Uma crise pessoal de Bono serviu de inspiração para o próximo álbum da banda
Os últimos três anos testaram a unidade do U2 de várias maneiras, das fortes críticas que a banda recebeu por dar o disco Songs of Innocence (2014) a todos os usuários do iTunes ao grave acidente de bicicleta sofrido por Bono, que o deixou com diversos ossos fraturados e o braço esquerdo esfacelado. Mas esses reveses não se comparam a outra crise que o vocalista enfrentou no ano passado. “Ele teve um encontro com a mortalidade”, diz The Edge, escolhendo as palavras com cuidado (a banda não entra em detalhes sobre a questão). “Definitivamente passou por um momento sério, que o fez refletir sobre muitas coisas.”
O episódio levou a banda a repensar o álbum Songs of Experience, previsto para 1º de dezembro e espécie de “irmão” de Songs of Innocence, no qual trabalhava havia mais de dois anos. O LP tem menos da produção enxuta que definiu Innocence, e favorece uma formula mais clássica para o U2: rocks baseados em guitarras propulsoras e baladas introspectivas. Segundo The Edge, “no fundo, Bono estava pensando: ‘Se eu não estiver mais aqui, o que gostaria de deixar para trás?’” Bono acrescenta: “Queria que as pessoas ao meu redor e que amo soubessem exatamente o que sinto. Então, muitas das músicas são mais ou menos como cartas – cartas para a [minha esposa] Ali, cartas para meus filhos e filhas.”
O vocalista cita mais um motivo para o trabalho ter sido adiado: política. “Pela primeira vez em muitos anos, talvez em nossa existência como banda, o arco moral do Universo, como Martin Luther King costumava chamar, não estava pendendo na direção da equidade, da igualdade e da justiça para todos”, afirma. Depois da eleição de Donald Trump, em novembro de 2016, algumas músicas precisaram ser retrabalhadas. A faixa “The Blackout” passou da temática de “apocalipse pessoal”, como diz Bono, para uma narrativa de “distopia política”. Paralelamente, ele compôs a assombrosa “Summer of Love” depois de ver uma matéria na CNN sobre um homem em Aleppo, na Síria, que continuava cuidando de seu jardim mesmo estando no meio de uma guerra brutal. “Bono ficou realmente inspirado pela resistência dele”, conta The Edge.
Embora o grupo tenha evitado declarações abertamente políticas nos últimos anos, o vocalista diz que as coisas mudaram. “Sempre acreditei em trabalhar como um ativista antipobreza, mas essa não é uma questão de direita ou esquerda. Há um intimidador no púlpito e o silêncio não é uma opção”, afirma o cantor.
O U2 trabalhou com uma equipe cambiante de produtores durante o processo de mais de três anos, incluindo Jacknife Lee, Andy Barlow, Ryan Tedder, Jolyon Thomas e Steve Lillywhite. Cada um foi chamado para um propósito específico, diz The Edge, passando pelo tato de Lillywhite para navegar pelos arranjos da banda ao “fascínio pela produção do hip-hop” de Lee. Embora a equipe imensa possa sugerir um exagero, a banda estava tentando ao máximo capturar a energia direta dos shows (que, inclusive, os brasileiros poderão ver de perto em outubro, em quarto apresentações em São Paulo). Bono se lembra de um momento chave, quando o U2 fez uma pausa nas gravações, reuniu-se em seu espaço de ensaio e tocou as músicas ao vivo. “Conseguimos tirar as camadas sonoras até chegar ao essencial, sem nenhum truque de estúdio, para ver o que realmente tínhamos”, conta. “Aprendemos muito sobre as faixas e isso ajudou na coesão.”
Andar no limite entre o U2 antigo e o rock moderno foi um grande desafio. “Precisamos garantir que sejamos parte de um debate atual na cultura musical em termos de produção, composição e estrutura melódica”, afirma The Edge. Às vezes, a banda gravava versões vintage e modernizadas da mesma faixa antes de tomar uma decisão. “Não queremos ser vistos como – e não queremos soar como – um grupo veterano desatento ao que existe na cultura atual”, diz o guitarrista. “É um equilíbrio.”