Uma série envolvendo o tantra, a jornada de criação artística em família e a nova carreira como mentora de autoconhecimento: um dia na vida de Bruna Lombardi
A fachada da casa, em um bairro nobre de São Paulo, não tem nada de ostensiva – é quase como se fosse de propósito, como que para esconder um pequeno refúgio em meio à correria da capital. As escadas levam a uma propriedade com um vasto jardim, no qual o idoso labrador Tango descansa, sem se incomodar com a visita. Adiante está a sala do lar paulistano de Bruna Lombardi, de 65 anos, um espaço iluminado pela luz natural graças às grandes janelas de vidro. Há um dragão chinês pendurado em um canto, uma enorme escultura em madeira de uma cobra em outro, pedras, tecidos – um ambiente que reflete o amor dela pelos diferentes campos da criação artística.
“A gente estava fazendo um som ontem à noite”, Bruna diz enquanto tira do sofá um hang drum. Kim Riccelli, fruto do casamento de mais de 30 anos dela com Carlos Alberto Riccelli, ama instrumentos de percussão. Mas a família não se reúne apenas para ouvir/fazer música: os três estão por trás da série A Vida Secreta dos Casais, que estreou este mês na HBO. Criada por Bruna e Kim, escrita por Bruna, dirigida por Carlos, Kim e Fabinho Mendonça, e ainda com atuações do casal, a série foi feita em família, porém não tem nada de familiar: mistura sexo, corrupção na política e assassinato com suspense e muitas imagens picantes, como costuma ser nas produções dramáticas do canal pago.
O começo da vida profissional de Bruna foi como modelo, nos anos 1970; não demorou para que ela se tornasse nacionalmente conhecida como atriz. Mas antes de estrear na televisão (na novela Sem Lenço, sem Documento, 1977, Globo) a artista já tinha lançado o primeiro livro de poesias (No Ritmo Dessa Festa, 1976). Foi celebrada na dramaturgia; por causa da escrita, acabou amiga de gigantes como Mario Quintana; sofreu escrutínio por ter posado nua na Playboy; fez sucesso como entrevistadora no programa Gente de Expressão, da Rede Manchete, em meados dos anos 1990; e, então, no auge, resolveu que era hora de respirar outras atmosferas, mudando-se com a família para Los Angeles a fim de estudar roteiro (continua, até hoje, a se dividir entre os Estados Unidos e o Brasil). Agora, além de estrear na criação de uma série, acumula mais uma função: a de orientadora pessoal e de “autoconhecimento” – ela não gosta do termo “autoajuda” –, encabeçando o portal online Rede Felicidade e eventos presenciais denominados Jornada de Conhecimento.
Bruna fica feliz em saber que sua interlocutora é uma xará. “Quando eu era adolescente, não existiam Brunas no Brasil”, conta. “Eu falava meu nome, era bullying direto. Ninguém conhecia. É a maior delícia da minha vida ver que tantas mães me homenagearam ou gostaram do nome, seja o que for, e botaram em tantas mulheres.”
Enquanto pássaros lá fora se fazem ouvir com clareza, a mais célebre das Brunas brasileiras senta-se para falar sobre sexo, trabalho, política e a necessidade de estar presente no agora.
Quando você teve o estalo para a criação de A Vida Secreta dos Casais?
Primeiro, existia o desejo, começou com o fato de eu ser fã de séries. Sempre fui muito ligada em roteiro – mesmo quando ainda não escrevia, sabia que seria roteirista. Sou péssima para datas, minha cabeça se embaralha toda, mas tem uns três anos que começou o projeto. Fiz muita pesquisa, porque thriller é um universo novo para mim, além da coisa do mercado financeiro, assassinato, esse universo das negociatas. Tive que pesquisar muito.
Qual é a participação do Kim e do Riccelli no processo de criação?
O Ri é o nosso primeiro leitor. O Kim e eu criamos esse mundo juntos, depois escrevi sozinha.
É uma série que também trata de política e corrupção. Acha que de alguma maneira retrata o momento atual?
Quando a gente criou A Vida Secreta dos Casais, muitas coisas ainda não estavam acontecendo no Brasil. Tanto que acabamos tirando alguns pontos da série. No começo, falávamos de impeachment, por exemplo. Pensei que as pessoas achariam que queríamos retratar a realidade.
A sua personagem, a terapeuta e sexóloga Sofia, tem um lado vidente. Você acredita nisso, em pessoas com essa clarividência?
Totalmente. Eu acho que a gente exala coisas. Se uma pessoa tem essa sensibilidade, ela pega essa energia. Acredito que existe um canal, um “channeling”, e você capta coisas.
Você é uma boa leitora de pessoas, então?
Completamente. Muito. Faz parte da minha vida, desde criança.
Há locais que, como o fictício Instituto Tantra [comandado por Sofia na série], trabalham com terapias envolvendo a sexualidade e o tantra. Em São Paulo, há um muito conhecido, o Centro Metamorfose...
[Interrompe] Nunca fui, e vou te falar o motivo: como eu tinha essa ideia muito pronta na minha cabeça, com muita coisa lúdica, fantasiosa, um lugar que não existe, eu não queria me deixar influenciar. Quando você trabalha com uma ideia original, tem coisas que você pesquisa e tem coisas que você prefere não pesquisar. Por outro lado, o Ri, o Kim e o Fabinho Mendonça usaram pessoas que já trabalham no meio. Os atores de cena são realmente instrutores do tantra. Teve o meu lado da criação, que foi completamente livre, e o lado da direção, que foi supermeticuloso e trabalhado na realidade.
Quando se ouve a palavra “tantra”, geralmente é feita a ligação com o sexo tântrico, embora o tantra seja algo muito mais amplo. Você já estudava esse universo?
Já era algo que eu estudava há muitos anos. E é isso que eu quero passar na série: a abrangência, a amplitude, a elevação do sexo. Quando você pega um mundo consumista, redutivo e tão pragmático, ele reduz o sexo a uma coisa trivial, muito pequena, infinitamente mal usada. Essa série procura resgatar essa grande essência e dizer: “Olha aonde o sexo pode ir, olha que força superior, olha que poder universal”.
Para você, essa força estaria ligada diretamente ao amor? Ou o sexo casual também teria esse poder?
Eu acho que pode ter, sim. Acho que o amor dá um voo ainda mais extraordinário, mas o sexo casual pode envolver um amor casual, naquele instante. Acredito que existem inúmeras formas de amor – não precisa ser um amor duradouro, casamento. Isso é uma das convenções sociais que foram criadas pelo homem.
Esse amor romântico é uma convenção social, mas o amor intrínseco, não. A compaixão é inata do ser humano. Você resgatar o que são valores fundamentais e o que são valores adquiridos é um dos grandes caminhos do autoconhecimento. É saber o que é você de verdade e o que foi imposto como padrão, o que é uma caixinha que apresentaram e falaram “você tem que caber nessa porra dessa caixinha”.
O sexo tem um papel central na sua vida?
Na minha e na de todos, independentemente de a pessoa fazer ou não. As pessoas pensam que o sexo é apenas o ato sexual, e não é: o sexo é uma energia. Não tem a ver apenas com o ato sexual. Tem a ver com a maneira como você expande dentro de você a energia sexual.
Você costuma falar de política em entrevistas, e diz que é apartidária. Acha que é possível de fato melhorar as coisas dentro do sistema político que a gente tem hoje?
[Pausa] Eu acho que melhorar significa repensar o sistema. O que não significa falar “ah, mas, então, vamos para o socialismo”. Significa repensar todos os sistemas, porque todos eles mostraram
falência. Então, o que fazer agora? A conscientização é uma saída. Acredito em pessoas que estão trabalhando para isso, cada um como pode, ou como sabe, com novos valores, seja do ponto de vista comportamental, filosófico, artístico ou político. Até no comércio, na indústria. As grandes empresas estão repensando valores. Quando você escutaria no século 19 uma empresa dizer que quer os funcionários trabalhando felizes? Jamais! É uma mudança de valores. E é nisso que eu acredito, em uma mudança de valores, também na política. Se você olhar a história, vai ver que todas as grandes transformações vieram de mudanças de valores. Se você muda um governo, não significa nada. Por isso que não gosto da polarização política, porque são dois extremos iguais. Os opostos se tocam, sempre.
Já que estamos falando de política: foi golpe?
[Risos] Eu acho que tudo é meio golpe. Tem uma frase na série, que um dos personagens diz: “O poder não corrompe, o poder revela”. A corrupção está aí para qualquer um de nós. Eu ou você nos deixamos corromper? É revelador da pessoa que somos. O problema agora é como combater. A gente vê pessoas do bem querendo fazer a diferença, mas elas estão com as mãos amarradas.
Você se mantém otimista?
Continuo otimista. Para dizer a verdade, vejo como uma grande chance. A corrupção não é nada nova, mas uma coisa é nova: isso ser mostrado tão descaradamente e não contando uma “história do Brasil” para inglês ver. Neste momento nós estamos expurgando. O que é melhor, uma coisa ali encubada ou uma ferida expurgando? Qual é o processo de cura?
Jamais houve um período em que você não conseguia ver um lado positivo? Algo como “o ano negro da minha vida”?
Tive milhares de momentos, mas eles sempre duram muito pouco. Não teve um ano. Sabe de uma coisa diferente? Eu não rejeito esses momentos. Não rejeito minha dor, minha melancolia, minhas lágrimas. O grande problema é a aversão que a gente tem. Tipo: “Tô péssima, então vou pra balada”.
Ou: “Vou tomar um comprimido”.
Isso! Estou péssima? Vou mergulhar nisso, vou entender. É uma experiência.
Você fez ou faz terapia?
Não, nunca fiz.
Esse conhecimento todo é de...
É das bruxas da minha família! [Risos] Mas, para a série, conversei com muitos terapeutas. Isso inclusive está nos agradecimentos. Um deles foi o [psiquiatra] Rodrigo Bressan, que eu não conhecia. Uma amiga faz terapia com ele e me indicou.
O seu modo de se colocar tem muito da visão do mindfulness: estar presente e perceber que as coisas podem ser diferentes a partir da maneira como você as experiencia, ou as “recebe”. Quando você conheceu o mindfulness?
Ah, há muitos anos. Outro dia eu fiz o prefácio do livro do [Sri] Prem Baba [Amar e Ser Livre, de 2015], e falei: “Poxa, que bacana, primeira vez que faço um prefácio”. E me disseram: “Não! Você já fez do Osho!” Eu tinha esquecido completamente! Por acaso, se chama Livro dos Segredos, e agora eu estou fazendo uma série sobre segredos. Esse prefácio do Osho foi provavelmente antes do nascimento do meu filho, para você ver há quanto tempo estou nisso [de universos ligados à ideia de mindfulness].
Esse seu lado também tem a ver com o fato de seus pais terem presenciado a guerra na Europa?
Meus pais me deram uma base imensurável para o que eu sou e sinto. Quando penso nas convenções do mundo, olho para os meus pais e vejo que eles não eram nada convencionais. Realmente exerciam a liberdade de pensar, de sentir, de agir. Na minha casa, a gente nunca teve máscara. Eles terem passado pela guerra, terem trabalhado com cinema [os dois já trabalhavam com cinema na Itália, e vieram para o Brasil a convite da Companhia Cinematográfica Vera Cruz], terem tido altos e baixos... Eu ter tido uma família com dinheiro e que depois não tinha nada, sem poder pagar a escola cara na qual eu estudava, ter que me virar muito cedo... Foi uma base.
A Maria Bethânia escreveu a orelha do seu novo livro de poesias, o Clímax. Como vocês se conheceram?
Eu fiquei um tempão sem publicar poesia. Os livros esgotaram, mas décadas depois as poesias voltaram a circular, sem eu saber, na internet. Por outro lado, a Bethânia também ajudou a manter a poesia viva – da maneira magistral dela, porque é uma mulher muito exuberante, declamou poemas meus em projetos dela. Isso me fez fazer o convite. Foi muito natural.
Sua entrevista com o Jon Bon Jovi no programa Gente de Expressão [que ia ao ar nos anos 1990, na Rede Manchete] viralizou recentemente por causa da sua postura firme diante de uma cantada bastante infeliz dele. Em outra frente: algum artista da música te surpreendeu inesperada e positivamente quando gravava o programa?
Ah, vários. Fiquei muito impressionada com o Sting. Ele é muito profundo, e o trabalho dele tem raízes muito profundas. Me identifiquei demais com o discurso dele. O Richard Wright [tecladista do Pink Floyd, morto em 2008] também foi interessantíssimo. São grandes artistas, e você vê que a imagem pop deles às vezes é até reducionista. O Mick Jagger, que eu conheci outro dia, tem um lado que me deixou muito impressionada. É um homem bastante mundano, mas que tem um lado muito sábio, espiritualmente sábio, algo que eu nunca tinha visto na figura pública dele.
Talvez seja aquele aspecto que alguns artistas preferem proteger em relação à persona que mantêm publicamente.
Sim, que eles protegem com milhões de camadas, por ser algo sensível, delicado. E é difícil ser delicado neste mundo em que a gente vive.
É muitas vezes visto como defeito.
Exatamente, como uma fraqueza. A delicadeza é quase perdida. Mas acho que todo mundo tem um lado delicado. Tanto que quando você faz esse discurso, como eu tenho feito nas Jornadas de Conhecimento e nas palestras, as pessoas ficam muito tocadas. Tive muitas palestras nas quais veio gente me abraçar chorando. Não estava falando nada triste, pelo contrário, mas é porque você toca em um ponto nevrálgico que é raro a pessoa conseguir expor. As pessoas têm medo de expor a vulnerabilidade, e eu sou uma pessoa muito vulnerável, muito emocional.
Você, nesse trabalho de autoajuda...
Vamos chamar de autoconhecimento?
Autoconhecimento. Das Jornadas, da Rede Felicidade. É um caminho no qual pretende investir?
É um caminho que ficou inevitável. Eu não tinha previsto. Para o círculo mais próximo de pessoas ao meu redor, era muito claro, já era um exercício que eu fazia há bastante tempo. Ampliar isso para mais gente aconteceu por acaso, por causa das redes sociais, da resposta que tive nelas às coisas que eu posto.
Está sentindo um novo tipo de realização com esse trabalho?
Olha, a coisa da realização eu sinto na entrega, e não no reconhecimento. É gostoso, é bacana, mas não é dentro do que eu possa saber, porque assim: eu posso estar falando alguma coisa e você pode estar sentindo algo bacana, mas pode também não estar. O que eu tenho para dizer vou continuar dizendo. O reconhecimento é legal, mas está naquele lugar. Para mim, a satisfação é a entrega
Consegue apontar algo que se transformou em você a partir da amizade com o Mario Quintana?
Ah [pausa]. Ah, sem dúvida. Outro dia, eu estava falando para uma pessoa sobre todos os privilégios que eu tive, de conhecer tanta gente legal e ter tido momentos com pessoas que eram realmente meus ídolos: a Clarice Lispector, o Mario, o Carlos Drummond de Andrade, com quem eu troquei cartas, o Tom Jobim. Momentos íntimos, momentos únicos. Daí, essa pessoa falou: “Mas a diferença é que você prestou atenção, porque você era uma garota entrando nos 20 anos, e conheceu o Mario Quintana, de 80, você poderia não estar nem aí”. O fato de eu ter dado valor foi transformador, porque ampliou sentimentos dentro de mim. E outra coisa que faz parte da entrega: algo termina e eu sinto que foi missão cumprida. Mario foi embora (escrevi um poema chamado “O Anjo” sobre a partida dele, no Clímax), e senti que foi missão cumprida, no sentido de que não tenho isso de “que pena que não falei, que pena que não abracei”. Não tenho isso com ninguém.
Você acha que o quadro do Agildo Ribeiro no programa O Planeta dos Homens ajudou a impulsionar seu nome no Brasil?
Não sei dizer. Mas que ele é marcante e dura até hoje, sim, e isso me impressiona. Todo mundo lembra.
Voltar para a TV aberta é uma opção?
Estou tão ocupada neste momento... Mas eu me dou muito bem com a TV Globo. Meus filmes foram todos coproduzidos com a Globo, eles sempre me deram o melhor tratamento possível. Nunca digo nunca para nada.
A internet traz uma dualidade: vemos movimentos que antes eram vistos como de minorias ganhando força, como acontece hoje com o feminismo, ao passo que assistimos a ondas de ódio e de apoio a movimentos excludentes, que, por exemplo, ajudaram a levar Donald Trump ao poder. Como você vê essa dualidade?
Vejo da seguinte maneira: se você quer e aceita a diversidade e a liberdade, tem que saber que existem “Trumps”. Não dá pra dizer “quero a liberdade, a multiplicidade, a diversidade, mas não quero aquilo”. Eu também não quero uma onda de ultradireita, mas tenho que saber que ela existe. Se quero o bem, tenho que saber que o mal existe. Sempre existe o conflito. A regra da vida é o conflito, a regra da dramaturgia é o conflito. Isso não quer dizer que você vai apoiar, nem dar força, você vai combater da sua maneira.
Você diz que acredita em Deus, embora não tenha religião. Há alguns anos falou sobre não ter medo da morte, citando uma cena em que quase sofreu um acidente com um cavalo, quando interpretou Diadorim na minissérie Grande Sertão: Veredas, da Globo, em 1985. A sua relação com a finitude continua a mesma?
Continua a mesma. Recentemente, fui fazer aquele bungee jump, e foi filmado. Você precisa ver meu pulo! Zero de tensão, zero de medo. Antes de pular, claro, eu estava com medo. Era uma montanha nos Estados Unidos equivalente a um prédio de 30 andares, quem disser que olhar lá de cima não dá medo está mentindo. Então, a minha relação com a finitude é exatamente a mesma.
Para muita gente, à medida que o tempo passa, essa relação tende a se transformar.
É porque eu não acredito no tempo, não na maneira como você fala. Não é assim que eu vejo. Eu estudo física quântica, é outra cabeça. Não consigo ver assim.
Dá para explicar em poucas palavras o que é a visão do tempo para alguém que estuda física quântica?
Não sei se é possível, vou tentar. O tempo é uma força enorme no Universo. Existem milhões de planos paralelos, a gente não sabe... A não prova disso cria uma infinidade de possibilidades – não tem nada a ver com “acredito em reencarnação, acredito naquilo”. Não importa no que você acredita, importa você entender que tudo é uma energia. Eu, aqui, agora, estou neste corpo, nesta casa, cercada das coisas que me fazem bem; mas eu sou energia, sou algo que daqui a pouco não vai estar aqui, nem essas coisas estarão. Essa brevidade, essa impermanência, não me assusta.