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Os sete magníficos: Arcade Fire

Como o Arcade Fire flertou com a religião e se cercou de mistério para criar um dos melhores discos de 2007

Gavin Edwards Publicado em 02/08/2007, às 16h12 - Atualizado em 01/09/2007, às 17h07

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Parry, Chassagne, Gara, Kingsbury, Neufeld, Will Butler (a partir da esquerda), no Cemitério de Montmartre, em Paris - Anton Corbijn
Parry, Chassagne, Gara, Kingsbury, Neufeld, Will Butler (a partir da esquerda), no Cemitério de Montmartre, em Paris - Anton Corbijn

Cinqüenta mil dólares num saco de pão.

O segundo e sombrio disco do Arcade Fire, Neon Bible (2007), teve diversos pontos de partida: a Guerra no Iraque, a igreja em Montreal que foi reformada pelo grupo de sete músicos e virou seu quartel general, e a rápida ascensão, que levou a banda da obscuridade às performances assistidas por fãs famosos como David Byrne, David Bowie e U2. Mas, na realidade, tudo começou em uma noite em Boston, quando Win Butler, o líder do Arcade Fire, segurou nas mãos um saco de pão cheio de dinheiro.

Isso aconteceu há mais ou menos dois anos, no fim da primeira turnê da banda pelos Estados Unidos. O álbum de estréia, Funeral (2006), havia sido aclamado pela crítica e se tornado, surpreendentemente, um sucesso - foram mais de 345 mil cópias vendidas em todo o mundo. E a banda se viu sem saber o que fazer. Eles não tinham empresário; o baterista Jeremy Gara vinha exercendo a função, mas deixara a cidade sem conseguir depositar os rendimentos da banda num banco. Butler e sua mulher, Régine Chassagne, co-autores das músicas do grupo, passaram horas em seu quarto de hotel, contando o dinheiro do Arcade Fire.

Mais tarde, naquela noite, Butler escreveu uma canção. Ele não tinha composto muito durante a turnê, mas essa saiu fácil - e expressou o sentimento de alienação que o atormentava: a lacuna entre suas ambições artísticas e os US$ 50 mil no saco de pão, e a confusão de ser um norte-americano que teve de se mudar para o Canadá e, desde então, se sentia como um turista na terra natal. "Don't want it faster, don't want it free" ("Não quero nada apressado, nada de graça"), Butler escreveu, e "don't want to fight in a holy war" ("não quero lutar em uma guerra santa"), e, repetidas vezes, "don't want to live in my father's house no more" (não quero nunca mais morar na casa do meu pai").

O resultado, a canção "Windowsill", viria a se tornar o cerne de Neon Bible: vultoso nas cordas, nos metais e no rock angustiado, o disco foi feito para jogar luz sobre o espelho negro da cultura dos EUA (veja o quadro "Estudos Bíblicos" na página ao lado). Apesar da frase "I don't wanna live in America no more" ("Não quero nunca mais viver nos Estados Unidos"), Butler agora insiste: "Sou muito norte-americano - definitivamente, não sou canadense sob nenhum ponto de vista. Todos os outros integrantes da banda, quando recebem uma comida ruim no restaurante, ficam quase com vergonha. Eu não: as pedras fundamentais dos EUA são o juramento à bandeira e 'o cliente sempre tem razão'".

O Arcade Fire, dez ou mais pessoas no palco, tem sete integrantes oficiais. Eles trocam de instrumentos aparentemente por vontade própria, e Butler usa a palavra "hierarquia" como se fosse um palavrão. No entanto, é óbvio que ele é o líder do grupo, apesar de venerar a democracia comunal. Ou, como diz seu colega de banda (e irmão mais novo) Will Butler, "Basicamente, compartilhamos a mesma visão ge-ral das coisas. Acho que somos uma república democrática, um sistema federal".

Às vezes, os procedimentos desse parlamento são obscuros: a violinista Sarah Neufeld e o baixista Tim Kingsbury nunca foram avisados de que eram integrantes da banda. "Fiquei sabendo por uma matéria que li em algum lugar", diz Kingsbury. "Depois que sai no The New York Times, acho que se torna oficial."

"De vez em quando, eu até me procuro no Google pra checar meu status", Neufeld confessa.

Kingsbury ri, assustado, e rebate: "Não... É sério?"

"Não, foi só uma piadinha", Neufeld o tranqüiliza.

Questionado a respeito das discordâncias entre o grupo, Will diz: "Varia: 'Eu não acho que a gente deveria tocar quatro noites em Phoenix', 'Não acho que devemos ter um saxofone nessa parte da música', 'Quero assistir a Sete Homens e Um Destino', 'Quero ver Alien vs. Predador'".

Uma das discussões mais profundas da banda é se deve ou não fazer qualquer tipo de divulgação. Toda vez que recebem um pedido de entrevista, eles aparentemente debatem a questão profundamente. O multiinstrumentista Richard Reed Parry explica: "Estamos tentando nos movimentar em uma cultura em que as pessoas produzem um monte de lixo. O objetivo não é sermos os campeões de vendas ou os mais famosos. Acho que todos na banda acreditam que estamos tentando fazer algo verdadeiro e que tenha um valor intrínseco permanente".

A afirmativa pareceria de uma sinceridade exagerada se o Arcade Fire não a sustentasse com seu trabalho. Foram as canções, densas tanto nas letras quanto nas melodias, ritmadas, porém tristes, que os transformaram em uma das melhores bandas de rock da atualidade. Se a ambição da banda ultrapassa a sua habilidade, o destaque é para a envergadura de sua ambição.

Win é um grande entusiasta da prática da comunidade. "Os colégios internos, o exército e as igrejas são os únicos lugares onde as pessoas são obrigadas a permanecer em comunidade com gente que elas não escolheriam como companhia", diz (ele freqüentou o colégio de elite Phillips Exeter, nos EUA). "Acho valiosa essa idéia de comunidade com pessoas com quem você não tem nada em comum."

Para as gravações de Neon Bible, o Arcade Fire incorporou elementos do colégio interno, do exército e das igrejas. Compraram uma igreja do século 19, em Montreal, e puseram camas no porão para viverem em estilo acampamento durante o ano em que gravaram o disco. "Não foi por causa dos primeiros takes", diz Neufeld sobre o longo processo de gravação. "Demorou por causa dos overdubs."

O resultado é uma música que soa como um pesadelo luminoso: é suntuosa e orquestrada, mas, ainda assim, rígida. Em diversos momentos, lembra Brian Eno, Big Country e E Street Band. Sobre a comparação com Bruce Springsteen, Win diz: "Pode ser que eu tenha sido influenciado pelas mesmas coisas que ele". E acrescenta: "Duas das minhas grandes influências são Roy Orbison e Bob Dylan".

Então, ter uma banda grande reflete o desafio de orquestrar uma música que tenha apelo ou é uma tentativa de criar uma comunidade? "A banda é, definitivamente, uma comunidade", diz Win. "As bandas que sobrevivem são as que percebem isso e dão prioridade ao senso de comunidade. Mas é o mesmo princípio com uma dupla. Só que, numa banda grande, há mais relações a serem preservadas."

O Arcade Fire está num porão de igreja - de novo. Este fica no centro de Nova York. No piso de cima, está a platéia de um show esgotado, e, daqui a uma hora, a banda fará uma apresentação exuberante, que vai começar com a entrada surpresa dos músicos pelo meio da multidão. "As performances de rock estão entre os meios de expressão mais inférteis e batidos", opina Win. "É legal zoar com isso um pouco - é uma mistura de punk com arte performática."

Nesse momento, a banda está no camarim, comendo legumes, fazendo chocolate quente e se trombando educadamente. Parecem um pouco cansados, mas metade deles está gripada e a maioria é canadense. "Quando estou cansada, falo inglês muito mal", desculpa-se Chassagne, nascida em Quebec.

"Temos de anular a luz ambiente lá em cima", diz Win. "Ontem à noite, passei o show inteiro vendo o cara da cerveja. Ele está indo muito bem, vendendo bastante durante as músicas mais calmas."

Eles vestem as roupas do show: as mulheres colocam vestidos formais; os homens, camisas brancas e suspensórios. Parecem uma banda religiosa das antigas. Um efeito colateral dessas roupas é que o Arcade Fire realmente parece ter um pé fora da cultura moderna. Neon Bible estreou em segundo lugar na parada pop da Billboard, mas mesmo assim soa esquisito quando Win cita a MTV em suas letras. "Essa parte 'vitoriana' de nossa imagem não foi exatamente intencional", Win insiste, sem convencer muito.

Parry diz que o guarda-roupa tem outra conseqüência: ele não consegue se vestir para uma ocasião formal sem pensar que está se preparando para um show. No entanto, tem uma saída: "Vou começar a vestir veludo e calça de moletom".

Um mês depois, encontro o vocalista Win Butler no aeroporto de Heathrow, em Londres. Ele cancelou um monte de entrevistas, alegando que está muito doente e que tudo o que consegue fazer são os shows. Em uma semana, enfrentará uma cirurgia para corrigir seu problema crônico de sinusite. Hoje, vamos juntos do aeroporto até o hotel da banda. Win repousa seus quase 2 metros de altura no banco de trás do carro; está vestido com um moletom azul, de gorro, estampado com arquivos do FBI.

Win é brilhante e culto, consegue conversar de forma inteligente sobre escritores como George Orwell (seu favorito) e Immanuel Kant. Mas quando não gosta de um tipo de pergunta - por exemplo, sobre seu hábito de usar rímel quando era fã do Cure ou sobre a banda secretamente se referir à canção "(Antichrist Television Blues)" pelo apelido "Joe Simpson" (pai das cantoras Jessica e Ashlee Simpson), ele faz uma cara de poucos amigos e dá de ombros.

Das igrejas que o grupo freqüenta ao título Neon Bible (Bíblia de Neon), a temática cristã é recorrente no Arcade Fire. Por isso, pergunto a Win sobre seu histórico religioso. Ele cresceu num bairro residencial de Houston. "Minha família por parte de pai é muito não-religiosa, e minha família por parte de mãe é muito religiosa", conta. "Os pais de minha mãe são mórmons, mas são músicos. Ou seja, são o tipo de mórmons que bebe Martini." Win freqüentou estudos dominicais mórmons, mas também prestou atenção ao avô, pai de seu pai, que se alegrava em denegrir os dogmas da igreja.

Hoje em dia, Win diz: "Há coisas nas religiões organizadas que considero interessantes. Provavelmente, eu teria uma conversa mais interessante com o papa do que com [o radialista e apresentador norte-americano] Howard Stern. Acho que as pessoas confundem a descrição de alguma coisa com a compreensão dessa coisa - isso acontece muito na religião. Há muita linguagem metafórica na Bíblia, mas acho que a imaginação humana não está equipada para lidar com a idéia da vida eterna".

Nossa conversa começa a vagar por diversos temas, de basquete (ele tenta jogar pelo menos uma vez por semana, mesmo em turnê) a seu gênero favorito de filme (ficção científica), passando pelo melhor lugar para se fazer as reuniões da banda (aeroportos). Chegamos ao hotel e continuamos a conversar, no café. Win pede uma pizza. Ele discute as críticas feitas a Neon Bible, que foram menos entusiasmadas do que as recebidas pelo antecessor, Funeral. "Estamos definitivamente numa situação em que as pessoas estão nos comparando a nós mesmos", reclama. "Se a Rolling Stone norte-americana foi capaz de nos dar a mesma cotação que deu pro Fall Out Boy [três estrelas e meia], porra, dá um tempo. Definitivamente, são dois pesos e duas medidas".

Depois de comer metade da pizza, Win embrulha o resto num guardanapo. Ele tem de ir à BBC para uma entrevista de rádio, mas concorda em continuar nossa conversa no carro. Passamos pelo Hyde Park enquanto falamos da faixa-título de Neon Bible. As letras parecem um manifesto: "You can't watch your own image/And also look yourself in the eye" ("Você não pode ver sua própria imagem/E, ao mesmo tempo, olhar-se nos olhos"). Win explica: "Tem muita arte tentando imitar as pessoas, para entregá-las de volta a imagem delas mesmas".

"A cultura é algo muito importante", ele continua. "As pessoas passam muito tempo pensando em nada, e quando aparece algo que tem significado e importância, é difícil de elas se engajarem." Ele é interrompido pelo celular - é o empresário da banda. Win pede para o motorista encostar o carro e me diz que precisa atender a ligação. Leva um instante para eu entender o que ele quer dizer: ele quer que eu saia do carro e pegue um ônibus. "Posso falar com você de novo, por telefone, daqui a alguns dias?", ele pergunta, enquanto o carro segue adiante, desaparecendo nas ruas estreitas de Londres.

Estudos Bíblicos

Uma leitura dos sermões do Arcade Fire

"Este disco tem ainda mais fios que conduzem as suas canções", sugere a co-autora Régine Chassagne. "Mas, em vez de contar quais são, eu preferiria que as pessoas os sacassem por elas mesmas. Elas conseguem. São inteligentes." A seguir, estão alguns dos fios condutores: Neon Bible é repleto de imagens de espelhos e de uma cultura corrompida que reflete os EUA. De modo geral, o disco sugere que o povo norte-americano possui responsabilidade moral não somente pelas guerras de que participa, mas também por suas estrelas pop. Tente decifrar as mensagens por trás de algumas faixas:

Black Mirror

A faixa de abertura de Neon Bible reforça os temas do álbum: "Mirror, mirror, on the wall/Show me where them bombs will fall" ("Espelho, espelho, na parede/Mostre-me onde vão cair as bombas").

The Well and the Lighthouse

Adaptação de uma fábula francesa, O Lobo e a Raposa. Chassagne apresentou a língua francesa a Win Butler por meio da literatura infantil, e ele achou que seria interessante compor uma seqüência de canções baseadas nessas histórias cheias de lições de moral explícitas. Esta foi a única fábula que acabou chegando ao disco: um lobo pula em um poço, pensando que a Lua refletida na água é, na verdade, um tesouro de prata.

Neon Bible

Há um romance do falecido escritor norte-americano John Kennedy Toole (autor de A Confederacy of Dunces) chamado The Neon Bible, mas a banda não sabia do livro quando batizou o disco. "Escolhemos esse nome porque tem uma imagem rica e dá margem a diversas interpretações", diz Will Butler. "Take the poison of your age" ("Tome o veneno da sua idade"), diz a letra, deixando implícito que nosso veneno é a veneração a luzes brilhantes e flamejantes.

(Antichrist Television Blues)

A banda também chama a canção de "Joe Simpson", em referência ao pai da cantora Jessica Simpson, um antigo pastor batista que se tornou o empresário da filha famosa. Na música, ela é o "pássaro na gaiola" ("bird in a cage"). O narrador da canção proclama seu cristianismo, mas quer "apontar um espelho para o mundo, para que todos possam se reconhecer em minha garotinha" ("hold a mirror up to the world so they can see themselves inside my little girl").

Windowsill

"As músicas têm significado", diz Régine Chassagne. "Você tem de encontrar esse significado e desenvolvê-lo. 'Windowsill' começou como uma canção pacata, mas, enquanto a desenvolvia, adicionei metais e tudo mais o que dava. Quando a masterizamos, perguntei: 'O que aconteceu? A canção ficou bombástica'. Mas você sempre começa a trabalhar a partir da letra, e a usa como inspiração para ir criando os sons." g.e.

Tradução: Carolina Requena