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Otto se conecta com a música e a “tortura” do Brasil moderno em novo disco: “Me sinto no tempo”

Prestes a completar duas décadas de carreira solo, o cantor e compositor pernambucano chega a Ottomatopeia, o primeiro LP de inéditas em cinco anos, sem se entregar à nostalgia

Lucas Brêda Publicado em 28/09/2017, às 08h15 - Atualizado às 11h31

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Otto
Otto

Com uma ânsia repentina, Otto arregaça as mangas para exibir o antebraço esquerdo. A palavra “Ottomatopeia” se destaca na pele, em fonte preta e grossa, se estendendo do pulso até a junta. O pernambucano tem algumas tatuagens autorreferentes – dedicadas aos discos solo que lançou –, mas já estava há mais de cinco anos sem fazer uma nova. “Me sinto no tempo”, sugere, celebrando a contemporaneidade e lembrando que, aos 49 anos, continua sendo uma combinação pouco equilibrada de poesia e confusão. Ele volta a cobrir o braço e dá mais um gole em uma garrafa de cerveja, o rosto expondo a satisfação de quem está diante de uma realização importante (daquelas que só tatuando para manter em perspectiva): o lançamento de mais um disco.

“Odeio esse negócio de 20 anos de carreira”, confessa Otto, cujo álbum solo de estreia, Samba pra Burro, data de 1998. “Acho que você só pode usar quando tiver 40, 50, quando não estiver fazendo mais nada [novo] Ainda tenho muito sonho com música. Seis discos e parece que foi ontem.” Ottomatopeia chegou às plataformas de streaming nos últimos dias de julho, muito menos hermético que o antecessor, The Moon 1111 (2012), e sentimentalmente distante do sofrimento de Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009). “Foram cinco anos, então tem gente que fala: ‘Desapareceu?’ Porra, eu trabalho pra caramba! Não parei de fazer show.”

[Crítica] Otto – Ottomatopeia (2017)

Do ponto de vista sonoro, o LP marca uma aproximação ainda maior do artista com a música brasileira, especialmente com a vertente mais popular e amargurada, o brega (tem até uma recriação de “Meu Dengo” com a autora da música, Roberta Miranda). “Deixei o passaporte de lado”, ele conta. “Eu queria encontrar o meu país. Vim do Brasil popular, é algo que eu sou. Reginaldo Rossi é maravilhoso. Quer chamar de brega, pode chamar, é um orgulho. Mas sou um representante deste país e o disco tem de tudo. Do blues ao forró é tudo irmão: uma onda de música negra que se espalhou pelo continente americano.”

Ottomatopeia tem novamente produção do baterista Pupillo (Nação Zumbi), amigo de Otto desde antes do movimento manguebeat (Otto tocou percussão tanto no NZ quanto no Mundo Livre S/A) e que trabalhou com ele em todos os álbuns solo. “Temos uma facilidade de começar pelo que a gente gosta: o groove, a batida”, diz, explicando o processo de composição da dupla. “É uma simbiose muito grande. Geralmente eu chego com a música cantada, com a ideia. Canto e ele já vai pegando, pensando em batida, desenvolvendo.” Além do baterista – hoje renomado na função de produtor –, Otto colabora com a Jambro Band, que o acompanha em toda a carreira, sem integrantes fixos. Também divide músicas com Céu, Andreas Kisser e com os guitarristas Felipe e Manoel Cordeiro.

“Mas o que eu mais gosto de fazer é escrever, pensar nas minhas palavras, no que eu vou dizer”, ele esclarece. “Nunca fui um grande estudante. Neguinho chega pra mim: ‘Meu poeta, meu poeta’. Mas é algo que eu fui decodificando. Hoje ainda tenho um corretor ao meu alcance [aponta para o celular, rindo], só que tudo vem muito do instinto.”

Sentado em uma mesa logo abaixo da janela da sala de casa, Otto segura um cigarro apagado enquanto elabora o que vai dizer. Não é por falta de isqueiro: há cerca de 20 minutos ele procura tempo entre as ágeis conexões do cérebro para se concentrar na tarefa de colocar fogo no tabaco. A essa altura, já se lembrou de quando fez um mapa astral em Paris (“Falavam ‘Carruarru’”, riu, referindo-se à cidade natal), contou histórias de Reginaldo Rossi, Chico Science, Baby do Brasil, Jards Macalé e até de quando deu uma “bicota” em Ney Matogrosso (“Você acha que eu perderia essa oportunidade?”). Otto não tem problemas em fechar um assunto, ele só não consegue parar de abrir outros. “Deixa pra lá! Continua aí, vai”, se desculpa entre risadas, enfim preparado para a primeira tragada no Marlboro de filtro vermelho.

Há cerca de um ano, o pernambucano deixou o Rio de Janeiro para morar em São Paulo. Ele ocupa um apartamento antigo e discreto que chama de “casinha de praia”, apesar de estar em frente às lojas e restaurantes da porção dos Jardins da Rua da Consolação. Trata-se de um prédio sem porteiro ou elevador, com a fachada resumida a uma porta: um pedacinho de um Brasil urbano nostálgico resistindo à invasão das sacadas gourmet na zona oeste da cidade.

“Vim para ficar mais perto da minha filha”, explica, falando de Betina, fruto do famoso relacionamento com a atriz Alessandra Negrini, com quem ele ficou até 2008 e cujo término rendeu o dolorido álbum Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos. Otto consegue encaixar a menina de 12 anos em quase todo assunto. “Percebo as coisas [atuais] por ela”, diz. “Liniker, Johnny [Hooker], as Bahias [e a Cozinha Mineira] – os vejo como grandes artistas, independentemente de qualquer coisa. E ainda têm essa coragem de colocar uma saia, viver a sexualidade, resolver-se melhor. Isso está muito mais na minha filha. Ela não está nem aí se a pessoa é homem ou mulher. A liberdade é do futuro. Meu pai queria tirar meu brinco à força. É uma resposta a isso.”

Pós-Instagram, a rotina de Otto é bastante pública. Ele posta quase diariamente fotos e/ou textos de pensamentos, manifestações e encontros. Também em uma base diária, pratica a escrita “como terapia”. Depois que o computador quebrou, tem escrito no iPhone (“uma ilhinha”) e aproveitado a experiência: “Tem um lado ‘shots’ – só de pensamentos – que torna mais fácil fazer música do que um textão”. Apesar de contador de histórias, Otto está suficientemente desconectado do passado para tentar entender o presente: “É internet, porra, o negócio é view. Se eu gostar, eu vejo, senão, não vejo”.

Na caminhada até Ottomatopeia, Otto foi uma espécie de “sócio-fundador” – ao lado de nomes como Curumin, na virada do século – do que se conhece por “nova MPB”, ou pela fatia mais inventiva da produção conectada com as raízes da música nacional. Ex-mangueboy, é um aglutinador de ideias que, se nunca foi grande representante de um gênero ou vertente, sempre foi influente. Já em Samba pra Burro, mesclava batidas de techno com batuques abrasileirados (o que hoje faz o Teto Preto, por exemplo), usava samples e tocava com DJ. Não é exagero dizer que álbuns aclamados como Tropix (2016), de Céu, derivam da produção inicial do pernambucano, mesmo que indiretamente.

Certa Manhã..., assim como os shows de intensidade avassaladora, serviu para solidificar e inchar a base de fãs devotos que até hoje o acompanham. Em uma conversa que tomava outros rumos, ele deixa escapar: “Olhe, dinheiro não [ganhei], mas é bom demais ser fiel à música deste país”. Valendo-se das premissas do manguebeat, como a “antena na lama” – que por si só funcionam como especificidades dos ideais tropicalistas –, Otto é uma espécie de advogado da música brasileira, mantendo-a viva ao transformá-la para os novos tempos.

“Nestes cinco anos [entre os dois álbuns mais recentes], o Brasil entrou em um processo de não democracia terrível”, lamenta, tentando explicar o que inspirou o novo LP. “Só que eu acompanho essas coisas sem ser panfletário. Não vou datar nada nem chamar ninguém de nada. Fui mais no inconsciente, nessa tortura que todo mundo está sentindo aí. Roubam-se bilhões, prendem-se, o povo sem saber nada. Tira uma presidente, mas, porra, ela era honesta, olha o mala que entrou! Fui captando isso, quis realmente pegar esse sentimento e falar: estou atordoado, torturado, [Jair] Bolsonaro está aí. As pessoas não percebem que ele é doente. É simples: se você não consegue reconhece alguém como pessoa, você está doente.”

Otto está em tempo – e sai correndo pela casa para não perdê-lo. “Acho que o deus destes tempos é a internet. A grande religião do mundo é o deus digital. Gosto do mundo com a internet, mas é um vício”, afirma, e sai caminhando apressadamente enquanto elabora a última teoria do dia. Quando entra na cozinha, recua e coloca a cabeça de volta na porta: “Porra, já mandei muitos nudes [risos]. Quem nunca?”