Era a manhã de 8 de abril de 1994 quando o corpo de Kurt Cobain foi encontrado em Seattle, após seis dias desaparecido. Naquele instante, o líder e principal compositor do Nirvana não deixava apenas uma esposa – Courtney Love –, uma filha – Frances Bean – e milhões de fãs órfãos ao redor do mundo: ele também entrava para o mítico e seleto grupo dos gênios da música que se foram cedo demais. Em uma entrevista longa e assustadoramente premonitória, ocorrida quase seis meses antes do suicídio (e a última que concedeu para a Rolling Stone EUA), o cérebro do Nirvana discorre com comovente sinceridade sobre fama, paternidade e o futuro de sua banda, além de admitir estar em um dos momentos mais felizes de sua vida.
Desarrumado e sem camisa, Kurt Cobain para no meio da escada que leva ao camarim do Nirvana, nos bastidores do Aragon Ballroom, em Chicago. Oferece a um visitante um gole do chá que tem nas mãos e diz, com uma voz sem expressão: “Estou muito grato por você ter vindo ao pior show de toda a turnê”.
E ele está certo. A apresentação dessa noite – a segunda das duas realizadas no local, na primeira semana da primeira turnê da banda nos Estados Unidos em dois anos – foi uma porcaria. A acústica cavernosa do lugar transformou até músicas mais corrosivas como “Breed” e “Territorial Pissings” em massas sonoras indistinguíveis, e Cobain foi atormentado a noite inteira por problemas no retorno do vocal e da guitarra. Mesmo assim, houve momentos de brilhantismo: o uivo rasgado de Cobain cortando o eco abismal no explosivo refrão de “Heart-Shaped Box”; uma versão atordoante de “Sliver”. Mas eles não tocaram “Smells Like Teen Spirit” e, em troca, receberam vaias quando as luzes se acenderam.
De acordo com a imagem de Cobain perpetuada pela imprensa – “irritadiço, reclamão, esquizofrênico descontrolado”, como ele mesmo coloca com precisão –, o cantor e guitarrista de 26 anos deveria ter demitido o técnico de som, cancelado esta entrevista e voltado para o hotel revoltado. Em vez disso, passou o pós-show no backstage paparicando sua filha Frances Bean, uma bela e sorridente garotinha loira de 1 ano. Mais tarde, de volta ao hotel e armado com um maço de cigarros e duas garrafas de água Evian, Cobain aparece pensativo, com dificuldades para explicar que o sucesso não é exatamente uma droga – pelo menos não tanto quanto costumava ser – e que a vida anda muito bem. E melhorando.
“Foi tão rápido e explosivo”, diz, com a voz sonolenta e grave, sobre sua primeira crise de autoconfiança, ocorrida em consequência do sucesso fulminante de Nevermind (1991). “Não sabia como lidar com aquilo. Se houvesse um curso do tipo ‘rock star para principiantes’, teria me inscrito. Poderia ter me ajudado.”
“Ainda vejo descrições de rock stars em algumas revistas – ‘Sting, o cara do meio ambiente’, e ‘Kurt Cobain, o chorão, neurótico que odeia tudo, o estrelato, sua própria vida’. E é engraçado, porque nunca estive tão feliz. Especialmente na última semana, já que os shows têm ido muito bem – tirando o de hoje. Sou um cara muito mais feliz do que as pessoas pensam.”
Cobain percorreu um caminho longo, cheio de obstáculos, para atravessar todo o último ano e chegar até aqui. A produção de In Utero (1993), esperada sequência de estúdio de Nevermind, foi assombrada por mudanças de título e de faixas na última hora, além de uma desavença entre a banda, a gravadora Geffen e o produtor Steve Albini sobre o potencial comercial do álbum – ou a falta dele. O casamento de Kurt com Courtney Love – munição de primeira para os fofoqueiros de plantão desde que o casal trocou votos em fevereiro de 1992 – esteve nas manchetes novamente em junho, quando ele foi preso em Seattle, supostamente por ter atacado Love durante uma briga doméstica. A polícia encontrou três armas na casa, mas nenhuma acusação foi feita e o caso foi arquivado.
No ano passado, Cobain declarou abertamente seu vício em heroína, especulado pelos meios de comunicação já há muito tempo, afirmando utilizar a droga – pelo menos em parte – para aliviar dores crônicas de estômago. Ou como ele coloca nesta entrevista, “para me automedicar”. Hoje, ele diz estar livre do vício e, graças a novos medicamentos e uma dieta melhor, seu aparelho digestivo está a caminho da recuperação.
Depois que o Nirvana teve seu status catapultado de banda novata a superdeuses do grunge, Cobain não conseguia entender se seu talento era uma bênção ou uma maldição. Decidiu que era um pouco de cada. Ele se incomoda com o fato de as pessoas o verem mais como um ícone do que como compositor, mas ao mesmo tempo teme que In Utero marque o fim do som que o Nirvana cristalizou com “Smells Like Teen Spirit”. Desconfia da indústria fonográfica, mas diz ter mudado sua atitude perante o público que acompanha o Nirvana.
“Não os julgo tanto quanto antes”, diz em tom de desculpas. “Consegui entender por que eles estão lá e nós aqui. Não me incomoda mais ver um neanderthal de bigode, bêbado, cantando ‘Sliver’. Agora acho muito legal.”
“Me livrei de tanta pressão no último ano e meio”, conta Cobain, com a sensação na voz. “Ainda estou deslumbrado.” Ele lista as razões de seu contentamento: “Ter lançado o disco. Minha família. Minha filha. Ter encontrado William Burroughs e gravado com ele”.
“São coisas pequenas, que ninguém daria valor ou se importaria”, continua. “E tem muito a ver com a banda. Se não fosse o Nirvana, nada disso teria acontecido. Estou muito grato e a cada mês que passa chego a conclusões ainda mais otimistas.”
“Só espero”, ele sorri, “que o excesso de felicidade não me torne um cara chato. Acho que vou ser sempre neurótico o suficiente para fazer algo esquisito”.
Além de todos os problemas no show de hoje, vocês não tocaram “Teen Spirit”. Por quê?
Seria a cereja do bolo [sorrindo]. Isso tornaria tudo duas vezes pior. Nem me lembro do solo de “Teen Spirit”. Levaria uns cinco minutos para sentar e reaprender. Mas não me interesso mais por esse tipo de coisa. É algo tão largado que não me importo mais. Ainda gosto de tocar a música, mas é quase embaraçoso.
Em que sentido? A enormidade do sucesso ainda te incomoda?
Sim. Todo mundo se focou demais nesta música. Houve tanta repercussão porque as pessoas a viram na MTV milhões de vezes. Foi martelada na cabeça delas. Mas acho que tenho tantas outras canções tão boas, se não melhores. “Drain You”, por exemplo, é definitivamente tão boa quanto “Teen Spirit”. Amo a letra e nunca me canso de tocá-la. Talvez se tivesse feito tanto sucesso quanto “Teen Spirit”, eu não gostasse tanto.
O que acontece é que não suporto, especialmente em uma noite ruim como esta, ter que tocar “Teen Spirit”. Tenho, literalmente, vontade de jogar minha guitarra e sair andando. Não consigo fingir que estou curtindo.
Mas você deve ter gostado de compô-la.
Estávamos ensaiando há três meses, esperando para assinar com a Geffen. Dave e eu vivíamos em Olympia e Krist em Tacoma [ambas em Washington]. Íamos toda noite para Tacoma ensaiar. Queria compor a canção pop definitiva. Basicamente, estava tentando copiar os Pixies, admito. Quando ouvi os caras pela primeira vez, senti uma conexão tão forte que passei a achar que devia fazer parte da banda – ou pelo menos de uma banda cover deles. Usamos o mesmo senso de dinâmica dos Pixies: primeiro baixo e calmo, depois alto e pesado.
O riff de “Teen Spirit” é tão clichê. Tão parecido com um riff do Boston ou com “Louie, Louie”. Quando compus a guitarra, Krist olhou para mim e disse: “Isso é tão ridículo”. Fiz a banda tocar aquilo por uma hora e meia.
Está é a primeira turnê que vocês fazem nos Estados Unidos desde 91, um pouco antes de “Nevermind” explodir. Por que ficaram longe da estrada por tanto tempo?
Precisava de tempo para colocar a cabeça no lugar e me reajustar. Bateu tudo muito forte e fiquei com a impressão de que não precisava mais sair em turnê, porque estava ganhando muito dinheiro. Milhões de dólares. De oito a dez milhões de discos vendidos – para mim parecia muita grana. Assim, achei que o melhor era relaxar e aproveitar.
Não quero usar isso como desculpa, como já pareceu muita vezes, mas meu problema de estômago foi uma das coisas que mais atrapalharam a ideia de uma turnê. Já lidava com isso há muito tempo, mas quando alguém convive com dores crônicas por cinco anos, acaba ficando literalmente louco no fim do processo. Não conseguia lidar com nada. Tinha virado um esquizofrênico completo.
Quanto dessa dor você acha que transferiu para suas músicas?
É uma questão assustadora, porque obviamente uma pessoa que compõe e tem algum tipo de distúrbio irá refletir algo disso em sua música. E muitas vezes isso é benéfico. Acho que deve ter ajudado. Mas eu trocaria tudo por uma boa saúde. Quis dar esta entrevista quando já estivesse na estrada por algum tempo e, até agora, tem sido a melhor turnê de toda a minha carreira. Mesmo.
Não tem nada a ver com os fatos de os locais serem maiores ou por as pessoas puxarem mais o nosso saco. O que conta é que meu estômago não me incomoda mais. Estou comendo. Comi uma pizza enorme ontem à noite. Foi legal poder fazer isso. Mas sempre tive medo de que, se a dor no estômago passasse, minha criatividade acabaria junto. Quem sabe? [Pausa]. Não tenho nenhuma música nova no momento.
Em cada álbum, tínhamos de uma a três músicas que haviam sobrado da gravação do anterior. E geralmente eram boas, músicas de que realmente gostávamos. Sendo assim, tínhamos sempre algo a que recorrer – um hit ou alguma canção acima da média. Por causa disso, o próximo álbum vai ser interessante, porque não sobrou nada. Estou começando do zero pela primeira vez. Ainda não sei o que vou fazer.
Uma das músicas que ficaram de fora de In Utero, “I Hate Myself and I Want to Die” (“Eu me odeio e quero morrer”). O quão literal é esse título?
Tão literal quanto uma piada pode ser. Não é nada mais que isso: uma piada. Tiramos justamente por causa disso. Sabíamos que ninguém ia entender, que levariam a sério. Era algo totalmente satírico, tirando sarro de nós mesmos. O tempo todo me veem como um cara irritadiço, reclamão, esquizofrênico, descontrolado que pensa o tempo todo em se matar. “Ele não se satisfaz com nada.” Por isso achei que seria um título engraçado. Por um bom tempo, queria que fosse o nome do disco. Mas achei que a maioria não entenderia.
Já se sentiu consumido por uma dor ou raiva tão grande que te fez querer realmente se matar?
Por cinco anos, enquanto tive meu problema de estômago, sim. Quis me matar todos os dias. Cheguei muito perto algumas vezes. Me desculpe ser tão direto nesse assunto. Houve um ponto em que estava em turnê, deitado no chão, vomitando ar porque não conseguia manter sequer um copo d’água dentro do estômago. E em 20 minutos precisava estar no palco tocando. Cantava tossindo sangue. Isso não é jeito de se viver. Adoro tocar, mas alguma coisa não estava certa. Por isso decidi por me automedicar.
Mesmo enquanto sátira, uma música como essa pode ter algum tipo de consequência. Há uma boa quantidade de garotos que, por várias razões, tem instintos suicidas.
Isso define muito bem nossa banda. Essas contradições. É satírica e séria ao mesmo tempo.
Que tipo de cartas você recebe dos fãs?
[Longa pausa] Costumava ler muito a correspondência e me envolver bastante. Mas ando tão ocupado com o disco, os vídeos, a turnê, que não tenho me interessado em ler uma carta sequer, o que faz com que me sinta muito mal. Tem me faltado energia suficiente para publicar nosso próprio fanzine, que é uma das coisas que fazemos para combater as coisas ruins que alguns veículos dizem sobre nós, para mostrar um lado mais real da banda.
Mas é bem difícil, tenho que admitir. Me vejo fazendo as mesmas coisas que muitos rock stars fazem ou são forçados a fazer. Como não responder cartas ou não se manter atualizado com o que rola na música. Acabo ficando isolado. O mundo lá fora é bem estranho para mim.
Acho que tenho muita sorte por conseguir sair para uma balada de vez em quando. Tivemos uma noite de folga em Kansas City e eu e Pat [Smear, guitarrista convidado para a turnê] não tínhamos ideia de onde estávamos ou para onde ir. Então ligamos para a rádio da faculdade local e perguntamos o que estava rolando. E nem eles sabiam! Acabamos ligando para um bar e a banda Treepeople, de Seattle, estava tocando. No fim, conheci três garotos muito legais e que também tinham bandas. Me diverti junto com eles a noite toda. Chamei-os para o hotel, pedi serviço de quarto e acho que até acabei me empolgando demais ao tentar ser gentil. Mas foi ótimo saber que ainda consigo fazer isso, que ainda posso fazer amigos. Não achava que fosse possível. Há alguns anos, estávamos em Detroit, tocando em uma casa noturna para cerca de dez pessoas. Ao lado havia um bar e Axl Rose chegou com quinze guarda-costas. Foi um espetáculo; todo mundo idolatrando o cara. Se ele tivesse entrado sozinho, não aconteceria nada de mais. Mas ele queria aquilo. Você gera atenção para atrair atenção.
Atualmente, qual sua posição quanto ao Pearl Jam? Há boatos de que você e Eddie Vedder iriam posar juntos na capa da revista Time.
Não quero entrar nesse assunto. Uma das coisas que acabei aprendendo é que falar mal dos outros não me faz bem nenhum. É uma pena, porque toda essa história entre o Pearl Jam e o Nirvana tem rolado por tanto tempo e esteve tão perto de ser esclarecida.
Nunca ficou claro qual era seu problema com ele.
Nunca houve um problema. Falei mal dele porque não gosto da banda. Ainda não tinha encontrado Eddie na época. Foi minha culpa. Devia ter falado mal da gravadora, e não deles. A banda foi transformada em um produto – provavelmente não contra a vontade – mas sem saber que estava sendo incluída no embalo do grunge.
Você não sente nenhuma empatia por eles? O Pearl Jam sofreu a mesma pressão que vocês, por causa do sucesso.
Até sinto. Exceto que tenho certeza de que eles não se esforçaram para desafiar seu público como estamos fazendo com nosso novo álbum. Eles são o exemplo da banda de rock segura. A banda de rock agradável de que todo mundo gosta [risos]. Por Deus, tinha frases tão boas sobre isso na minha cabeça.
Só fico puto por saber que demos duro para fazer um disco com músicas que valessem a pena, que representassem o nosso melhor. Massageando meu próprio ego, posso dizer que somos melhores do que muitas das bandas que estão por aí. Descobrimos que se você tem duas músicas comerciais e pegajosas o suficiente no seu álbum, o resto pode ser um monte de bobagem. Se eu fosse esperto, teria guardado uma boa parte das músicas de Nevermind e espalhado em discos diferentes pelos próximos quinze anos. Mas não consigo fazer isso. Todos os discos de que gostei na vida tinham uma música ótima atrás da outra: Rocks [Aerosmith], Led Zeppelin II [Led Zeppelin], Never Mind the Bollocks [Sex Pistols], Back in Black [AC/DC].
Você já se declarou fã dos Beatles.
Ah, sim. John Lennon era meu Beatle favorito, sem dúvida. Não sei quem escrevia o que nas músicas, mas Paul McCartney me deixa constrangido. Lennon era obviamente uma pessoa perturbada [risos]. Deve ser por isso que simpatizo com ele. E do que li nos livros – e sou muito cético quanto ao que leio, especialmente em livros sobre rock – senti pena dele. Ficar trancado naquele apartamento. Mesmo apaixonado por Yoko e seu filho, sua vida era uma prisão. Ele estava preso. Não é justo. Esse é o grande ponto do meu problema em ser uma celebridade – o modo como as pessoas lidam com gente famosa. Isso precisa mudar. Precisa mesmo. Não importa o quanto você se esforce, sempre vai parecer que você é um reclamão. Entendo por que o público se sente desse jeito e chega a ficar obcecado por um ídolo. Mas é tão difícil convencê-los a relaxar, pegar leve, ter um mínimo de respeito. No fim das contas, somos todos um monte de merda [risos].
Suas melhores músicas – “Teen Spirit”, “Come as You Are”, “Rape Me”, “Penny Royal Tea” – abrem com um verso mais baixo, em um estilo climático. Então vem o refrão no volume máximo. O que vem primeiro, o verso ou o refrão?
[Faz uma longa pausa e então sorri] Não sei mesmo. Acho que faço o verso primeiro. Mas estou ficando cansado dessa receita. E é realmente uma receita. Não há muito que eu possa fazer a respeito. Dominamos esse processo enquanto banda, mas estamos bem cansados disso. É um estilo de dinâmica, mas só estou usando esses dois tipos. Há muito mais que eu poderia usar. Temos trabalhado nessa fórmula – essa coisa de ir do silêncio ao barulho – por tanto tempo que está, literalmente, se tornando chato. É tipo, “Ok, tenho esse riff. Vou tocar baixinho, com o som limpo, sem distorção, enquanto canto. Depois ligo a distorção e você toca a bateria com mais força”. Quero aprender um meio-termo, ir e voltar, de um jeito quase psicodélico no sentido de haver muito mais estrutura. É algo bem difícil de se fazer e não sei se somos capazes – como músicos.
Faixas como “Dumb” e “All Apologies” demonstram que você está buscando um jeito de atingir as pessoas sem apelar para a receita tradicional.
Absolutamente. Queria ter escrito mais algumas músicas como essas. Colocar “About a Girl” em Bleach [1989] foi um risco. Havia muita pressão dentro do underground – do mesmo tipo que você sofre quando está no colégio. E colocar uma música meio pop, que lembrava um R.E.M. desafinado em um disco de grunge, no meio daquela cena, foi arriscado.
Fracassamos em mostrar o lado mais calmo, mais dinâmico da banda. Os garotos querem ouvir a guitarra barulhenta. Gostamos de tocar essas coisas, mas não sei até quando vou conseguir berrar até me esgoelar todas as noites. Às vezes queria ter seguido o mesmo caminho de Bob Dylan e cantar músicas que não acabassem com a minha voz a cada show, assim poderia ter uma carreira longa se quisesse.
O que isso significa para o futuro do Nirvana?
Para mim é meio impossível olhar para o futuro e dizer que vou conseguir tocar as músicas do Nirvana daqui a dez anos. Não dá. Sem querer desmerecer Eric Clapton, mesmo porque o respeito, não quero ser obrigado a fazer o que ele fez. Não quero ter que mudar minhas músicas para que fiquem condizentes com a minha idade [risos].
Quando você foi preso, acusado de violência doméstica, sua esposa, Courtney Love, admitiu à polícia que há armas de fogo em sua casa. Por que você sente necessidade de estar armado?
Gosto de armas. Gosto de atirar.
Onde? Em quê?
[Risos] Quando vou para o bosque, em uma área de tiro. Não é oficialmente uma área de tiro, mas no nosso país é permitido que seja. Há um desfiladeiro, então não existe chance de atirar de lá e acertar alguém. Mesmo porque não há nada a quilômetros de distância.
Sem querer soar politicamente correto, você não acha perigoso ter armas com sua filha em casa?
Não. É uma proteção. Não tenho guarda-costas. Há pessoas bem menos famosas que eu e Courtney que foram perseguidas e assassinadas. Podia até ser alguém procurando uma casa qualquer para assaltar. Temos um sistema de segurança. Na verdade tenho só uma arma carregada, mas a mantenho em um lugar seguro, onde Frances jamais poderia alcançar. E tenho uma M16, que é muito legal de atirar. É o único esporte de que sempre gostei. Não é algo pelo qual seja obcecado ou incentive. Nem penso muito nisso.
O que Courtney acha sobre ter armas em casa?
Ela estava junto quando comprei. Olha, não sou um cara forte. Não seria capaz de impedir alguém armado com uma faca ou revólver. Mas não vou ficar parado assistindo minha família ser esfaqueada ou estuprada na minha frente. Não pensaria duas vezes antes de estourar a cabeça de alguém que fizesse isso. É por proteção. E às vezes é divertido sair e atirar. [Pausa] Em alvos, que fique bem claro [risos].
Costuma-se achar que alguém que vende milhões de discos está muito bem de vida. O quão rico você é? O quão rico se sente? Contam que quis comprar uma casa e montar um estúdio nela, mas seu contador disse que você não podia pagar.
É, não posso. Acabei de receber um belo cheque referente aos direitos autorais de Nevermind. É bem estranho. Quando estávamos vendendo um monte de discos, pensei: “Deus, vou ter 10 milhões de dólares, 15 milhões”. E não é o caso. Não temos uma vida de rico. Ainda como macarrão com queijo de caixinha – porque gosto, estou acostumado. Não somos extravagantes.
Não culpo os garotos por acharem que alguém que vende 10 milhões de cópias é um milionário e está com a vida ganha. Mas não é o caso. Gastei US$ 1 milhão no ano passado e não sei nem como. Sério. Comprei uma casa de US$ 400 mil. Mais 300 mil em impostos ou algo assim. O que mais? Emprestei uma grana para minha mãe. Comprei um carro. Foi isso.
Não é muita coisa para 1 milhão.
É surpreendente. Uma das maiores razões para que não fizéssemos uma turnê nos Estados Unidos justamente quando Nevermind fazia mais sucesso foi porque pensei: “Foda-se, por que eu sairia em turnê? Tenho essa dor de estômago, posso morrer na estrada, estou vendendo um monte de discos, posso viver o resto da minha vida com US$ 1 milhão”. Mas não tem como explicar isso para um moleque de 15 anos. Se me contassem, jamais acreditaria.
Você se preocupa com o impacto que seu trabalho, estilo de vida e guerra contra a vida de celebridade possa ter em Frances? Deve ser um mundo estranho para uma criança.
Me preocupo muito. Ela se sente atraída por todo mundo. Ama todo mundo. É triste que a gente tenha que ficar levando-a de lá para cá o tempo todo. Temos duas babás, uma em período integral e outra mais velha, que cuida dela aos fins de semana. Mas quando trazemos Frances para a estrada há sempre gente por perto. Não conseguimos levá-la ao parque com frequência. Fazemos o melhor possível, mas é um mundo totalmente diferente.
Em “Serve the Servants” você canta, “I tried hard to have a father/But instead I had a dad” (“Me esforcei para ter um pai/Mas só consegui um papai”). Você teme cometer os mesmos erros que seu pai cometeu na sua criação?
Não. Nem um pouco. Sou completamente diferente do meu pai. Sei que sou capaz de demonstrar muito mais afeição do que ele. Mesmo se me separasse de Courtney, jamais permitiria que Frances presenciasse qualquer desavença entre nós. Esse tipo de coisa pode acabar com uma criança, mas isso só acontece quando os pais não são muito espertos. Não acho que somos irresponsáveis. Passamos a vida toda precisando de carinho. E, por saber da necessidade que passamos, temos como único objetivo dar a ela todo o amor e apoio possível. Essa é a única coisa que, tenho certeza, jamais dará errado.
Como tem sido o relacionamento dentro do Nirvana desde o ano passado?
Quando ainda usava drogas, era muito ruim. Não havia comunicação. Krist e Dave não entendiam o problema da droga. Eles nunca se envolveram com isso. Encaravam a heroína do mesmo jeito que eu encarava antes de usar. Era muito triste. Quase não nos falávamos. Eles pensavam o pior, como a maioria faz, e não os culpo. Mas nada é tão ruim quanto parece. Desde que fiquei limpo, tudo voltou ao normal. Exceto por Dave. Ainda fico meio preocupado porque ele ainda acha que pode ser substituído a qualquer momento. Ele ainda se sente como se...
...Como se ainda não tivesse passado na audição?
É. Não entendo. Tento elogiá-lo tanto quanto posso. Não sou do tipo que elogia o tempo inteiro, principalmente nos ensaios. “Vamos tocar essa, aquela, de novo.” É assim. Acho que Dave é o tipo de pessoa que precisa sentir que tem um voto de confiança às vezes. Percebi que era assim e por isso faço elogios com mais frequência.
Então é você quem manda?
Sim. Peço a opinião deles, mas a decisão final é minha. É sempre estranho dizer isso; soa egoísta. Mas nós nunca discutimos. Dave, Krist e eu nunca gritamos um com o outro. Nunca. Não que eles tenham medo de tocar em algum assunto ou dizer algo. Sempre peço a opinião deles e conversamos a respeito. Eventualmente chegamos às mesmas conclusões.
Não houve nem uma discussão mais acalorada?
No caso dos direitos autorais. Ganho sobre todas as letras. Nas músicas, ganho 75% e eles ficam com o resto. Acho que é justo. Mas naquela época estava usando drogas. E eles acharam que eu ia acabar fazendo outras exigências, transformando os dois em empregados com salário e coisas do tipo. Mesmo nesse dia ninguém gritou um com o outro. E dividimos todo o resto em partes iguais.
É possível imaginar uma época em que não haverá mais Nirvana? Você tentaria uma carreira solo?
Acho que não. Creio que não seria capaz de embarcar em um “Kurt Cobain Project”.
O nome também não soa muito bem.
Não [risos]. Mas, sim, gostaria de trabalhar com pessoas que fazem o oposto do que faço hoje. Algo diferente.
Não me parece um bom sinal para o Nirvana e para o tipo de música que vocês fazem juntos.
É meio o que tenho tentado dizer durante toda a entrevista. Que estamos quase exaustos. Chegamos a um ponto em que as coisas estão se tornando repetitivas. Não há para onde progredir, nada que queiramos alcançar.
Odeio dizer isso, mas não vejo a banda durando mais que alguns álbuns, a menos que comecemos a trabalhar duro e experimentar mais. Quero dizer, vamos encarar a realidade: quando as mesmas pessoas se juntam para fazer o mesmo tipo de trabalho, sempre haverá uma limitação. Estou realmente interessado em estudar coisas diferentes e sei que Dave e Krist também estão. Mas não sei se seremos capazes de fazer juntos. Não quero lançar um novo álbum que se pareça com os três anteriores. Sei que vamos lançar pelo menos mais um, e já tenho uma boa ideia de como vai soar: bem etéreo, acústico, como o último álbum do R.E.M. Se eu pudesse compor tão bem quanto eles...
Não sei como conseguem fazer o que fazem. Por Deus, eles são os maiores. Lidaram com o sucesso como santos e lançam músicas incríveis.
Isso é o que eu realmente queria que o Nirvana fizesse. Porque estamos encalhados. Fomos rotulados. O R.E.M. é o quê? “College rock”? É um rótulo que nem pegou. “Grunge” é um termo tão potente quanto “new wave”. Não dá para cair fora. E uma hora vai se tornar ultrapassado. Você tem que se arriscar e esperar que um público totalmente diferente te aceite ou que seus fãs cresçam junto com você.
E se os fãs disserem: “Não curtimos, caiam fora”?
Bom, aí [risos] eles que se fodam.