum e que reflete e personalidade de Jô, suas idiossincrasias, interesses, conquistas e gostos pessoais. Espalhados pelas paredes imaculadamente brancas estão quadros pintados pelo próprio Jô e reproduções dos pôsteres de espetáculos antigos, desenhados por Ziraldo. Há espaço para uma variedade de miniaturas, um piano de cauda, uma jukebox Wurlitzer, uma máquina de refrigerantes antiga e uma réplica de quase 2 metros do Super-Homem, que encara a todos de forma magnânima. O inventário vai longe: uma vasta biblioteca, uma lareira, mesa de reuniões, um telão, sofás e poltronas; pendurados no teto, um helicóptero de brinquedo, um globo terrestre e um estroboscópio; e, na sala anexa, um estúdio musical, com instrumentos montados e prontos para uso (é ali que Jô ensaia com seu sexteto antes de eventuais shows). Mas nenhum item chama tanto a atenção no local quanto o tubo cilíndrico transparente que se estende do chão ao teto, semelhante ao sistema de teletransporte do seriado Jornada nas Estrelas. Aquele é, na verdade, o meio de transporte que o dono da casa utiliza para se locomover rapidamente do andar superior para o de baixo. E é exatamente dali que ele surge, inconfundível, de paletó estampado, suéter, calça jeans, sapatos marrons polidos e chapéu. No rosto, um par de óculos colorido; pendurada no pescoço, uma lente de aumento.

Vídeo: veja o making of da sessão de fotos com Jô Soares.

“O elevador é a vácuo”, Jô explica. “Fiquei sabendo de uma senhora que tinha um no interior de São Paulo, e em cinco dias ele estava entregue.” Mesmo com tantas distrações em sua residência, ele continua um workaholic em tempo integral. Por três dias da semana, se ocupa da gravação do Programa do Jô, exibido na Rede Globo há mais de dez anos. No momento, dirige a peça O Libertino (“Foi todinha ensaiada aqui”, explica), em cartaz em São Paulo. E acabou de lançar o livro As Esganadas (Companhia das Letras), que segue a linha romance policial-histórico-humorístico de seus outros livros – O Xangô de Baker Street (1995), O Homem que Matou Getúlio Vargas (1998) e Os Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005). “O pessoal da Companhia pensa que As Esganadas tem o potencial do Xangô – alguns acham que é melhor até do que o Xangô”, Jô comemora. É no contato ao vivo que se comprova o modo como ele utiliza o charme imediato, a vasta cultura geral e o senso de humor sempre em ponto de bala, sem contar a memória inacreditável, que resgata fatos e detalhes de décadas atrás ao estalar dos dedos. Conversar com Jô Soares é realizar uma viagem no tempo pelos fatos mais relevantes da cultura brasileira nas últimas cinco décadas.

Todas as suas biografias apontam que você queria ser diplomata. Como seria?

Seria um diplomata engraçado, no mínimo. Eu fui estudar na Europa e então minha família perdeu tudo. Papai ficou sem onde morar, foi morar num apartamento emprestado da irmã. Nessa época, eu voltei depois de ter prestado exame para as Universidades de Oxford e Cambridge, mas não pude porque não dava mais, tinha que voltar. Os negócios do papai já estavam à beira de fechar mesmo. Nos mudamos pra Copacabana. O meu pai e a minha mãe foram morar num apartamento emprestado pela irmã do papai e eu fui morar num quarto alugado na Prado Junior, que era a rua da boca, onde morava o Clovis Bornay, enfim, era a zorra. Aparecia o Daniel Filho, ninguém ia à praia, todo mundo era muito branco e íamos tomar a sopa da madrugada. Eu achava que minha formação poderia ser bem aproveitada na diplomacia. Comecei a estudar para fazer o Colégio Rio Branco. Meu pai não era diplomata.

Ao contrário do que normalmente é publicado...

Não, o papai era corretor da Bolsa. Eu não fiz o exame porque comecei a circular no meio de gente de teatro e acabei conhecendo a Teresa Austregésilo, a minha primeira mulher. Desde os 14 anos que eu brincava com o negócio de calçar os sapatinhos no dedo da mão e dançar, imitar, fazer sátira de filme americano. E eu fazia isso à noite, nos lugares frequentados pelos artistas. Um foi me levando ao outro. O [apresentador] Silveira Sampaio, na piscina do Copacabana Palace, um dia me falou: “O que você vai ser?” Eu disse: “Estou estudando para entrar no Itamaraty”. E ele retrucou: “Você pode fazer o que quiser – vai acabar mesmo é no palco, no teatro, na televisão, fazendo show, essa é que é a sua”.

O humor passa por um momento de renovação no Brasil. Mas muitos reclamam de certa grosseria. Como você vê isto?

Eu acho que tem a renovação e tem grossura. Agora, grossura sempre houve. Mas o conceito do que é grossura muda diariamente, como o mau gosto e o bom gosto. Qual é o critério? O que é de mau gosto hoje era de bom gosto há 100 anos. Há 200 anos, era chique comer com a mão e enxugar na roupa. Na corte de Catarina de Médici, o chique era isso. Então, não tem como se estabelecer esse tipo de critério. Quanto à sátira ou paródia, eu acho que não se pode proibir. Nada pior do que a proibição, porque quem tem que fazer a escolha não é a censura – é quem está assistindo. Eu acho, por exemplo, o menino que faz o Jô Suado [Márvio Lúcio, o Carioca do Pânico na TV]... Bem, eu acho ele magnífico! Inclusive, quando fui homenageado na Risadaria, ele veio me perguntar se poderia fazer a imitação. Você não pode é perguntar se podia fazer. Claro que sim! Tem muita gente boa, como o Eduardo Sterblitch, que é um comediante espetacular, e vários outros que entrevistei. Ô, meu Deus, todos os que fizeram o meu programa de aniversário, como o Marcelo Adnet, o Bruno Mazzeo, todos são talentos maravilhosos.


Qual foi a influência do Silveira Sampaio?

Muito grande. Primeiro, quando eu vim para São Paulo, ele estava na TV Paulista, que depois virou Globo. Ele me chamou e disse: “Na semana que vem, eu vou entrevistar você para contar aquelas histórias da Suíça, aquelas loucuras e tal”. Eu dei uma entrevista que foi super-comentada, isso em 1960. Logo depois, fui contratado pela Record graças ao Nilton Travesso. Em 1963, eu acho, o Sampaio foi para a Record, dizendo que queria trabalhar comigo. Eu fazia as externas e as entrevistas que precisavam de intérprete. Ele falava inglês, mas achava que não falava bem e ele preferia que eu fizesse. Fiz ainda o Jô Show, um programa importante, em que usei todos os efeitos possíveis no videotape.

Você ganhou visibilidade no programa Família Trapo, na TV Record, como redator e também vivendo o mordomo Gordon...

Pouca gente sabe que eu escrevia para o [Ronald] Golias. É uma pena que tenha sobrado pouco material da Família Trapo, reprisam sempre os episódios que têm a participação do Pelé e o do Bronco [Golias] morto. Tinha um episódio, que se perdeu, que o pessoal iria sair de férias e a família inteira ficava tentando me empurrar dentro de um fusca!

No início dos anos 70, a convite de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-diretor-geral da Rede Globo, Jô Soares foi para a emissora carioca, que havia tirado o posto da Record como a número 1 da TV brasileira. Foi uma época de ouro para o humorismo brasileiro, com programas como Faça Humor, Não Faça Guerra, Satiricom e Planeta dos Homens. Jô fez parte de todos eles. “No Faça Humor, eu trabalhei com o Renato Corte Real, que era um comediante fantástico, com um texto incrível, uma pessoa muito bem informada”, relembra. “O Boni queria fazer uma coisa diferente, com tudo se interligando, com muitos efeitos e com personagens, que, em princípio, não seriam fixos. Só que alguns personagens foram surgindo e de repente foram ficando fixos, porque em humor tem certos quadros que crescem com a repetição. Eram a Norminha, o Lelé e o Da Cuca que eu fazia com o Renato e uma série de outros quadros.” “Depois de três ou quatro anos, mudamos para o Satiricom”, Jô prossegue com as memórias, recheadas de nomes, detalhes e nuances. “No mesmo programa tinha Paulo Silvino, Agildo Ribeiro, José Vasconcelos, Miele e outros comediantes de primeira linha. É claro que o programa foi um pouco pulverizado, era calcado mais na sátira da época. Ficou no ar dois anos, foi o primeiro programa de humor em cores. Depois, veio O Planeta dos Homens, aproveitando [o filme] O Planeta dos Macacos, com o bordão ‘o macaco tá certo’, que foi um fenômeno, ficou quatro anos ou algo assim.”

Em 1981, você ganhou um programa próprio, o Viva o Gordo.

Eu falei para o Boni que eu estava com vontade de ter o meu programa, sabe? “Já são cinco anos, mais um ano eu me formo em medicina!” Ele riu e falou: “Tem razão, você merece, sim”. E surgiu o Viva o Gordo, um título que ele deu. Era a época da ditadura ainda. Eu iria fazer um espetáculo que era para se chamar Abaixo o Regime, mas vi que ia dar encrenca e então botei Viva o Gordo e Abaixo o Regime. No desenho do Ziraldo, que aliás fez todos os meus cartazes, ficava o bonequinho riscando da parede o “viva o gordo” e ficava só o “abaixo o regime”. E aí o Boni decidiu: Viva o Gordo.

Nessa época, você fazia críticas ao governo, com personagens como o Dr. Sardinha, que era uma paródia do Delfim Netto, o Reizinho, o General, o Exportador de Corruptos e muitos outros. Como você e os redatores faziam isso na época do governo militar?

É, a gente fez vários programas em plena ditadura mesmo. Eu sempre achei que é impossível censurar a sua gaveta. Você tem que escrever. A função de censurar é de quem está de censor. Então a gente escrevia várias coisas que não passavam e várias que passavam sutilmente. Algumas liberaram e depois proibiram. O caso mais flagrante é o do Gandola, que era um cara que ia procurar emprego. Ofereciam um emprego de faxineiro e ele dizia: “Não, você não está entendendo, quem me mandou aqui foi o Gandola”. Respondiam: “Você vai ser faxineiro. Não. Vai ser contínuo. Bom, bom emprego. Contínuo é bom”. E ele insistia: “Mas quem me mandou aqui foi o Gandola”. E no final o Gandola saía como presidente da empresa ou vice-presidente. Isso rolou durante um ano e pouco, até que alguém sacou que Gandola é o nome de uma túnica do exército. Se quem mandou foi o Gandola, então foi um militar que impôs. Aí, proibiram o quadro. O Max Nunes, que foi quem bolou tudo, disse: “Vamos mudar o nome, não é mais o Gandola, é o Buchecha”. Daí ficou Buchecha, e todo mundo dizia: “O Buchecha é o Armando Falcão [ministro da Justiça da época]”. Quer dizer, não adianta, você passava mensagens que hoje podem até parecer ingenuidade.

Atualmente existe a patrulha do politicamente correto. Você acha que personagens como a Norminha, a Bô Francineide e o Capitão Gay seriam hoje considerados ofensivos aos gays?

Todos os gays adoravam o Capitão Gay. Inclusive na própria musiquinha-tema dizia que ele era o “defensor das minorias”. Teve uma vez que um candidato a deputado federal gay em Pernambuco me ligou para o hotel, quando eu estava fazendo show lá. E ele, com uma voz seríssima: “Aqui é o fulano de tal, eu sou candidato e eu queria que o Capitão Gay e o correligionário Carlos Sueli [interpretado por Eliezer Motta] fossem ao meu palanque para fazer campanha comigo”. Eu falei: “Desculpe, evidentemente que eu sou a favor de tudo que você é a favor, mas eu, pessoalmente, não sou gay. O personagem é que é gay. Então eu não posso entrar vestido de Capitão Gay num palanque”. Então, isso nunca me impediu de dizer nada. Porque eu acho, aliás, já falei isso e repito, que a única coisa que precisava ser politicamente correta no Brasil são os políticos.


Já quanto à grossura...

Isso não tem nada a ver com humor. O humor não peca quando é grosso: é quando não tem graça. Então, tem coisas que não têm graça, e por mais que você engrosse não vai ficar melhor. Como é que você pode criterizar o humor? Pra mim, só desta maneira: se é engraçado ou não é engraçado. Você rir só de grossura, eu acho muito difícil. Tem que ter alguma coisa a mais, senão fica só a grossura. Isso é da ética de cada um que assiste, de cada um que vê e de cada um que decide. Eu vejo, por exemplo, comediantes de alto nível intelectual como o Marcelo Tas, como o próprio Eduardo Sterblitch. Agora, se o outro do CQC fala aquela bobagem, aquela infelicidade, e continua depois falando, quem sou eu para julgar? Ele que continue falando. Se quisesse, ele devia ter continuado, “Não [eu também como], ela, o filho, o marido e o avô também...” Qual é o critério que você estabelece? A censura é pior do que qualquer coisa. Você começa a censurar uma coisinha, daí o outro já vem e fala: “Mas aquilo eu também achei que não sei o quê”. Os políticos estão loucos pra tentar cercear a imprensa, cercear a comunicação e começam a querer botar as manguinhas de fora. Eu acho, por exemplo, que o [deputado federal Jair] Bolsonaro faz declarações muito mais incorretas politicamente do que qualquer outra coisa que um humorista tenha escrito ou falado. Aquilo, sim, é politicamente incorretíssimo e, é claro, não tem a menor graça.

Como você explica seu grande envolvimento com a música?

Eu curti o comecinho do rock and roll, mas antes disso já tinha o jazz. Porque tudo é filho do jazz, filho, neto, bisneto. É toda uma faixa de música que eu adoro. Comecei a tocar trompete por causa disso. Não toco há algum tempo. Se eu voltar a tocar, tenho que ficar dois meses só pra fazer a embocadura, porque fui escolher um instrumento que depende de você formar a boca para o instrumento. O bongô eu toco sempre que posso. Desde os 14 anos que eu toco. Eu ia para uma boate em Paris em que, quando os músicos americanos iam tocar com grandes orquestras, depois faziam jam sessions. Eu, muito cara de pau, moleque, ia com o bongô debaixo do braço e saia tocando. Os caras achavam graça e deixavam. Músicos de nome, como Oscar Peterson, achavam graça. O músico tem essa coisa acolhedora, e tem também uma visão de humor. Se um cara faz uma improvisação, eles riem, acham graça, porque é uma coisa que tem graça no sentido da gratificação.

Houve um tempo em que você gravava discos de humor, como o LP da Norminha e o compacto do Capitão Gay, que vendeu muito. E ainda tem o compacto raro com o rock “Vampiro”. O que você pensa sobre esses seus trabalhos que misturam música e humor?

Eu não consigo categorizar ou levar nada a sério nesse sentido. A gente não tinha muita consciência ou necessidade do registro dessas coisas, como essas músicas de humor. O “Vampiro” surgiu num Show do Dia Sete, em que eu contava três piadas e terminava cantando a música. O sucesso da noite foi a minha apresentação ali. Daí, o pessoal da gravadora Farroupilha me disse: “Você não quer fazer um compacto simples?” Eu conversei com o redator do Jô Show, que escrevia o programa junto comigo. Falei: “Eles querem fazer, que tal fazer o ‘Vampiro’? Mas precisamos de uma musiquinha para o outro lado”. E daí ele inventou o “Volks do Ronaldo” e saiu essa bolachinha em 1963.

Por maiores e numerosos que tenham sido os feitos de Jô Soares no passado e no presente, seja como comediante, escritor ou artista de palco, tudo empalidece se comparado a seu status como apresentador de talk show. Quando fala sobre o tema, ele não esconde a seriedade. “Já são quase 20 mil entrevistas”, enumera. “É do talk show que sai tudo, é de onde eu penso tudo, onde eu penso teatro, música, artes plásticas, eventualmente cinema. Ele me permite não só o contato com o imenso público da televisão, mas também com o pequeno público da plateia, o que para mim é essencial a qualquer atividade, já que eu sou basicamente um ator-comediante.” A ideia de apresentar um programa nesse formato surgiu para Jô nos anos 60. Com a precisão de um especialista, ele consegue passar horas detalhando sobre os primórdios do talk show na TV norte-americana, citando a criação do Tonight Show (surgido em 1954, no canal NBC), apresentado inicialmente por Steve Allen, depois por Jack Paar, Johnny Carson e, hoje, Jay Leno – todos heróis de Jô. Pouca gente, aliás, se lembra da tentativa frustrada de talk show que Jô realizou ainda nos anos 70. “A gente testou na Globo. Só que era só uma vez por semana, sem plateia e em plena ditadura, então, evidentemente... Um dia, liguei para o Boni e disse: ‘Eu acho que isso aí não está dando’. E ele falou: ‘Também acho’. Era uma coisa muito insegura, não tinha plateia, e sem ela o comediante não tem guia.” Ironicamente, foi no SBT, de Silvio Santos, que Jô enfim encontrou um formato consagrador.

Você era uma estrela na Globo, mas em 1988 arriscou – saiu e se reinventou como apresentador de talk show no SBT. Como foi deixar a zona de conforto?

Na época, não havia espaço pra fazer um show diário como eu queria, apenas de entrevistas. E então teve a proposta do Silvio Santos. Foi ótima e renovadora do ponto de vista profissional. Não só pelo aspecto financeiro – claro que a Globo podia cobrir qualquer coisa nesse aspecto –, mas pelo fato de antes eu não ter esse espaço para fazer esse programa que eu acreditava e que o Silvio também acreditou. E o Silvio ainda tem o mérito de ter dito na hora em que eu assinei o contrato. Estava lá: programa todos os dias. Eu falei: “Não, Silvio, eu quero só uma vez por semana. Um programa de duas horas e pouco, uma vez por semana”. E ele: “Não, um programa diário de duas horas e pouco, você divide 40 minutos por dia”. E eu também fazia o Veja o Gordo, que era um programa de humor. Por quatro dias eu fazia o de entrevistas, que dava 40, 45 minutos por programa. Um ano depois, eu já não fazia mais o programa de humor. Quando assinei o contrato com o Silvio, ele disse: “É nesse programa aqui que eu vou te pegar”. E o Jô Onze e Meia ficou exatamente 11 anos no ar!

E em 2000, você voltou à Globo. Como foi?

Voltei a convite da Marluce Dias [ex-diretora-geral da emissora], do Evandro Carlos de Andrade [ex-diretor de jornalismo], querido amigo já falecido, do Roberto Irineu Marinho [proprietário das Organizações Globo] e do Roberto Buzoni [executivo da Globo], que queria muito que eu voltasse. Aí, teve uma coisa curiosa: o programa do Jô vai chamar como? Surgiram vários nomes, eu também estava atrás. Até que um dia o Buzoni falou: “O que adianta estarem procurando tanto? Programa do Jô é como todo mundo fala, e como falavam até no SBT”.


Como é encontrar personagens diferentes ou entrevistar novamente as pessoas e encontrar um foco interessante? Você entrevistou o Roberto Carlos na época do SBT e repetiu a dose recentemente. Como é feita essa renovação diária do programa?

É como uma bola de neve. Quando eu falei para o Ziraldo que seriam três convidados por noite, ele falou: “Não dá, isso não dá uma semana”. Falei: “Dá. Eu não vou entrevistar só pessoas famosas. Eu quero entrevistar do presidente ao engraxate”. Ele falou: “Faz um por vez”. Um por vez não dá, porque tem que ter a variedade, tem que ter 15 minutos cada um. Às vezes, como no caso do Roberto [Carlos], foi o programa inteiro, mas aí é um critério nosso. O programa vai se renovando por si mesmo. As pessoas têm sempre uma história nova, como tem histórias novas na nossa vida todo dia. Se você me entrevistar daqui a um mês, eu vou dar uma entrevista diferente, porque eu vou estar diferente e você também vai estar diferente. E o que acontece? [O programa] se autorrenova e existe a descoberta de coisas interessantes. A gente tem os e-mails que as pessoas mandam, indicando figuras engraçadas e curiosas para entrevistar. “Ah, tem um vizinho meu que ele faz castelo medieval com chiclete.” O bom é quando há uma mistura de pessoas famosas, que já foram entrevistadas, ou não, com aquelas que não são famosas. Temos uma média de 500 pedidos por semana. Fazer a triagem é que é difícil.

Há alguém que você gostaria de entrevistar e nunca conseguiu? Você teria uma lista?

Olha, eu não faço isso. Não faço, porque senão a pessoa vira o Santo Graal. Depois, quando eu consigo entrevistar, é maravilhoso. O Roberto Carlos demorou, mas ele veio no momento certo e deu uma entrevista que foi maravilhosa para mim e para ele. As pessoas comentaram: “Você conseguiu o Roberto”. Mas o Roberto é meu amigo há 30 e tantos anos. Então, claro que fica essa coisa de dois amigos conversando. O Chico Buarque também. “Mas, como você conseguiu entrevistar?”, perguntam. Mas ele é meu amigo dos tempos da Record! Claro que eu não fico aporrinhando amigos que não querem ser entrevistados. Eu sou jornalista, escrevi na Última Hora, no Globo, na Folha de S. Paulo, na Veja durante sete anos... Mas esse lado da insistência do repórter eu não tenho nem posso ter. Como eu estou dos dois lados da coisa, pedra e vidraça, eu não posso também ficar insistindo quando uma pessoa não quer. Porque eu sei como é chato quando a pessoa fica insistindo comigo e eu não posso ou então não quero.

A tarde cinzenta vai morrendo e as sombras das árvores da vizinhança dão ao apartamento de Jô um ar de leve melancolia. É o momento para falar sobre José Eugênio, “o paulista adotado” que nunca deixa de fazer graça com a gordura. Apesar da presença dos empregados e assistentes que mantêm o local em ordem e funcionando, Jô vive sozinho, mas é uma solidão relativa. Além dos amigos e parceiros de trabalho, ele confessa que recebe frequentemente a visita da designer gráfica Flávia Soares, com quem teve um relacionamento oficial até o final da década de 90: “A Flavinha mora, não vou dizer no bairro, mas perto do bairro. Ela tem a casa dela”, Jô conta. “Mas a gente se vê quase que diariamente, senão semanalmente. O José Wilker tem uma frase maravilhosa: ‘É uma separação que não deu certo’ [risos]. A gente é muito unido, muito agarrado, sempre viajo com ela. Acho que foi uma separação muito bem resolvida.”

Você assiste a vídeos antigos seus?

Não, não. Quando saiu o DVD do Viva o Gordo, eu tive que assistir junto com o Wilton Marques, que aliás fez um trabalho de seleção impecável. “Você tem que ver isso aqui”, ele falava. Eu via e achava graça. Mas eu, de espontânea vontade, procurar coisas antigas para ver, é muito difícil. Eu mostro algumas entrevistas para amigos que não viram, e aí eu fico do lado. Mas eu fico vendo não a mim – eu fico vendo o convidado, que muitas vezes foi engraçadíssimo, espetacular. Mas, me assistir, não. É como eu costumo brincar: eu me acho até gordo quando me vejo!

Você sempre se autointitulou “gordo”, mas houve a época de magreza total. Como foi isso?

Eu cheguei a pesar 160 quilos. Aí já não é mais peso, é medida, tonelagem. A roupa começou a não caber. Estava com 160 e continuava a engordar. Eu disse: tenho que dar um basta. Estava surgindo aquela dieta de cortar carboidrato. Eu cortei, aquilo foi indo e, quando me dei conta, estava com 80 quilos. A mim não incomodava, eu continuei fazendo show de humor. Eu ainda brincava: se gordura fosse engraçado, coitado do Chico Anysio! Ninguém precisaria mais de comediante, bastava comprar um quilo de toucinho, pendurar na sala e rir o ano inteiro. Isso durou uns dois anos e meio. Eu não tive estímulo nenhum para ficar magro. Oitenta quilos – eu era magro em proporção ao que era. Com 1,68 m, 1,70, não chega a ser magro. Todo mundo dizia: “Ah, prefiro você gordo, eu gosto de você mais gordo”. E aí depois, sem querer, você vai relaxando. Cheguei aos 125 quilos e resolvi de novo dar uma brecada. Agora estou com 95, 100. Mas esse período de magreza entre aspas não foi estimulado por ninguém. E eu brinco, não existe gordinho. “Gordinho” é preconceituoso. A pessoa é gorda, e daí? A pessoa pode ser muito gorda, pouco gorda ou só gorda. Quando você chama uma pessoa gorda de “gordinho”, é a mesma coisa que o alfaiate que lhe chama de “forte”. Então, eu não sou forte – sou gordo.

Quanto à comida, tem alguma preferência?

Eu gosto de tudo! Como todo gordo, ou pelo menos a maioria deles, eu sou do junk food total, sanduíche, pão com qualquer coisa dentro. Olha, pão com chocolate dentro... Isso é uma delícia! Esse é um lanche típico da Suíça. Pão com manteiga e chocolate ao leite dentro.

Seu filho, Rafael, que nasceu em 1964, mora no Rio. Como é seu relacionamento com ele?

Sim, tenho um filho que é autista e que é muitíssimo bem cuidado pela Teresa [Austregésilo]. Ele mora no Rio e é uma figura surpreendente... Eu não gosto muito de entrar na intimidade dele por respeito, mas ele tem coisas fantásticas. Ele identifica qualquer ruído. Pra resumir o que é o Rafinha: você viu o Rain Man, do Dustin Hoffman? É aquilo, exatamente aquilo. Só que o negócio dele não é com a TV, é com o rádio. “Não, vai começar daqui a um minuto e meio...” É um filho único. As pessoas me falam: “Nossa, mas você tem um filho autista...” Mas é um filho que é meu. Não queria ter outro, não queria mesmo. Não imagino o que seria ter outro filho.

Sendo carioca e morando tanto tempo em São Paulo, qual é sua relação com a cidade?

A primeira vez em que vim pra São Paulo foi para ficar 12 dias. E fiquei 12 anos. Adorei a cidade, como adoro o Rio de Janeiro. Para mim, são duas cidades que se completam. Tem características de São Paulo, logo que eu conheci, com as quais eu fiquei fascinado. O Rio de Janeiro tem todo tipo de influência, de uma malemolência, de um jeitão carioca, eu adoro. E em São Paulo eu vim a descobrir as raízes italianas da cidade que eu também amo, o jeito de falar, as expressões, as gírias. Hoje em dia, as pessoas me identificam mais como um cara de São Paulo do que do Rio. E eu tenho um sotaque que não é uma coisa nem outra.

Na sua parede tem uma matéria enquadrada do jornal New York Times, que o chama de “o homem da renascença do show business brasileiro”. Você também se vê assim?

Graças a Deus, eu não me vejo. Acho a matéria maravilhosamente gratificante, fantástica, ela só me enche de orgulho. É um banho no meu ego. O Millôr [Fernandes] um dia me ligou para dizer: “Você está na Enciclopédia Britânica. Eu não estou e você já está”. Foi no ano seguinte ao lançamento do Xangô, estava lá, como comentarista cultural – “cultural comentator Jô Soares”. Agora, eu vi que eu estou no livro do Carlos Nejar sobre a literatura brasileira, que pega desde a Carta do Pero Vaz de Caminha até os dias atuais. Tem lá uma menção a mim. Essas coisas são muito gratificantes. Evidente que sou uma pessoa vaidosa ou não estaria me expondo. A minha profissão é uma profissão de vitrine: eu estou lá pra ser olhado, para ser admirado ou para ser contestado.