Escoltado por estrelas da MPB, Lanny Gordin larga a psicodelia e cria disco jazzístico
Um dia, Lanny Gordin conseguiu se desamarrar de sua cama no sanatório onde estava internado. Levantou-se e saiu pelos leitos, libertando todos os seus companheiros de quarto. Foi um dos dias de maior festa naquela enfermaria.
Lanny é o maior dos nossos guitarristas - competindo apenas com o mutante Sérgio Dias e, talvez, mais um ou dois - e a cena (real) descrita acima diz um tanto sobre sua arte libertária. Tocou nos discos tropicalistas e/ou pós-tropicalistas de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé e Gal Costa - de quem foi arranjador e diretor musical até o antológico show Fa-Tal, em 1971. Sua guitarra fez escola e, de tão particular, pode ser reconhecida sem precisar de ficha técnica.
Diagnosticado esquizofrênico, ficou internado por quatro temporadas nos últimos trinta e poucos anos e diz que chegou a tomar eletrochoques. "Tenho esquizofrenia, desarranjo mental. Minha realidade é outra. Vivo no meu mundo muito particular, todo de paz e amor. Parece que estou no céu, no nirvana", diz sorrindo, mas com alguma dificuldade para pronunciar certas sílabas por conta dos remédios que toma para controlar a doença - se é que podemos chamá-la assim. "Alguns médicos acham que a esquizofrenia é uma doença. Outros dizem que é um patamar elevado da existência. Um dos meus psicoterapeutas me garantiu que tenho esquizofrenia como todo ser humano, só que com uma dose um pouco maior", equaciona.
Aos 54 anos, Lanny se prepara para lançar outro álbum solo. "Fui internado quatro vezes no sanatório e agora estou voltando com novidades. Criei um novo estilo a caminho da música pura. Eu chamo de 'o som dos anjos'."
Dirigido por Péricles Cavalcanti, Lanny Duos chega às lojas neste ano, pela Universal. Em cada faixa, o guitarrista recebe um convidado - fãs ardorosos do anfitrião: Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Chico César, Edgard Scandurra, Fernanda Takai, Gal Costa, Gilberto Gil, Jards Macalé, Junio Barreto, Max de Castro, Péricles Cavalcanti, Rodrigo Amarante, Vanessa da Mata e Zeca Baleiro.
Gravado de junho de 2005 a março de 2006, o disco dá mostra das dimensões da genialidade de Lanny como músico. O primeiro passo no estúdio era fazer uma sessão de aquecimento, em que cada artista, cantando, apresentava ao guitarrista a música que havia escolhido para gravar (o repertório foi todo definido pelos próprios convidados). Lanny ouvia, pegava sua guitarra e improvisava uma harmonia sobre o tema. Meia hora depois, faziam três ou quatro takes e escolhiam o melhor - tarefa difícil, já que todos eram absolutamente diferentes entre si. Eleito um, Lanny gravava o baixo e outra guitarra por cima. "Procurei juntar harmonia e solo como uma coisa só", define.
Sendo assim, como se explica essa demora de nove meses? "Dependíamos das disponibilidades. Tivemos que esperar eles estarem em São Paulo, pois não tínhamos dinheiro para trazer ninguém. Gil, por exemplo, aproveitou um compromisso de ministro e fez a faixa dele", explica Cavalcanti. Foi ele quem recrutou o elenco estelar de Lanny Duos. "Tratando-se de Lanny, todo mundo topou na hora. Poderíamos ter tido o triplo de artistas, mas uma hora o disco tinha que acabar", diz.
O repertório foge do previsível. Gil recuperou a obscura "Abra o Olho", lançada por ele no disco Gilberto Gil ao Vivo, de 1974. Adriana Calcanhotto escolheu "Me Dê Motivo", canção de fossa de Sullivan & Massadas e maior hit popular de Tim Maia nos anos 80. Rodrigo Amarante quis cantar "Mucuripe", clássico de Fagner e Belchior já registrado por Elis Regina e Roberto Carlos, mas não pôde: a música já tinha sido escolhida (e gravada) por Fernanda Takai. Amarante mostrou uma sua, nova - e foi ela que ficou. Outra inédita é de Vanessa da Mata. A cantora trouxe letra e melodia quase prontas. Cantou algumas vezes e terminou a canção com Lanny improvisando a harmonia definitiva. Outra sessão de improviso aconteceu num duelo com Edgard Scandurra. "EL Blues" foi composta pelos dois guitarristas juntos e é a única em que Lanny usa pedais de distorção: um wah-wah. Nas outras, seu instrumento aparece cru, natural. E invariavelmente livre e genial.