Nos cinemas, o filme Xingu voltou a conscientizar o Brasil da importância de seu mais antigo parque indígena, de território 25% superior ao do Estado de Israel
Desembarquei do Hércules da Força Aérea Brasileira, no coração do Alto Xingu, me maldizendo por ter levado roupa a mais para um final de semana longo. Especialmente pelo pulôver de lã e pelo pesado casaco extra: naquela sexta-feira, a temperatura beirava os 32 graus Celsius, e ainda não era meio-dia. O sol queimava. Mas as boas-vindas oferecidas pelos índios camaiurás me fizeram esquecer de tudo rapidamente. Penas coloridas e sorrisos amigáveis nos rostos pintados para seu kwarup foram suficientes para ignorar o calor e mudar qualquer atmosfera. Para que mais?
Como a própria Amazônia, o Xingu, primeira reserva indígena do país, depende de um roqueiro como Sting, ou de um cineasta como Cao Hamburger, para que as pessoas tomem consciência pública de sua existência e significado. Os atuais 27.974 km2 do Parque superam em 25% o território de Israel e guardam, como no polêmico Estado do Oriente Médio, uma cultura igualmente digna e privilegiada. Mas, ao contrário do território que judeus e palestinos disputam, o Xingu nunca aparece nos noticiários. A paz não é notícia. Mas também não pode ficar no esquecimento.
Pisar na Reserva Indígena do Xingu é uma fantasia que jornalistas desejam transformar em realidade a vida toda e poucos conseguem concretizar. Gera menos repercussão na imprensa internacional do que outras “junglas”, mas é tão encantadora como as aventuras que Edgar Rice Burroughs nos fazia viver no cenário africano por meio de Tarzan. Mas, naqueles tempos, não nos preocupávamos com o meio ambiente, não discutíamos barragens como Belo Monte, nem as políticas de sustentabilidade dos governos. Era outra época. Para os moradores do Xingu, nem tanto. Pois a vida nessa terra indígena muda bem devagar, aos poucos, quase nada. E essa é sua maior riqueza.
Quinze anos atrás, quando conheci os camaiurás naquela visita inesquecível, eu já admirava os três irmãos Villas-Bôas, Orlando, Cláudio e Leonardo. O livro Desbravando o Brasil havia me empurrado para aquela aventura, aonde eu só poderia chegar transportado pela aeronáutica. Ou, como eles, os Villas-Bôas, em canoas sem calado pelos rios de águas transparentes que ajudam a recortar a paisagem mato-grossense.
O filme Xingu, exibido há alguns meses, é uma pequena narrativa imersa em uma grande história. E seu valor é gerar consciência, coletiva no caso, de algo que não pode passar inadvertido: a preservação de um legado irrecuperável. No cinema, vemos apenas um momento dessa saga maravilhosa que começou muito antes da famosa “Expedição Roncador”. E que ainda não terminou. Também eu, quando estive lá, vi uma película de mais dias e menos celulóide do que a produzida pela O2 Filmes, mas também incompleta. O Xingu é muito mais do que podemos enxergar. Talvez até seja, como acredita uma de suas etnias nativas, o lugar onde o mundo foi criado.
A dez quilômetros ao norte do posto Leonardo Villas-Bôas, está a lagoa Ipavu, “água grande”, onde os camaiurás ergueram sua aldeia e foram encontrados pelo antropólogo alemão Karl von den Stein, em 1884. No coração da aldeia, estou eu tentando assistir a tudo sem atrapalhar o cotidiano. Lembro-me de que os irmãos Villas-Bôas não permitiam sequer que os índios usassem sandália de dedo para não estragar seus hábitos ancestrais. A aldeia é típica: um círculo de choças coletivas, feitas de folhas de sapê que vão do chão ao teto em forma arredondada. Estou no pátio ou “na praça” (hokayterip) que é onde todos se reúnem e tudo acontece. Tiro fotos, não paro de clicar.
Nas casas coletivas, preferencialmente, vivem as famílias dos irmãos varões com seus descendentes. A maioria dos casamentos é entre primos cruzados. Os jovens aprendem as atividades masculinas em plena reclusão e, quando estão livres, evita-se que tenham experiências sexuais (porque comprometeriam a energia) até o casamento. A vida das mulheres é mais complexa ainda. Quando ocorre a primeira menstruação, são reclusas por um ano (também para aprender tarefas) e logo que saem, sem ter cortado o cabelo durante esse período e com nome mudado, são consideradas adultas e prontas para o matrimônio. Praticamente não passam a adolescência sendo solteiras. Vejo a choça que as enclausura e noto que só se comunicam com a tribo por uma mínima janela que renova o ar e deixa entrar um raio de sol um par de horas por dia.
Hoje, todos estão animados porque acontecerá o grande ritual que venera os mortos, o kwarup anual, maior cerimônia intertribal, e elas serão libertadas. A aldeia começa a se encher de visitantes de outras etnias enquanto os homens se pintam, se vestem, se enfeitam e as mulheres preparam comida antes de também se adornarem. As crianças camaiurás seguem meus passos. Levam-me para dentro de uma choça para que conheça seu interior, mas vou dormir ao ar livre, em uma rede amarrada a duas árvores. Estou fascinado: contrariamente do que sucede nas populosas urbes modernas, aqui todos sorriem sempre. Sim, sempre que o visitante olha para eles. Insinuam-se tão felizes quanto sua aparente simplicidade. Dão inveja.
Poucos sabem que o Brasil, até um século atrás, era um país (ainda) costeiro, quase desprovido de toda e qualquer civilização em terras que hoje compõem o pujante interior. Mas essa pujança não surgiu por geração espontânea, nem o Xingu se conservou apenas pela visão dos já falecidos irmãos Villas-Bôas. Para isso houve outros nomes que não podem ser esquecidos. Muitos, claro, são anônimos, mas não todos: presidentes como Afonso Pena, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek podem creditar para si um pedaço desse “novo” Brasil além do litoral. Cada um fez a sua contribuição, grande em todos os casos, mas o herói que substituiu o Tarzan da minha infância foi o Marechal Cândido Rondon. Sem ele, talvez os três irmãos Villas-Bôas tivessem realizado outras proezas, mas não esta que hoje relato. Possivelmente o Xingu não existisse e Cao Hamburger teria filmado outra saga, ou no Iguaçu ou no Oiapoque.
Pois atenção: os sempre lembrados expedicionários bandeirantes surgiram no Brasil colonial com propósitos mais econômicos do que civilizatórios. Mas reconheça-se que, quando o Brasil se libertou e, aos poucos, começou a se interessar por algo além do ouro, os que continuaram se aventurando terra adentro, para o bem e para o mal, foram os bandeirantes. Tão importantes nessa missão quanto polêmicos por seus – bárbaros – métodos. Não se pode falar do Xingu e dos Villas-Bôas sem escrever algumas linhas sobre os bandeirantes. Apesar de que, não fosse por Rondon, eles teriam exterminado todos os indígenas do Brasil, como aconteceu na Argentina, por exemplo.
Os bandeirantes, assim chamados pelas bandeiras que os distinguiam, equivaliam a um exército sem formação e disciplina. Sua missão era para ser cumprida, não importava como. Pelo menos os primeiros eram sertanistas de São Paulo que procuravam ouro, prata, especiarias e indígenas para escravizar (por falta de verbas para comprar negros africanos); e para isso arrasavam todas as aldeias e quilombos que encontravam pela frente. Abriram muitos caminhos, é verdade, mas também cavaram muitos jazigos.
Graças a eles, as fronteiras brasileiras transcenderam os precários limites do famoso Tratado de Tordesilhas, mas na questão indígena não podem ser admirados. Provavelmente não teriam conquistado nada, naquele contexto, sem esses métodos que hoje questionamos. O progresso sempre cresce em cima de algo que se enterra, às vezes para sempre. Mas foi Cândido Rondon o personagem que fez o mesmo que eles, ou mais, sem exterminar as etnias que compõem o verdadeiro Brasil. Melhor ainda: cuidou delas. Por isso o Xingu sobreviveu ao tempo. E aos homens.
Os bandeirantes relatavam dos indígenas coisas piores que a Igreja Católica do diabo. Rondon, nascido no Mato Grosso – talvez essa fosse sua vantagem e sua diferença em relação aos demais expedicionários –, mostrou que não era bem assim. Ele foi o idealizador do Parque Nacional do Xingu, quando mentor e diretor do Serviço Nacional de Proteção ao Índio (SNPI), meio século antes da bela e admirável saga dos irmãos Villas-Bôas, cujo grande mérito foi seguir a tese rondoniana: “Matar nunca, morrer se necessário”.
No final de semana, o silêncio habitual da aldeia Camaiurá é substituído pelo barulho próprio dos dias de festa. Procuro decifrar tudo, nem quero dormir, me faltam tempo e olhos para absorver tanta novidade. O kwarup é a festa que reivindica a alma dos mortos, representa um momento de paz e integra as tribos do Alto Xingu. A cerimônia do kwarup (também quarup), definida principalmente como “funerária”, envolve mitos da criação da humanidade, marca a iniciação das jovens indígenas, estabelece a hierarquia nos grupos e, por fim, resolve as relações interaldeias.
Na realidade, o kwarup é permanente, porque nos meses anteriores à cerimônia, vão acontecendo eventos a respeito do defunto. A sepultura é cercada, há a colheita de pequi, toques de uruá — longas flautas — e a procura dos troncos que representarão os mortos durante a festa anual, entre outras atividades.
Os homens não só irão dançar neste final de semana, como também vão lutar. Ensinam-me suas técnicas de combate (huka-huka, assim chamado pelos gritos que acompanham o esforço físico: hu, há, hu, há). São várias lutas simultâneas. Eles também distribuirão comida aos visitantes. Mas será uma das jovens reclusas que, ao ganhar a liberdade, oferecerá sementes de pequi ao líder de uma aldeia visitante. Isso tem certa conotação sexual, pois permite que as jarreteiras amarradas nas pernas no início da reclusão sejam cortadas, deixando-a livre para casar.
Depois dançam, entram e saem das choças, e os anfitriões se despedem dos visitantes. As moças têm peles mais claras: contrastam com os demais de sua etnia, já que ficaram um ano sem receber um único raio de sol. Os guerreiros parecem cansados, mas sorriem. As fogueiras, ao cair da noite, geram um clima mítico e enigmático, de filme. Não desejo ir embora. Não quero que a sessão acabe.
Militar da época em que era uma honra vestir o uniforme, Rondon começou a “desenhar” um novo interior em 1892, valorizando seus moradores, os donos do centro-sul brasileiro, que não eram outros senão as tribos caiamos, terenas, guaicurus e bororos (a mãe do Marechal era descendente da última). Ele levou as linhas telegráficas do Rio de Janeiro a Cuiabá – onde tinha se formado professor – e de Cuiabá ao Acre, recém-incorporado ao país.
Cândido Mariano da Silva Rondon – reconhecido em 1939 pelo IBGE como “Civilizador do Sertão” – abriu estradas onde ninguém passava, levou notícias entre o sertão inóspito e a civilização, e demarcou áreas que protegeram os indígenas durante décadas. Descobriu o rio Jurema e inspecionou as fronteiras do sul com a Argentina e o Uruguai e também com as colônias europeias no norte, nas Guianas. Em 1913, o presidente americano Theodore Roosevelt o acompanhou pelo rio Amazonas porque sabia que com ele descobriria “outro mundo”. Foi um precursor como quase nenhum outro. Rondon, considerado “Grande Chefe” pelos índios silvícolas e “Marechal da Paz” pelos índios civilizados, só em 1956 – dois anos antes de morrer – recebeu a maior homenagem de todas por parte dos brancos: o então Território do Guaporé foi rebatizado e até hoje é denominado Estado de Rondônia. Atrás dele, chegaram os irmãos Villas-Bôas.
Domingo à noite, é hora de embarcar na incômoda, mas ampla barriga do Hércules que me devolverá a Brasília; volto a me maldizer, só que agora por não ter levado mais roupas para me abrigar melhor. Durante as noites, dormindo ao relento com quase zero grau, congelando as minhas emoções diurnas, percebi que o Xingu, assim como sua temperatura oscilante, é mais do que extremos convencionais, como selva ou civilização: é uma experiência única.
Do alto, em pleno voo, já não enxergo a aldeia camaiurá. Só vejo o manto verde da selva. É lindo. As memórias recentes mais ainda. Tomara que Cao Hamburger continue filmando e Sting um dia retome a causa indígena. Ninguém tem direito de perturbar o descanso final do Marechal Rondon nem de jogar lixo na epopeia dos irmãos Villas-Bôas. O Xingu é de todos, não importa quão longe estejamos dessa realidade.