Marcelo Falcão e Xandão, vocalista e guitarrista d’O Rappa, gostam de explicar tudo nos mínimos detalhes. Uma pergunta simples, direta, pode ganhar uma resposta de 20 minutos, passando por passado, presente e futuro. Tudo que tem relação com a banda é esmiuçado com precisão – e talvez seja esse cuidado com cada aspecto que envolve o grupo que tenha acendido uma rusga entre os dois. Nos 24 meses em que o quarteto ficou “sem se falar direito”, como descreve o baixista Lauro Farias, o conflito que quase separou a banda foi mais latente entre Falcão e Xandão. “Eu e ele tomamos muito as dores das coisas d’O Rappa. E acabamos descobrindo que algumas pessoas da equipe [que acompanhava a banda] estavam fazendo o que queriam, se aproveitando desse momento que nós estávamos meio que sem se falar”, relata o cantor. “A gente se estressou por causa de outras pessoas, não por causa de nós mesmos. Na minha cabeça, as coisas só voltariam a ser legais se eu e o Xandão voltássemos a ser amigos.”
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Foi uma conversa entre os dois músicos – e o longo período distante dos palcos e dos estúdios – que reaqueceu a química entre o quarteto. “A gente nunca tinha parado tanto tempo. Até os problemas entre nós, de convivência no dia a dia, eram também pelo fato de não tirarmos férias, de não termos tempo pra gente”, acredita Marcelo Lobato, que cuida dos teclados e das múltiplas camadas de efeitos que permeiam o som d’O Rappa. “Estávamos havia 15, 16 anos sem nunca ter parado mais do que um mês ou dois.”
Passados os desentendimentos, O Rappa retornou ao estúdio para criar Nunca Tem Fim..., disco que celebra a mistura de elementos que faz do som da banda algo único dentro da música nacional. Com produção de Tom Sabóia – que também participou do último disco de estúdio, 7 Vezes (2008) –, o trabalho é marcado pela clareza da profusão de sons presente na trajetória do grupo, mantendo a tradição das composições de cunho social.
“Na minha concepção, é o melhor disco que O Rappa já fez: a qualidade sonora e as letras diretas, com uma demonstração de sincretismo, mas sem falar de religião, sempre falando da fé”, afirma Falcão. Segundo ele, Nunca Tem Fim... chegou ao mercado neste mês já como disco de ouro depois do período de pré-venda (os números não foram confirmados pela gravadora). “Acho que no texto a gente fala de uma maneira mais sofisticada, para que as pessoas possam pensar mais. É aquela história, para você não ficar subestimando a inteligência do ouvinte”, completa Lobato.
As letras passam por todos da banda – “Todo mundo se sente à vontade para dar um pitaco”, conta Falcão –, mas param especialmente no frontman. Segundo ele, a ideia “tem que ser foda” e agradar a todos para entrar no disco. “Nós somos quatro. O que três decidirem, está decidido. O que perde tem que ir em frente”, ele afirma. Entre os parceiros de composição neste álbum estão Vinicius Falcão, irmão do vocalista, Vê Domingos e Lula Queiroga (Lenine também foi convidado, mas não pôde participar).
O sexto disco de estúdio da banda – e terceiro sem a presença do ex-baterista Marcelo Yuka – chega com um ar de superação. Ainda que parte das letras siga a linha de denúncia, há um positivismo no que Falcão canta, da mesma maneira que permaneceu uma atitude otimista quando Yuka deixou o grupo: ele era o responsável por boa parte dos versos até então e, por causa disso, muito se especulou sobre o fim d’O Rappa depois que ele ficou paraplégico após ser atingido por um tiro.
Para Falcão, enfrentar dificuldades, e manter atitudes positivas diante delas, faz parte do DNA d’O Rappa. “Se você não tiver pelo menos uma dose de felicidade pra ultrapassar um momento difícil, não vai conseguir passar por ele. Você vai ficando no caminho, e ficar no caminho é triste pra caramba”, ele teoriza. Ainda há quem advogue a favor da antiga formação, com Yuka. E, embora Falcão não cite o nome do ex-companheiro, ele faz questão de, em mais de uma ocasião, enfatizar a longevidade da existência d’O Rappa como um quarteto. “A gente fica feliz com qualquer opinião de quem gosta de outros discos. Beleza, pelo menos estão falando do nosso disco atual. Mas essa formação existe há mais tempo que qualquer outra que a banda já teve. Acreditamos mesmo na música que a gente faz.”
Sendo vocalista – e tendo tido relacionamentos com mulheres famosas, como Deborah Secco e Isabelli Fontana –, Falcão é o rosto d’O Rappa. Mas a música é um equilíbrio entre cada um dos homens que formam a banda: do baixo marcante de Lauro, passando pela guitarra que vai da levada reggae a solos rasgados de Xandão, até a criatividade e a curiosidade permanente de Lobato. Nenhum deles parece se incomodar com a fama proeminente do homem de frente do grupo. “Quando fomos a Chicago, parei numa loja da Apple, veio um norte-americano e perguntou: ‘Você não é d’O Rappa’?”, diz Xandão, aos risos. “Se fosse o Falcão eu entenderia, mas eu? A maioria das pessoas ainda me chama de Lobato.” A passagem por Chicago foi para tocar no festival Lollapalooza 2012, algo do que eles falam com orgulho – ainda que tenham tido de pagar pelas despesas, como passagens de avião, para se apresentar no evento.
É na estrada, aliás, que o Rappa enxerga melhor sua identidade. “A gente é bom de disco, mas acho que ficamos mil vezes melhores quando estamos em cima do palco, tocando”, diz Falcão. Se nas palavras a banda mantém a carga de debate social, ao vivo, a missão é outra. “A pessoa quer se divertir, ela não quer ficar num discurso político”, acredita Xandão. “Quem vai ao show é porque quer ver o show.”
“O Rappa até ficou estigmatizado por ser uma banda que levanta essa bandeira do social”, o guitarrista continua. “De certa forma, isso até nos afastou de outras bandas. Nós não queríamos essa bandeira, o que a gente queria é que outros artistas se envolvessem com isso. Essa bandeira não é uma coisa proposital, e nem deve ser.”
Chegando a duas décadas de existência, O Rappa de Falcão, Xandão, Lauro e Lobato vislumbra um futuro sem planos fechados. A única certeza é de que, agora, qualquer tipo de atrito ficou para trás, e a meta é seguir em frente. “Tinha uma missão pra gente”, finaliza Falcão. “Eu vi que tinha uma missão da qual a gente não deveria desistir.”