A vitória de Donald Trump representa a agonia da classe média norte-americana, que agora se vê como a “nova minoria”. E o que isso representa para o mundo?
A perspectiva, para uma grande parte do mundo, é a de que os Estados Unidos mudem para pior: se tornem mais xenófobos, mais machistas, mais intolerantes. Mas há quem acredite em outro lado. Uma parcela da população propaga uma “América” melhor, um país grandioso novamente. No mar de rumores, a única certeza – até agora – é a de que o republicano Donald Trump calou a boca de analistas e de jornalistas do mundo inteiro com a vitória sobre a democrata Hillary Clinton, com quem disputou o posto de 45º presidente dos Estados Unidos, nas eleições de novembro de 2016.
Os silenciados por Trump apostaram em sua derrota, primeiro por julgarem improvável que um bilionário sem experiência política e com um discurso explosivo fosse capaz de convencer parte considerável do eleitorado norte-americano. Outro fator – mais grave – é que eles, os estudiosos do mundo, pareceram estar desconectados da realidade.
“Estamos vivendo uma espécie de falência dos institutos de análise em geral. Com raras exceções, ninguém esperava a vitória de Trump. E isso ocorre porque o mundo está em transformação muito rápida e porque os estudiosos não conseguiram ler os anseios da sociedade”, explica Pedro Costa Junior, professor da ESPM.
Dentre as exceções, está o documentarista norte-americano Michael Moore. Quatro meses antes das eleições, em julho, Moore publicou um artigo no portal Huffington Post listando cinco razões pelas quais o republicano seria eleito. Para o cineasta, quem não enxergasse aqueles argumentos como possibilidades reais estaria “vivendo em uma bolha”. Ele estava certo.
“Boa parte da imprensa norte-americana parecia querer acreditar na derrota de Trump”, analisa Reginaldo Moraes, professor de ciência política e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre Estados Unidos da Unicamp. “Por querer acreditar nisso, a mídia transformou esse desejo em uma realidade paralela, que não tinha nada a ver. Até porque a disputa [entre a democrata e o republicano] foi acirrada desde o começo.”
Em 8 de novembro, dia da eleição, o site do jornal The New York Times publicou, baseando- se em pesquisas, que Hillary teria 85% de chances de vencer. Após o resultado, no dia 9, Jim Rutenberg, crítico de mídia do NYT, declarou, em artigo publicado no próprio jornal, que a mídia “não viu o que acontecia ao seu redor” e que fracassou em não capturar “a raiva de grande parte do eleitorado norte-americano que se sente deixado para trás”.
Trump ouviu esse eleitorado. Notou a raiva acumulada e entendeu o que queria a classe operária branca dos Estados Unidos (a chamada white working class, ou WWC), considerada por muitos analistas a nova “minoria” do país. No livro The New Minority: White Working Class Politics in an Age of Immigration and Inequality (Oxford University Press, 2016; “A Nova Minoria: A Política da Classe Branca Operária em uma Era de Imigração e Desigualdade”, em livre tradução), o professor Justin Gest, da George Mason University, detalha que a classe branca trabalhadora está em todo o território, porém regiões pós-industriais ao largo do alto meio-oeste e
dos Grandes Lagos concentram boa parte desse grupo, espalhado ainda pelos chamados “swing states”, aqueles que não têm maioria definida pendendo para nenhum do dois partidos principais, Republicano e Democrata (Pensilvânia, Ohio, Michigan e Wisconsin estão entre esses estados).
A dimensão econômica da globalização, ou seja, o aumento do comércio mundial e a criação de cadeias de produção em países com mão de obra mais barata e menos impostos, deixou um rastro de destruição em vários países que mantinham uma base industrial próspera.
Nos Estados Unidos, os estados do nordeste, da região dos Grandes Lagos e do meio-oeste eram chamados, nos anos 1900, de Manufacturing Belt (Cinturão da Indústria) porque detinham mais de 75% da produção industrial do país; entre os anos 1970 e 1980, receberam a alcunha de Rust Belt – ou Cinturão de Ferrugem, nome dado por causa da expressiva quantidade de galpões abandonados em várias cidades. A região viu, portanto, as indústrias indo para outros países e vivenciou um processo de deterioração. Houve ainda a intensificação da automação industrial – máquinas assumindo funções que antes eram realizadas por homens.
“O Rust Belt é o clássico caso de como a globalização e o liberalismo não dão respostas para as pessoas. ‘Ah, a gente fecha estes empregos aqui, mas abre outros, porque vamos modernizar, abrir serviços. Basta você se qualificar, que terá emprego melhor.’ Na verdade, não é assim”, pontua Guilherme Melo, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Ele explica: “A quantidade de empregos que fecha é muito maior do que a quantidade de empregos abertos mais tarde; depois a quantidade de empregos abertos de alta remuneração é muito limitada para um pequeno grupo de pessoas com condições de se qualificar. E estamos falando de gente, não de coisas. Um cara que apertou parafuso a vida toda numa fábrica não vai sair dali e virar um técnico em automação em um ano”.
Para Reginaldo Moraes, especialista em história dos Estados Unidos, o processo de globalização destruiu os empregos estáveis desses trabalhadores. “E como eles são brancos não são beneficiados pelos programas de afirmação dirigidos aos [historicamente menos favorecidos e discriminados] latinos e negros. Então, ficam com raiva dessa parcela da população e vão se sentindo deixados para trás, vão se tornando o que se chamam de ‘perdedores da globalização’.”
Durante a corrida presidencial, o republicano Donald Trump visitou a região do Rust Belt diversas vezes. “Ele foi muito esperto, identificou esse nicho rapidamente. E para você ter uma ideia, quando Hillary foi fazer campanha no meio-oeste, Trump já tinha ido lá quatro vezes”, compara Ronaldo Sardenberg, ex-ministro de Ciência e Tecnologia (1999 a 2003, no segundo mandato do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso) e membro do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
A fala proferida por Trump nessas regiões soou como música aos ouvidos do cidadão branco que um dia prosperou na classe média: “Make America Great Again” (“Tornar a América Grandiosa Novamente”, em livre tradução). “Esse eleitor, que teve sua qualidade de vida piorada, mas que cujo pai ou avô pertenceu à classe média, enxergou em um homem de negócios, apolítico, milionário e com esse discurso a possibilidade de voltar a progredir, de ter mobilidade social”, analisa o professor Pedro Costa Junior, da ESPM.
“Essas pessoas acreditaram na promessa de ‘reindustrialização’, têm um perfil mais nacionalista e apreciaram o discurso de recuperação da autoestima, de os Estados Unidos voltarem a ser o protagonista do mundo – como se tivessem deixado de ser – e, mais que isso, querem vivenciar o tal do conceito do ‘self made man’, querem se fazer sozinhos, sem depender do Estado”, completa Gerson Moraes, professor e especialista em política da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas.
A estratégia de Trump deu certo. Os votos vieram. E vieram, sobretudo, desses eleitores que, muitas vezes, nem saíam de casa para votar, tamanha a desilusão com a vida e com os atores políticos norte-americanos. Lá o voto é facultativo. No modelo de eleição norte-americano, o voto do eleitor não vai diretamente para o candidato. É o sistema do Colégio Eleitoral que, por sua vez, representa os eleitores de cada estado na escolha final do futuro presidente. O tamanho da população do estado determina a quantidade de representantes. Há, desde 1954, 538 cadeiras no Colégio Eleitoral. Para se tornar presidente do país, é preciso ter a maioria mínima de 270 votos desses 538.
Na disputa de 2016, Trump teve 290 votos do Colégio contra 232 de Hillary. Pela primeira vez, desde os anos 1980, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia votaram em um republicano, o que soma 46 delegados. Trump saiu vitorioso em outros importantes swing states (os estados decisivos) – Flórida, Carolina do Norte e Ohio. No total, porém, a candidata democrata ultrapassou Trump em cerca de 2 milhões de votos (64 milhões contra pouco mais de 62 milhões do republicano). Ainda assim, Trump foi o candidato republicano mais votado da história. “É importante considerar essa diferença, porque 2 milhões de votos não é algo irrelevante. Então, fico na dúvida se a vitória dele representa com tanta clareza uma vontade drástica da sociedade, embora a gente saiba que, historicamente, tanto o partido Republicano como o Democrata
se afastaram de determinados segmentos da sociedade, dentre eles os brancos trabalhadores”, pondera Lara Mesquita, cientista política e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
A diferença no número de votos gerou polêmica. Uma onda de protestos em cidades reconhecidamente democratas povoou o noticiário mundial. Havia manifestantes em várias cidades, como Chicago, Houston, Seattle, Portland e Los Angeles. A pressão por recontagem dos votos nos estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia (onde Trump ganhou) aumentou. A candidata do Partido Verde, Jill Stein, arrecadou fundos para iniciar a recontagem em Wisconsin. A petição foi apresentada por Jill e por Rocky Roque De La Fuente, do Partido Reformista. A campanha de Hillary acompanharia a recontagem – até o fechamento desta edição, o resultado estava previsto para 13 de dezembro. “Não é a primeira vez que [a recontagem de votos] acontece. Faz parte do jogo”, acrescenta Lara.
Se tudo ocorrer como previsto, Trump tomará posse em 20 de janeiro de 2017. A tendência, acreditam os entrevistados para esta reportagem, é que o discurso ao qual assistimos durante a campanha – com ideias como o propalado muro na fronteira com o México e a deportação de imigrantes – não seja colocado 100% em prática, embora represente uma face negativa dos Estados Unidos. “Na campanha, a fala de Trump foi extremamente violenta, machista, xenófoba, focada para alentar o sentido de revolta e ódio que paira em parte da sociedade norte-americana”, comenta o professor Guilherme Melo, da Unicamp. “Do ponto de vista simbólico, dá para dizer que esse discurso e até a vitória de Trump representam um total retrocesso, sob a ótica dos direitos sociais”, completa Pedro Costa Junior.
A começar pela mudança de tom em relação à retirada dos imigrantes, é possível acreditar que haverá certa suavização na postura do presidente eleito. Na campanha, Trump ameaçou deportar todos os imigrantes; após a eleição prometeu mandar embora 3 milhões de pessoas que vivem ilegalmente nos Estados Unidos e têm ficha criminal.
“Não tem como ele cumprir tudo o que fala, até porque os imigrantes fazem parte do PIB norte-americano. Eles produzem, consomem e isso não é uma brincadeira”, considera a doutora Roseli Martins Coelho, docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Gerson Moraes ratifica o pensamento. “Os imigrantes têm um papel dentro dos país, não são só indesejáveis como os detratores colocam. A verdade é que os Estados Unidos querem a mão de obra deles se a economia estiver boa; quando está ruim, eles tornam-se os culpados.”
A questão econômica será o ponto definidor das medidas colocadas em prática após a posse. “O que vai determinar a postura de Trump é o que acontecer em Wall Street [o distrito financeiro de Nova York, um dos mais importantes do mundo]. Ou seja, podemos chamá-lo de caricato, boçal, retrógrado. Mas uma coisa é certa: ele é um homem de negócios e sabe que irá comandar uma nação relevante”, acrescenta o professor do Mackenzie.
Somente depois de 20 de janeiro poderemos sentir de fato os efeitos da eleição de Trump nos Estados Unidos, no mundo e no Brasil. Ainda não é possível fazer projeções de maneira apropriada: há um discurso para ganhar eleição e outro para o trabalho de fato. Isso faz parte do jogo político.
Do ponto de vista econômico, uma aposta possível é a de que ele venha a adotar políticas protecionistas, aumentar as barreiras para produtos importados e intensificar políticas que favoreçam a classe branca trabalhadora.
“Para nós, no Brasil, seria positivo que eles conseguissem retomar a taxa de crescimento e passassem a demandar do resto do mundo. Isso refletiria aqui, porque se os Estados Unidos comprassem mais da China, a China compraria mais de nós. Mas como Trump está prometendo esse fechamento comercial isso refletirá em diminuição da demanda pelo produto brasileiro”, diz Guilherme Melo.
“Esse protecionismo comercial ele anunciou. E isso impressiona, porque se ele adotar a política do ‘America First’ prejudicará aqueles que negociam com os Estados Unidos. Mas, nós, enquanto nação e pensando do ponto de vista diplomático, não devemos brigar antecipadamente”, opina Ronaldo Sardenberg.
Para além das questões políticas e econômicas, a eleição de Trump tem vários significados simbólicos. Um deles é um “‘chamamento’ da direita em todo o mundo, mesmo que inconsciente”, opina o pesquisador Pedro Costa Junior. O docente também chama atenção para a falência dos partidos tradicionais e da figura do político. “Trump representa a vitória de um modelo contrário à velha política em todo o mundo”, conclui.
No Brasil, a vitória de João Doria Jr. (PSDB) na capital paulista representa um pouco o que cita o professor – assim como a declaração do empresário e apresentador Roberto Justus, que pretende concorrer às eleições presidenciais de 2018. Quanto ao “chamamento da direita”, assistimos, em solo brasileiro, ao fanatismo explorado por figuras como a do deputado Jair Bolsonaro (PSC).
Lara Mesquita, do Cebrap, no entanto, tem dúvidas se essa reação mais intolerante é uma nova onda mundial ou uma resposta aos direitos liberais conquistados nos últimos anos. “A gente teve um avanço em direitos sociais, coisa que não existia. Até então, o conservador nunca precisou ficar balançando a bandeira dele, porque ele era a hegemonia. Ninguém ‘precisava’ declarar-se contra os homossexuais, porque as pessoas não se assumiam homossexuais. Isso mudou e criou a necessidade de o discurso conservador precisar ser dito em voz alta.”
Trump é polêmico, mas mostrou-se estratégico e bom ouvinte. Como é dificílimo adivinhar quais rumos ele tomará a partir de 20 de janeiro, resta-nos torcer para que ele passe a se mostrar atento às necessidades de seu país como um todo. E, quem sabe– se tivermos sorte –, do mundo.