Oba, lá vem a Céu

Ela cantava de costas para o público. Hoje, é grande novidade da música brasileira. Sem delírios, Céu joga com o tempo a seu favor

Andrea Del Fuego

Maria do Céu diz que se inspira na música jamaicana, no afrobeat, no samba, na ciranda...
Maria do Céu diz que se inspira na música jamaicana, no afrobeat, no samba, na ciranda... - Miro

O que Céu faz é música popular brasileira. Eletrônica é a mãe! “Quando falam que faço música brasileira com eletrônica, esse é um erro que não tem nada a ver com o que eu faço.” E você faz o quê? “Faço música brasileira contemporânea, com todas as influências que posso te citar: música jamaicana, afrobeat, samba, ciranda e outros ritmos tradicionais daqui.”

Maria do Céu tem 27 anos – eu daria 22. No entanto, há uma vovó naquele corpo. Primeiro porque ela não tem pressa, dá um foda-se para o relógio, como a vovó que sabe que o mundo a trouxe, a levará e nele fica o que vale a pena. Faz sopa, torta de frango e para fechar o painel, Céu teve os quatro dentes do siso, todos os juízos, antes dos 20 anos.

Céu, disco homônimo, é seu primeiro e ainda único trabalho. Abrindo o encarte, percebo e confirmo, as fotos são de sua casa: um pedaço da cama, pregador no varal, a chita da cortina. A moça é prosaica e resolvida. “Curto muito mais dar uma volta na feira do que ir a um evento megabadalado.” Desconfia do moderno. Seu gosto musical parece também apostar no que sobrevive ao tempo. “Baden Powell, Moacir Santos, Clementina de Jesus… Eu gosto sem muita explicação. É um ponto na música brasileira que me interessa. Não tem lógica.”

Tem lógica, sim. Céu vai antes à raiz e com base nela é que direciona as antenas à superfície do mundo. “Escuto muita coisa nova, gosto de fuçar timbres, instrumentos, sonoridade e ruído. Isso tem a ver com a música contemporânea.” É obsessiva, apaixona-se por uma voz e fica nela. Teve a fase Betty Carter, cantora americana de jazz-bebop, que atuou em clubes com Miles Davis e Thelonious Monk nos anos 50, ouvia especialmente o disco Ray Charles & Betty Carter, de 1961. Teve o momento Elis Regina no programa Ensaio, de 1973 (décadas depois, Céu faria o mesmo programa), e o estágio Clara Nunes. Pequenininha ouvia Sade, cujo timbre já foi comparado ao dela. “Pode até ser, tem uma referência, ela também traz essa coisa africana.” Agora é a vez de Betty Davis, diva negra e ex-mulher de Miles Davis.

É principalmente pelas raízes da cultura afro-brasileira que ela se sente atraída. Céu afirma ter tido ligação com a religião, embora hoje não a siga, apaixonou-se pelo candomblé por causa da música. Arriscaria dizer que Céu é protegida por orixás e sua música vem como oferenda. Se assim é, diria que Céu está sob a guarda de Oxum, mãe das águas e do que é belo, aquela que é menina, mulher e senhora no mesmo tempo.

Nossa entrevista começou e terminou dentro de uma van. Quando acaba um lado da fita, uso gravador tijolão, me desculpo por ser ainda analógica, ela sorri e começa a me chamar de “cara”. Gostei.

Sua timidez me lembrou um show de jazz que assisti na Argentina, cujo saxofonista esqueci o nome, mas não a performance: ele ia saindo do foco de luz, quase alcançando a coxia, mais um pouco saía do palco. Ela é dessa cepa, cuja intensidade maior acontece em lugar reservado, não compartilhado. Não compromete, não precisamos ver toda a baleia pra saber que a curva que emerge do mar é a própria. Com tanta introspecção, é claro que gosta de livros. Maria lia Machado de Assis e foi viciada em Clarice Lispector, característica de quem cultua um diário. E Céu tem um, evidente. Hoje está lendo A Erva do Diabo, do antropólogo e feiticeiro Carlos Castaneda, e a biografia Kind of Blue: A História da Obra-Prima de Miles Davis, de Ashley Kahn – sim, ela cerca o mestre por todos os lados.

Com essa fome, explica-se a veia autoral. “Cara, eu só tirava ‘E’ nas aulas de poesia, você vai pôr isso, com certeza: ‘Tirava E e foi escrever’.” Disse que não botaria, mentindo a ela pela primeira vez. Céu estudou no Equipe e na Faap, reduto de artistas e filhos de intelectuais da cidade de São Paulo. Qualquer poeta boêmio diria a ela que a nota ‘E’ pode não ser boa para a poesia, mas é ótima para o poeta. Na mosca, Céu é autora de duas faixas e co-autora de dez das 15 que totalizam o disco de estréia. Ora, se autoria vem de autoridade, ela se autoriza a interpretar o que já é seu antes de vir às cordas vocais. “Quando a melodia vem, já tô colocando minha maneira de intérprete.”

A matéria sobre Céu na íntegra está na edição 11 da RS (agosto/2007), que tem Caetano Veloso na capa.

TAGS: ceu, maria-do-ceu, musica-brasileira, vila-madalena