Pelos ares cult que a atração ganhou enquanto envelhecia, a Geração YouTube talvez saiba, mas não custa relembrar: não existia nada tão bom, engraçado e divertido para a família brasileira nos domingos como assistir a Os Trapalhões na Globo - ainda que Silvio Santos fosse o Rei do Domingo naqueles distantes anos (o humorístico viveu até 1996). Nem nada tão unificador. O tema de abertura do programa estava para a felicidade assim como o do Fantástico, por mais que mude, está para a depressão de segunda-feira. Didi Mocó à frente - quer dizer, Antônio Renato Aragão -, o grupo reunia talentos máximos como Dedé Santana (Manfried Sant'Anna), o icônico Mussum (Antônio Carlos Bernardes Gomes) e Zacarias (Mauro Faccio Gonçalves). E em torno deles reuniam-se a madame, a doméstica, o presidente, o metalúrgico, o poeta, o analfabeto, todo mundo que possuía em casa, ou na rua, um aparelho de televisão. Todos se transformavam na entidade "ô da poltrona!", alegórico bordão do mestre.
Se ali ele era sempre Didi Mocó, vulgo para o quase nobre Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, palhaço-chefe de um circo eletrônico freqüentado assiduamente por milhões e milhões todas as semanas, líder natural de uma trupe de saltimbancos 100% brasilis transmitidos a toda nação, viveu nos cinemas do vagabundo Bonga ao pseudocovarde Cinderelo, passando por Pilo e, claro, todos os Zés - Zé Cação, Zé Grilo e Zé Galinha, entre outros. Na pele de qualquer uma de suas personas - "Didi é meu alter ego", Didi, digo, Aragão, desfaz-se - ele sacaneava quase ingenuamente negros, gays, gordos, feios e nordestinos, para o horror destes monitorados anos 2000. E às vezes até pitava uma bituquinha de cigarro industrializado (como o faz Bonga) numa época em que o politicamente bacana era fazer o povo rir. Com o corpo treinado, ferramenta tão fundamental quanto as gravatas com desenhos toscos de mulheres nuas que acompanhavam os ternos de corte extragrande que usava, fazia acrobacias, malabarismos, dava saltos mortais e driblava qualquer concorrência naqueles domingos verdadeiramente legais.
Trapalhão mais bem-sucedido entre os quatro, Didi - Meu Deus! Renato Aragão! - insiste em buscar o amor das crianças com sua Turma do Didi, da qual faz parte o companheiro Dedé, e com os bem-sucedidos filmes que protagoniza com a filha temporã, Livian - hoje somam-se quase 50 obras de valor indiscutível para a cinematografia nacional. Mas não há mais, ao que parece, espaço nobre para o verdadeiro palhaço eletrônico no humor brasileiro. As gostosas naturais, os mauricinhos engraçados, os repórteres escrachados e os intelectuais politizados dominam a cena. Mas não no meu coração, onde Didi, e não Renato Aragão, reina absoluto.
É ele, Renato Aragão, de camisa azul clara por dentro das calças brancas, cinto branco e tênis de corrida da mesma cor que me recebe em sua mansão em um condomínio de luxo da Barra, no Rio. Extremamente gentil e educado, o senhor à minha frente tem o corpo ainda forte, o aperto de mão firme, mas o andar tímido e os olhos tristes. A voz que me leva em uma viagem pelas terras felizes, ou não, da infância e da adolescência, conta que na cena da ressurreição do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, quebrou o joelho "na primeira cambalhota", e fica verdadeiramente embargada e assume tons mais baixos quando fala da saudade que sente de Os Trapalhões. Apontando para a farta mesa de frios, salgados, pães e acepipes, posta ao lado da enorme piscina, oferece: "Antes de começar a entrevista, come aí um engasga-gato para deixar o bucho feliz". Difícil me conter e não confessar o inconfessável: "Sou seu fã, Didi". "Ô meu querido, que bom. Você me deixa muito feliz, mas eu sou o Renato", e sorri um dos únicos sorrisos que se formariam em seu cansado rosto naquelas horas em que falamos.
Comparando o senhor com seu maior personagem, Didi Mocó...
Senhor, não, por favor. É "você".
Pessoalmente você parece uma pessoa triste. E o Didi é alegre.
Eu não sou triste. Sou comportado, preocupado e respeitador, antes de tudo. Um cidadão comum. E tímido, sou um cara muito tímido. As pessoas, às vezes, as crianças, que não têm muito discernimento, mas têm muita sensibilidade, acham que o Renato Aragão é o Didi, e esperam encontrá-lo derrubando uma banca de jornal, correndo desastrado por aí, mergulhando de roupa na piscina. Mas eu sou somente um pai de família comportado e sem graça.
Se acha mesmo um cara sem graça?
Pessoalmente, sim.
Mas eu vejo você falando e me dá vontade de rir.
Vou te contar por quê: você tem a referência do Didi. E por mais que você seja instruído, por mais que tenha cultura, não desassocia o Didi do Renato Aragão.
Isso te incomoda?
De jeito nenhum. No começo, eu sentia uma certa rejeição a isso. "Peraí, eu sou o Renato!" Mas foi por muito pouco tempo. O Didi atropelou o Renato Aragão.
Demorou para você aceitar o Didi Mocó?
Eu o compreendi, não o aceitei. Não tinha como não o compreender. Um personagem maravilhoso, como é que eu podia rejeitar meu próprio personagem? E eu vendo na televisão o Didi fazendo aquelas coisas. Aquilo não sou eu. Porque eu, em sã consciência, não faria aquelas merdas que o Didi faz, não seria porra-louca daquele jeito. Acendeu a luz do refletor, eu viro outra pessoa.
Você está com 71 anos?
Sabe que eu não sei? Não sei que idade eu tenho. Depende do dia que eu acordo. Tem dia que eu acordo com 90 anos, tem dia que eu acordo com 15. Tento o mais que posso fugir da idade. Talvez ela me alcance um dia, mas não vou deixar.
O que te faz rir de verdade?
Do que eu rio, mesmo, é de palhaço de circo, o autêntico. Aquele palhaço tradicional mesmo, que escorrega, sabe? Aí, eu me desprendo, me entrego.
Você ainda vai ao circo?
Fui muito às sessões desses grandes circos quando eu trabalhava com Os Trapalhões. Não resistia e ficava vendo por trás da cortina. E aqueles palhaços estavam tão distantes, tão acima de mim. Eu me emocionava muito. O palhaço de circo me fazia rir demais. E chorar também. Hoje em dia não precisa muita coisa pra chorar.
Você tem netos de mais de 20 anos de idade, filhos na casa dos 40. Como é, na sua idade, ser pai de uma garotinha?
Recomendo. Quando a Livinha nasceu, eu tinha um netinho de 5 anos mais ou menos. Aí, foram apresentar ela a ele - "Olha aqui a sua tia." E ele ficou meio confuso com aquela história - "Ela é minha tia? Mas ela não vai mandar em mim não, né?" Foi um confl ito de gerações. Ser pai nessa idade, pra mim particularmente, é maravilhoso. Porque a tua idade já diz que você chegou a uma espécie de aposentadoria, mas a Livinha me fez reviver, remoçar. Tive de começar tudo de novo, fralda, educação, brinquedo. Tudo aquilo que um pai novo faz com seu primeiro filho. Então, isso me dá uma energia muito grande, uma vitalidade. Ela traz três crianças da idade dela pra passar a noite aqui em casa, é muito bom, vou me sentindo mais novo.
Sua infância foi feliz?
Minha infância foi muito boa, não foi sofrida. Na cidade de Sobral, no interior do Ceará, fiquei mais ou menos de 1935 até 1940 e poucos, e durante uns dois anos não havia luz elétrica. Tinha uma vida muito boa, mas convivi ao lado de muita pobreza, que sentia na pele de criança, mas sabia que eu não tinha aquela fome. Adorava ficar com eles, naquelas casinhas de sapê, dava bola de futebol pra eles. Lembro que um dia um amigo disse: "Vou pra casa almoçar" e eu fui junto. O pai dele era o que a gente chamava de carreteiro, ganhava uns trocados botando as malas na cabeça e levando para a casa a pé da estação de trem, porque não tinha transporte. Aí, eu fui na casa dele, e ele: "Eu vou almoçar". O pai dele entrou e tinha na mesa um copo separado com água e ração de raspadeira. Ele misturou, pegou duas bananas e comeu com casca e tudo. Foi o almoço. E eu fiquei olhando para aquilo. Criança não dá muita bola pra isso, mas aquilo ficou em mim até hoje.
Como eram seus pais?
Meu pai era um gênio. Rígido. Era muito sério. Foi poeta, era industrial. Escreveu muitos livros. Escreveu uma coluna numa revista, de Sobral para o Rio de Janeiro. Mas ele perdeu a visão. Ele, ávido por leitura, lia jornal velho na lamparina, e foi assim que queimou o nervo ótico de tanto ler. Porque lá não tinha informação nenhuma. Ele foi fundador, professor e diretor de um colégio sem nunca ter assistido a uma aula na vida. Autodidata. Meu pai é uma referência muito grande para mim. Minha mãe era professora diplomada, tinha uma cultura. Tem-se, em geral, a idéia de que você chegou ao Rio de Janeiro, vindo do Ceará, para tentar a sorte apenas com uma trouxinha nas costas. O estereótipo do nordestino que saiu da miséria e venceu na cidade grande. Eu deixo que tenham essa imagem, nunca revelo que fui de classe média alta. Nunca desdigo esse estereótipo porque isso é muito bonito também. Muita gente pensa até que eu nasci no circo, que sempre fui de circo. Não digo que é verdade, mas também não crio essa ilusão. Eu já vim para o Rio contratado para trabalhar na televisão.
Como nasceu o Didi Mocó?
O Didi não nasceu comigo, como muitos pensam. O Didi foi uma coincidência muito grande. Eu tinha um sonho de ser comediante como o Oscarito, que foi maravilhoso, minha referência multinacional. Mas como eu iria ser um Oscarito num lugar onde não tinha televisão, não tinha rádio, e o preconceito com quem fosse de teatro era enorme? Ou era almofadinha, como eles chamavam, ou era bicha ou era marginal. Quando estava no 5º ano de Direito, falei: "Vou tirar esse sonho da minha cabeça". Aí, veio a TV Ceará, e pensei: "Como eu vou entrar lá? Não sou engraçado, não tenho a mínima graça. Sou uma pessoa muito tímida, vou chegar lá e dizer que quero ser comediante?" Mas havia um curso de realizador em que você acumulava as funções de direção, produção e redação. Eram 25 candidatos concorrendo a cinco vagas, eu fiz e passei. Quando o cara me chamou pra ver se eu estava aprovado, tinha as listas dos aprovados e dos reprovados. Eu, claro, fui na dos reprovados, mas não estava lá meu nome. E o cara: "Então procure entre os aprovadas". E eu estava lá, em primeiro lugar. "Sua mesa é esta, sua sala é esta e você vai escrever a programação humorística de inauguração da TV Ceará." E eu respondi: "Pô, eu não sou nada, sou um blefe. Nunca fiz isso na vida". E ele sabia disso e disse: "Você não é viciado em nada, não veio do rádio. Eu vi sua prova..." - eu havia escrito na prova uma comédia, uma sitcom - "...é isso o que eu quero, cinema e televisão, é imagem, não é voz." E eu: "Mas, rapaz, eu não sou nada disso. Eu tenho uma prova na faculdade hoje, não posso escrever". Cheguei em casa pensando o que é que eu iria fazer. Comecei a escrever sobre a cidade, "a televisão chegou", e aí vai, "passageiro Renato", eu pensando num nome... De repente, veio direto no papel: Didi. Acho que já estava escrito antes de eu escrever. Ali o Didi nasceu.
Você lê esta entrevista na íntegra na edição 27, dezembro/2008