Eleita à revelia de metade da população brasileira, a presidente terá de administrar seu mandato diante do Congresso mais conservador dos últimos 50 anos
No auge das manifestações populares de junho do ano passado, as cúpulas do PT e do governo federal abriram um intenso debate sobre qual impacto aquele movimento massivo, espontâneo, desorganizado e sem liderança teria sobre a eleição presidencial do ano seguinte. Pré-candidata à reeleição, a presidente Dilma Rousseff (PT) desabou nas pesquisas de opinião, bem como os índices de aprovação da sua gestão. Acendeu-se em Brasília o sinal amarelo. A recuperação, porém, veio rápido. E, para muita gente, se confirmou com o resultado do segundo turno no dia 26 de outubro. Não é bem assim. A eleição mais acirrada e cheia de reviravoltas da história política brasileira deixou um legado muito além de seu resultado final, uma vitória apertadíssima de Dilma com 51,6% dos votos válidos contra 48,3% de Aécio Neves (PSDB). Pela primeira vez desde sua fundação, em 1988, o PSDB, um partido de atuação legislativa e pouca inserção nos movimentos sociais, viu milhares de pessoas saírem às ruas com sua bandeira e em defesa do seu candidato.
Antes disso, em agosto, depois da morte de Eduardo Campos, Marina Silva assumiu a dianteira das pesquisas, movida pelo mesmo sentimento difuso, porém intenso, de indignação que levou as pessoas às ruas em 2013. Para estudiosos e especialistas, seria um exagero dizer que Aécio representou o sentimento das ruas, mas pode-se afirmar com base na mera observação empírica que ele, no mínimo, conseguiu capitalizar em cima desse sentimento. “As manifestações de junho abriram a porta para os jovens saírem às ruas contra tudo que está aí. Como o PSDB nunca teve militância e o Aécio adotou um discurso de oposição, ele acabou se beneficiando disso”, avalia o cientista político Rudá Ricci, autor de dois livros emblemáticos sobre o tema, Lulismo - Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira e Nas Ruas, o primeiro a avaliar com profundidade o fenômeno de 2013. Ele pondera que o perfil dos manifestantes é muito diferente, dependendo do estado. Não foi por acaso, entretanto, que São Paulo, epicentro das manifestações e onde o mineiro Aécio recebeu sua maior votação, tenha registrado as mais expressivas passeatas em prol do candidato. “Em São Paulo, quem saiu às ruas foi a juventude tucana, que é de classe média e tem uma postura mais conservadora”, diz Ricci. Para o cientista político Sérgio Praça, professor de políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFBC), as manifestações de oposição registradas na eleição, especialmente no segundo turno, foram marcadas por um discurso menos indefinido do que as de junho de 2013. “O discurso, desta vez, foi contra o PT, o governo federal e, no caso de São Paulo, também contra o prefeito Fernando Haddad.” Porém, ele faz uma observação importante. “Me surpreendi com a participação do PSDB nas ruas, mas não eram militantes que estavam lá. Eram simpatizantes. E pela primeira vez, as duas forças, tucanos e petistas, travaram a batalha nas ruas também.” O dado curioso é que os candidatos que se arriscaram nas urnas evocando as manifestações de junho como mote saíram derrotados.
O exemplo mais simbólico talvez seja o do estudante de direito Fábio Silva, de Campinas. Um dos mais atuantes organizadores das passeatas no ano passado no Facebook, ele entrou no grupo político de Marina Silva, a Rede Sustentabilidade, e tentou uma vaga de deputado federal pelo PSB com o slogan “Fábio Silva - A voz das ruas”. Acabou desistindo da campanha no meio do caminho por desgosto. Resultado: nada de votos, nem dele mesmo. Nenhum candidato que se destacou nas passeatas do ano passado ou tentou usá-las como trampolim foi bem-sucedido. “Eu tenho a impressão de que as manifestações de junho mostraram uma energia em estado de latência”, avalia Basileu Margarido, dirigente da Rede da Sustentabilidade. “Mas as eleições não deram respostas às ruas.”
Depois de ser eleita com uma pequena margem de votos, a presidente Dilma Rousseff terá mais dificuldade de negociar com o Congresso Nacional do que no seu primeiro mandato, e não só porque o país está mais dividido do que nunca entre “azuis” e “vermelhos”. “A partir de 2015, 28 partidos estarão representados no Congresso, sendo que 12 deles têm menos de 15 deputados. Vai ficar muito difícil fazer o gerenciamento da base do governo”, acredita Sérgio Praça. “Acho muito arriscado, por exemplo, propor uma reforma política agora.” Com uma base fragmentada, a presidente terá que atuar mais no varejo do que gostaria, e isso tem um preço: ceder mais cargos para políticos em vez de ocupá-los com quadros estritamente técnicos.
“Dilma dependerá mais dos partidos médios. Os apoios serão negociados fortemente. Ela vai ter que ceder”, afirma o analista político Antonio Augusto Queiroz, do Departamento Intersindical de Análise Parlamentar (Diap), entidade especializada em estudar e avaliar os movimentos do Congresso Nacional. Ele acredita, porém, que existem outras maneiras de agradar às pequenas legendas, além da distribuição de cargos. “A presidente pode afagar os deputados levando-os com ela em seu avião, por exemplo. Isso tem um peso enorme para eles em suas bases eleitorais”, afirma Queiroz.
Para o deputado federal reeleito Otávio Leite (PSDB-RJ), as divisões em Brasília têm ainda outro ponto negativo. “Congresso fragmentado significa letargia no trabalho legislativo”, prevê.
Segundo o sociólogo Marco Antonio Carvalho Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a nova formação do parlamento tornará mais difícil qualquer alteração “brusca” na gestão. “Isso exigirá um esforço de negociação muito grande”, observa. Outra característica da próxima legislatura é o conservadorismo. Um levantamento feito pelo Diap concluiu que o novo Congresso é o mais conservador desde 1964. Enquanto bancadas como a evangélica, a “da bala” (que defende o porte de armas) e a ruralista cresceram, outras, como a LGBT, a ambientalista e a sindicalista, encolheram. Houve, por exemplo, um aumento de 30% no número de policiais e militares eleitos, o que deve reforçar o lobby da indústria armamentista. Já o número de sindicalistas eleitos caiu quase à metade: de 83 para 46 parlamentares. Com essa formação, torna- se mais difícil que a presidente realize o grande “sonho” da maioria dos militantes petistas de fazer um segundo mandato mais “à esquerda” que o primeiro. “A militância que tem uma visão mais engajada espera um governo mais à esquerda, mas a sinalização é de um governo mais conservador no segundo mandato”, detalha Praça. “Quem acha que ela vai dar uma guinada se decepcionará.” Segundo Antonio Queiroz, do Diap, a nova configuração do parlamento brasileiro tornaria mais fácil a governabilidade se o eleito fosse Aécio Neves, que defende propostas como a redução da maioridade penal, não tem vínculos com os movimentos sociais e advoga uma política econômica mais austera.
Há quem discorde, porém, da tese de que o Congresso Nacional estará mais conservador. “O Congresso estará igual, mas a oposição estará fortalecida. O PSDB se fortaleceu”, pondera o deputado federal Roberto Freire, presidente nacional do PPS (ele não se reelegeu em outubro). Para o cientista político Murilo de Aragão, da consultoria política Arko Advice, “existirão mais bancadas com interesses específicos, o que dificultará a governabilidade”. Entre as pautas com potencial de enfrentamento estão os projetos que recompõem as perdas dos aposentados e as demandas trabalhistas dos bombeiros e policiais.
Principal aliado de Dilma no congresso e conhecido por cobrar caro pelo suporte, o PMDB, que costuma apoiar todos os governos, continua sendo o maior e mais poderoso partido do país e deve indicar os próximos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados. “Além do crescimento, a oposição contará com quadros mais qualificados”, diz Antonio Queiroz. De acordo com um levantamento do órgão, a bancada do PT na Câmara caiu de 88 para 70 deputados, mas ainda é a maior. O governista PMDB, por sua vez, perdeu cinco cadeiras, indo de 71 para 66, enquanto o PSDB ganhou 11, de 44 para 55. O PSD foi de 45 para 36; o PP caiu de 40 para 36 e o PSB de Marina Silva aumentou de 24 para 34. Já o PRB, que tem força com a ajuda da influência das igrejas evangélicas, foi de 10 para 20 deputados graças aos mais de 1,5 milhão de votos obtidos pelo apresentador Celso Russomanno em São Paulo.
Segundo o Diap, a renovação na Câmara foi de 46,4%, com 275 reeleitos e 238 novos nomes. A presença de mulheres aumentou de 47 para 51. No caso do Senado, o PSDB contará na nova legislatura com uma bancada formada por políticos combativos, experientes e que prometem dar trabalho para a presidente reeleita: José Serra (SP), Antonio Anastasia (MG), Tasso Jeireissati (CE), Alvaro Dias (PR) e o próprio Aécio Neves, que conta com mais quatro anos de mandato. Outro nome que promete fazer barulho é o ex-jogador Romário, que foi eleito senador pelo Rio de Janeiro. “Antes não havia uma oposição forte no Senado. E eles chegarão mordidos pela campanha”, pontua o cientista político Murilo de Aragão. Apesar desse fortalecimento, nove vagas no Senado vão para suplentes de senadores que foram eleitos governadores. Isso significa que uma bancada de desconhecidos e “sem-voto” estará instalada na Casa.
A radicalização e o resultado apertado do segundo turno das eleições demonstraram um país dividido quase ao meio entre “vermelhos” e “azuis”. Nos próximos quatro anos, a presidente terá de se equilibrar neste novo cenário para que o PT tenha chance de conquistar um inédito quinto mandato consecutivo – o que completaria um ciclo de 20 anos no poder federal. “Nos primeiros quatro anos, Dilma teve uma aproximação imensa do mercado financeiro e político. Agora enfrenta imensa desconfiança do mercado e dos empresários”, afirma Aragão. “A presidente tomará posse sob a desconfiança de metade do país. Ela precisará ter muita habilidade. A grande questão é a economia. Não foi dito concretamente que rumo o Brasil tomará”, diz Marco Antonio Carvalho Teixeira, da FGV. “O desafio é desarmar os espíritos.”
Os primeiros desgastes do último mandato
Previsões e especulações a respeito dos novos dilemas de Dilma Rousseff
Mal foi reeleita e a presidente Dilma Rousseff já enfrenta os embates iniciais com a oposição, que mostra que não dará trégua, e os primeiros desgastes com o problemático aliado PMDB. Os tucanos já articulam um movimento para impedir que os petistas indiquem o próximo presidente da Câmara. Como não tem força suficiente para eleger um tucano para o posto, a ideia no PSDB é montar um grande bloco em parceria com o PSB e apoiar algum dissidente.
Sem um aliado à frente da Câmara, a presidente começaria o segundo mandato na defensiva e com dificuldade de tirar seus projetos do papel. O governo já sentiu que corria risco no Congresso quando os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Henrique Eduardo Alves, voltaram do recesso eleitoral criticando a proposta de fazer um plebiscito para a reforma política. No campo econômico, a presidente vive um dilema: a escolha do novo ministro da Fazenda. O nome apontará o caminho a ser seguido.
Agradar ao mercado e demonstrar disposição para tomar medidas amargas para conter a inflação? Neste caso, o mais cotado é um banqueiro ou alguém do setor privado. Mas muitos petistas questionariam a coerência de uma candidata que passou a campanha criticando os banqueiros. Outra opção seria um economista do partido. Mas o mercado entenderia que não haverá mudança na atual política econômica e reagiria mal. Há muitas dúvidas, mas o certo é que Guido Mantega vai embora.