Paul McCartney

O ex-beatle segue fazendo turnês, ainda cobiça estar nas paradas e está sempre disposto a revisitar a extraordinária carreira, que dura seis décadas

David Fricke

Publicado em 14/10/2016, às 16h35 - Atualizado às 19h03
McCartney em Long Island, em julho - Max Vadukul
McCartney em Long Island, em julho - Max Vadukul

Paul Mccartney dedilha um violão sentado no sofá de seu escritório em Londres, cantarolando baixinho enquanto tenta se lembrar de uma melodia da adolescência – uma das primeiras músicas, nunca gravada, que compôs em Liverpool com o amigo de escola John Lennon, antes de formar os Beatles. “Era...”, McCartney diz, e

começa a tocar no violão algo no estilo rockabilly, cantando com a voz potente e familiar.

“‘Just Fun’”, ele afirma, anunciando o título com orgulho. “Eu tinha um caderninho de exercícios na escola em que escrevia essas letras. E no canto superior direito da página coloquei ‘Original de Lennon-McCartney’. Foi um começo humilde”, admite. “Crescemos a partir dali.

É um momento extraordinário – mas McCartney, de 74 anos e atualmente em turnê por arenas e estádios dos Estados Unidos, nunca está longe de fazer uma performance ao vivo.

Em duas longas entrevistas– a primeira em Londres, a outra uma semana mais tarde na Filadélfia, nos bastidores antes de um show – ele usa a música para explicar algo: tocando acordes de outra canção da adolescência, cantando uma parte de “What’d I Say”, de Ray Charles, e imitando o jovem Mick Jagger. Em um momento, McCartney imita Lennon tocando uma música de Gene Vincent durante os dias em que os Beatles tocavam em botecos em Hamburgo, na Alemanha.

“Sempre foi fascinante, para mim, ficar diante das pessoas e me apresentar”, diz. “Desde o começo, tentei descobrir: qual é a maneira de se manter fiel a si mesmo e também ter as pessoas ao seu lado?” McCartney usa uma camisa azul-escura de manga curta e jeans, os pés descalços apoiados na mesinha de centro. Estamos em um trailer com uma cortina no lugar da porta e os visitantes avisam que chegaram tocando um cowbell vermelho perto da entrada porque, ele diz, “não dá para bater em uma cortina”.

McCartney acabou de fazer uma passagem de som que foi um show por si só: 12 músicas, das quais quase todas ficarão de fora esta noite, incluindo a balada dos Beatles “I’ll Follow the Sun” (1964) e “Ram On” (1971), faixa solo que ele nunca toca nos shows. O músico está na estrada novamente com sua banda dos últimos

15 anos – os guitarristas Rusty Anderson e Brian Ray, o tecladista, Paul “Wix” Wickens, e o baterista, Abe Laboriel Jr. – justamente no 50º aniversário do verão em que ele, Lennon, George Harrison e Ringo Starr pararam de se apresentar ao vivo. (“Tínhamos nos cansado de tocar em palcos encharcados de chuva e com amplificadores ruins”, diz McCartney sobre a última turnê dos Beatles, que terminou no Candlestick Park, em São Francisco, em 29 de agosto de 1966.)

Aquela era insana é celebrada no documentário The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years, dirigido por Ron Howard. O filme estreou em setembro nos Estados Unidos, mas ainda não tem previsão de lançamento no Brasil. O músico também soltou Pure McCartney, coletânea com faixas do Wings e material solo. Além disso, em outubro ele termina este ciclo de turnê no Desert Trip, festival em que toca com velhos amigos, como Bob Dylan, Rolling Stones e Neil Young. “É rock fóssil”, brinca, “mas é empolgante. Definitivamente preciso ligar para o Neil e perguntar ‘O que você acha, cara?’”

Em seu escritório londrino, McCartney está cercado por suas raízes e sua história – há itens dos Beatles e do Wings e uma jukebox vintage cheia de discos 78 rotações de Fats Domino, Wanda Jackson e Elvis Presley –, mas na maior parte do tempo ele fala de suas composições e do palco no tempo presente. Disseca a recente colaboração com Kanye West e menciona que estava “procurando material para criar as letras” do próximo álbum. “Consigo escrever em todo lugar. Tenho muitas ideias quando estou em movimento.”

Só que os Beatles estão sempre por perto, como um referencial e uma lembrança que se renova. “É bom falar com você”, McCartney diz ao final de uma conversa, e então relembra um encontro com Lennon alguns anos depois do final da banda. “Ele me abraçou. Foi ótimo, porque não fazíamos isso. Falou: ‘É bom poder tocar’. Sempre lembrei isso – é bom tocar.”

Por que fazer shows ainda é tão vital para você a esta altura da vida?

Poder tocar com esta ótima banda – isso é bem atraente. Tem algo básico no coração da música que todos nós amamos. Isso está nas paredes de Nashville, nos clubes de Liverpool e Hamburgo. Para mim, um dos prazeres quando nos despedimos do público ao final do show, é que estamos em cinco.

Aprendi algumas lições. Costumava ter pavor de cometer um erro. Percebi que não tem problema. O público até gosta.

Na infância, você já tinha essa necessidade de entreter, de agradar?

Acho que sim. Se você entra na música, muito raramente tenta algo sem dar bola se as pessoas gostam ou não. Fico surpreso que algumas pessoas não queiram ser queridas – existem algumas, tenho certeza, mas acho que é só uma imagem. Nos Beatles, eu era basicamente o cara que pressionava. Era um trabalho danado. Em 1969, por exemplo, nenhum dos outros teria feito um esforço para sair do subúrbio onde moravam, ir para a cidade e filmar Let It Be. O documentário acabou bem esquisito, mas o disco é bom.

Muitas coisas que fazíamos em Hamburgo eram instigadas por mim, depois assumidas pelos outros. Trabalhávamos em uma cervejaria pequena que ninguém frequentava. Havia uma placa dizendo “Cerveja, 1,50 marco” ou algo assim. Você via estudantes entrarem e saírem dizendo “Ah, eu não posso pagar”. Estavam procurando algo mais barato. Então, realmente tínhamos de trabalhar. O gerente do lugar dizia “Mach schau” [“Façam o show”]. Tocávamos “Dance in the Street”, do Gene Vincent. John batia palmas, agitava e atraia os estudantes. Pensamos: “Conseguimos fazer com que ficassem, agora vamos tocar nossas coisas”. E eles gostaram.

Qual é a dinâmica em sua banda? Quem te desafia? Alguém pode dizer: “Deveríamos fazer dessa maneira?”

Não funciona assim. Os Beatles eram desse jeito. O Wings era menos desafiador. Agora, é meio que entendido: “É sua banda”. O que faço para equilibrar isso é deixar as coisas em aberto quando ensaiamos. Às vezes, há coisas que não quero fazer, mas os rapazes dizem: “Tem que fazer. Vai dar certo”.

O que sugeriram que funcionou?

“Golden Slumbers” no meio de “The End” [de Abbey Road]. Deu um pouco de trabalho, eu estava com preguiça. O Rusty sugeriu “Day Tripper”. Não quis fazer porque a parte do baixo é muito difícil. “Being for the Benefit of Mr. Kite” é a mesma coisa. Essas são duas no show que eu não queria tocar, mas eles falaram que seria ótimo.

Ao mesmo tempo, sou um ditador, e ninguém tem problema com isso – acho [risos]. Estamos juntos há mais tempo do que os Beatles ou o Wings. Algo está acontecendo do jeito certo e acho que melhoramos, porque ficamos mais simples.

Você consegue se imaginar fazendo turnês assim aos 80 anos? Antigamente, fazer isso aos 40 parecia...

Inimaginável – e inadequado. Olha só, quando eu tinha 17 anos, havia um rapaz na escola de arte do John que tinha 24 anos – e eu tinha muita pena dele. Lamentava por ele [risos]. Era tão velho. A Doris Day (cantora e atriz), que eu conheço um pouco, me disse: “A idade é uma ilusão”. Eu a lembrei disso recentemente – estava lhe desejando feliz aniversário. As pessoas dizem que a idade é só um número. É um número grande conforme você fi ca mais velho, mas se não interfere não me incomoda. Dá para ignorar. É o que faço.

Em relação à obra dos Beatles, você não está tão no controle do legado quanto as pessoas pensam?

A Apple [Corps] é uma democracia. Sou um dos votos. As coisas dos Beatles acontecem por conta própria. Alguém diz: “Ron Howard quer fazer um filme” e posso votar sim ou não. Minha preferência é sim – ele é bom.

Tem de ser uma decisão unânime – você, Ringo, Yoko Ono e Olivia Harrison?

Tem. Esse é o segredo dos Beatles – não dá para ser 3 a 1. Durante a separação, isso foi estragado – fazíamos 3 contra 1, mas, agora, tem de ser unânime. As duas são dos Beatles.

Há coisas para as quais você automaticamente diz “não”? Que tipo de veto você pode ter sobre as músicas dos Beatles quando não é dono da publicação?

Não temos um veto, mas deixamos claro que queremos que o assunto seja tratado com educação – “se for possível, senhor”. Podem ser ofertas financeiramente ótimas, mas colocamos limite em algumas coisas, como um carro que consome combustível demais. Pessoalmente, eu não permitiria música dos Beatles no McDonald’s, particularmente por causa das minhas crenças [McCartney é vegetariano há décadas]. O show Love [em Las Vegas] foi quase assim. O George conhecia o cara do Cirque du Soleil e me levou para ver uma apresenta apresentação. Fiquei embasbacado. Estava totalmente convencido da ideia [de uma produção dos Beatles], mas o clima era: “Não, é sacrossanto. Você não pode fazer isso. Não deve”. Falei: “Espera um pouco, não é sua música”.

As pessoas podem se identificar com os Beatles de um jeito muito...

Possessivo. Nunca demos bola para isso. Alguns fãs se aproximavam querendo algo e você dizia “não, desculpe, estou jantando”. Eles respondiam: “Bom, compramos seus discos”. Retrucávamos: “Então parem de comprar, se é essa a troca”. Sempre fomos assim, Ringo mais do que todos. As pessoas iam à casa dele, que dizia “Cai fora” e batia a porta na cara delas. Não tolerava isso. Você precisa impor limites, senão sua sanidade acaba.

Como você caracterizaria sua relação com a Yoko agora?

É muito boa, na verdade. Nos sentiamos meio ameaçados [na época]. Ela ficava sentada nos amplificadores enquanto gravávamos. A maioria das bandas não conseguiria lidar com isso. Nós conseguimos, mas não incrivelmente bem, porque éramos muito coesos. Não éramos sexistas, mas garotas não entravam no estúdio – elas nos deixavam na hora de gravar. Quando o John começou com a Yoko, ela não ficava na sala de controle. Ficava no meio de nós quatro.

Ainda assim, você contribuiu com aquela citação na capa do álbum Two Virgins (1968), de John e Yoko (“Quando dois grandes santos se encontram, é uma experiência que torna você humilde”).

Meu grande despertar foi: se o John ama essa mulher, deve ser algo bom. Percebi que qualquer resistência era algo que eu tinha de superar. Foi um pouco difícil no começo, mas, gradualmente, conseguimos. Agora, é como se fôssemos grandes amigos. Gosto da Yoko [risos]. Ela é tão Yoko.

Com que frequência vocês quatro se encontram para discutir assuntos dos Beatles?

Pouca. Vejo muito o Ringo, porque ele é um cara adorável. Todos nos encontramos socialmente, vamos a festas. Quanto a reuniões, estou um pouco afastado disso. Saí da Apple durante o período pesado da separação da banda – mandei o [advogado] John Eastman no meu lugar e falei: “Você me conta o que todos estão dizendo, porque não suporto mais sentar àquela mesa”. Foi doloroso demais, como ver a morte de seu animal de estimação preferido. Do jeito que funciona agora, ouço todos os discos. Estou no processo de aprovação, mas a maior parte do trabalho para os Beatles já foi feita.

Sobrou alguma coisa nos arquivos que valha a pena lançar?

Esta é a pergunta: vale a pena? O negócio com os Beatles – era uma bandinha boa pra caramba. Não importa o que você ouça, até coisas que achávamos muito ruins não soam tão más agora. Porque são dos Beatles.

Você consideraria fazer uma turnê com o Ringo?

A ideia nunca surgiu. Nós nos reunimos para coisas como o Hall da Fama do Rock, mas realmente fazer uma turnê juntos – é melhor deixar as coisas como estão.

Sinais errados demais, como “reunião dos Beatles”?

Acho que nenhum dos dois pensou em por que fazer isso ou não. É que nossos caminhos são paralelos, com cruzamentos e desvios. Ele é um ótimo baterista, cara. Esse é o negócio do Ringo. Ele tem um tipo de sentimento que ninguém mais tem. Quanto a botar o pé na estrada juntos, pode ser complicado.

Você estará no Desert Trip com os Rolling Stones. O que vê quando vai a um show deles agora?

É uma miragem. Vejo a banda que sempre conheci. Você tem Mick, Keith e Charlie, que sempre estiveram ali, e o Ronnie – ele merece o posto de stone. Vejo uma boa banda de rock – não tão boa quanto os Beatles [sorri], mas boa.

Que potencial viu em 1963, quando você e John deram “I Wanna Be Your Man” a eles para gravar? Foi o primeiro single dos Stones no Top 10 do Reino Unido.

Você olhava para todas as outras bandas que existiam. Sabíamos quem não era bom. Sabíamos quem era concorrência. Foi bom saber o que estava acontecendo. Ouvíamos falar dos Stones. Eles tocavam no Station Hotel [em Londres]. Fomos vê-los uma noite, no meio da plateia. Lembro que Mick estava no palco de jaqueta cinza batendo palma daquele jeito dele [bate palmas rapidamente].

Dick Rowe, o cara que recusou os Beatles na Decca Records, por acaso perguntou ao George se ele conhecia alguém que valeria a pena contratar. Éramos amigos deles e pensei que “I Wanna Be Your Man” seria boa para que gravassem. Sabia que tocavam coisas do Bo Diddley e eram bons naquilo. Gosto de me exibir, dizer que demos o primeiro sucesso à banda. E foi o que aconteceu.

Agora, “bandinhas” muito boas como a sua e os Stones tocam em palcos gigantescos. Você consegue se imaginar tocando em lugares pequenos só com material novo? É um risco que vale a pena?

Não é um risco. É algo atraente. É uma das coisas que te fazem tocar muito bem, quando você e sua banda estão próximos. Sabíamos disso nos Beatles. Sempre gravávamos em Abbey Road, no Estúdio 2, mas para “Yer Blues” estamos falando de ficar espremidos, como sardinhas em lata. Entramos em um armário – um closet que tinha tomadas para microfone e coisas assim, com uma bateria, amplificadores voltados para as paredes, um microfone para o John. Fizemos “Yer Blues” ao vivo e foi muito bom. Criar novas músicas – é dar um passo adiante. É o que digo sobre as coisas dos Beatles – as ideias simplesmente chegavam. Isso é algo que acabou de vir. Você propôs. E talvez aceitemos.

Em “All Day”, uma das faixas que fez com Kanye West, há um ri que você compôs na guitarra em 1969, mas não usou na época. Qual é a história?

Linda e eu havíamos tido nossa primeira filha, Mary. Ela estava se recuperando – e eu ficava sentado comendo batata frita, com meu violão na clínica, brincando. E havia uma pintura na parede que fiquei olhando durante dias – Picasso, “O Velho Guitarrista Cego”. O sujeito segurava o violão assim [imita a pose do quadro] e uma lâmpada acendeu na minha cabeça: “Que acorde é esse?” Pareciam ser duas cordas. “Sabe o que seria legal? Compor uma música só com dois dedos.” Então, escrevi esta coisa [toca a melodia].

Contei essa história ao Kanye. Assobiei para ele. Seu engenheiro estava gravando e ela entrou na lista de ingredientes. Kanye estava só coletando coisas. Não sentávamos e compúnhamos tanto quanto conversávamos e dávamos ideias um ao outro. Foi só quando peguei esta música, a gravação da Rihanna [“FourFiveSeconds”] e “Only One”, as três faixas que fizemos, que pensei: “Entendi. Ele pegou meu assobio”. Ele voltou para mim como um ri hip-hop urbano. Amo aquele disco.

Você se sentiu como um colaborador ou um coadjuvante? Afinal, está acostumado a comandar uma sessão, ver uma música ser concluída do começo ao fim.

Tivemos algumas tardes juntos no Beverly Hills Hotel. O único acordo que fiz com Kanye foi que, se não desse certo, não contaríamos a ninguém. Eu não conhecia o sistema dele. Ouvia coisas como: “Ele tem uma sala cheia de gente trabalhando em ri s e anda entre eles dizendo ‘gosto disso’.”

Você acha o Kanye um gênio?

Não fico usando muito essa palavra [risos]. Acho que ele é um ótimo artista. Pegue My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010). Botei para tocar enquanto cozinhava e pensei: “É bom. Tem coisas muito inovadoras”. Quando o pessoal dele contatou minha equipe [risos], falei: “Vamos dar uma chance”.

Você ouve hip-hop por diversão? Ou para acompanhar?

Escuto para, digamos, aprender. Ouço muito e às vezes vou a shows. Fui ver Jay Z e Kanye quando fi zeram a turnê juntos. Já vi o Drake ao vivo. É a música do momento.

O que fazem parece tão importante para você nesta era quanto a música que você fazia em 1966 e 1967? As pessoas dizem que o rock morreu, que já teve seu momento como força histórica.

O tempo dirá se é tão bom. Não sou eu que tenho de dizer, mas acho empolgante. Você vai a um clube e ouve um disco ótimo de hip-hop – ele definitivamente dá conta do recado. Não quero comparar com “A Day in the Life”. Para mim, é como reggae, no sentido em que não acho particularmente que consiga fazer isso. Deixo essa para o Bob Marley, para as pessoas que são aquilo. É o mesmo com o hip-hop. Foi empolgante trabalhar com o Kanye, ter uma contribuição para “All Day”. [Sorri] É o melhor ri do disco.

Em seu trabalho com artistas mais jovens, como Kanye ou Dave Grohl, você sente o desafio que teve dentro dos Beatles, especialmente com John? Isso foi substituído de alguma forma?

Não. Acho que nem pode ser. A certa altura, você precisa perceber que algumas coisas simplesmente não podem ser iguais. John e eu éramos crianças crescendo j untas, no mesmo ambiente e com as mesmas infl uências: ele conhece os discos que conheço, eu conheço os discos que ele conhece. Vocês compõem suas primeiras músicas inocentes juntos. Então, escrevem algo que é gravado. Os anos passam e vocês compram roupas mais legais, daí compõem músicas mais legais para combinar com as roupas mais legais. Estávamos no mesmo nível – no mesmo degrau da escada rolante. É insubstituível – esse tempo, a amizade e os laços.

Há pessoas a quem você pode recorrer atualmente para conselhos sobre uma nova música ou um disco novo?

Na música, não tenho. Uso a experiência e o conhecimento do que teria acontecido se tivesse levado tal música para os Beatles. Esse é o melhor teste.

E quanto à vida em geral?

Tenho alguns amigos muito bons. Lorne Michaels (produtor do programa Saturday Night Live) e eu somos bem próximos. Sempre posso sair para tomar um drinque com ele – podemos conversar de verdade. Tenho pessoas da família, meu irmão (Mike McGear) e minha esposa, Nancy. Ela é muito forte nesse sentido. Só que na música não preciso de parceiros É muito difícil. Não dá para superar o John. E o John não poderia superar o Paul.

Seu mais recente álbum de estúdio, New (2013), se mostrou musicalmente agitado e emocionalmente positivo, mas veio depois de alguns trabalhos mais sombrios, até mais tristes, como Chaos and Creation in the Backyard (2005). Foi difícil compor músicas depois da morte de Linda e durante as difi culdades pessoais que se seguiram? (McCartney se divorciou da segunda esposa, Heather Mills, em 2008.)

O lance em New foi a Nancy. Era a pessoa nova em minha vida. Foi um bom despertar. Aquilo me fez querer escrever músicas positivas. A música é como um psiquiatra. Você pode contar à sua guitarra coisas que não pode falar para as pessoas, e ela te responde com coisas que as pessoas não podem te dizer. Há um valor em músicas tristes. Algo ruim acontece – você não quer reprimir, então descarrega em si mesmo, com uma guitarra. Tenho algumas no próximo álbum que são um pouco... [faz uma cara de chocado]. Só que funciona, porque, com as músicas, você pode fazer isso.

Qual é sua rotina diária como pai quando você não está em turnê?

Meus filhos já são adultos, exceto a caçula, Beatrice, de 13 anos. Fico metade do tempo com ela, por causa da custódia. Tento ser completamente ativo. Levanto de manhã e faço café para ela, levo à escola. Converso com os professores, vejo como está indo. Faço doação de algo para o leilão. Coisa bem típica de pai. No final desse período, entro no avião, vou para os Estados Unidos e sou um astro do rock.

Quão difícil foi equilibrar música e fama quando você e Linda estavam criando uma família nos anos 1970 em uma fazenda?

Era uma cultura mais hippie. Meio que educamos as crianças em casa. Ensinei a escrever. Quando estavam em idade escolar, levávamos professores particulares na turnê. Eu tinha de ir à escola, descobrir o que cobririam – geografia, história, matemática – e organizar do jeito mais sensato possível. Fizemos dar certo. Linda e eu sempre dizíamos: “O principal é que tenham um bom coração”. Todos eles têm. E também são muito inteligentes.

Você está em um momento raro – suficientemente velho para ver parte de seu trabalho ser criticado e, décadas mais tarde, elogiado.

Faço álbuns e, tolamente, escuto o que as pessoas dizem sobre eles. Um crítico do New York Times [Richard Goldstein] execrou Sgt. Pepper’s quando foi lançado. O terrível é que isso faz você desanimar da própria música. Mexe com suas inseguranças, embora você as tenha superado para compor aquela música. Um tempo atrás, um dos meus sobrinhos, Jay, disse: “Ram é meu disco preferido de todos os tempos”. Achava que ele estava morto e enterrado, fedendo na vala comum. Daí, botei para tocar. “Uau, agora entendi o que eu estava fazendo na época.”

Ficou decepcionado por seu mais recente single, “Hope for the Future” (2014), não ter sido um sucesso?

Fiquei. Era algo que eu achava que se sairia muito bem. Não saiu.

Você teve de mudar suas expectativas sobre o que forma um hit em comparação com o que sabia em 1966? Desisti de tentar descobrir. Não dá. Como esta coletânea, Pure – um dia me ligaram: “Chegou ao número 3”. “Uau, que legal. Mas quanto vendeu?” “15 mil cópias.” Pensei: “É uma piada, cara – 15 mil não é nada bom”. As coisas são assim agora no mundo da venda de discos, a não ser que você seja Rihanna ou Beyoncé. Gravarei um novo álbum, mas não acho que vá vender muito. Vou lançar porque tenho músicas de que gosto. E farei o melhor que puder. O cenário mudou, mas isso não me perturba. Eu já tive o melhor deste mundo – o single de “Mull of Kintyre” (1977) vendia 100 mil cópias por dia. Já tive a alegria disso. Se não tiver agora, simplesmente isso não me diz respeito. Todos os meus contemporâneos, que ainda são muito bons, não têm isso, porque as coisas seguiram em frente. E quer saber? Já tivemos. E foi ótimo

Ao Vivo

Disco “perdido” dos Beatles ganha relançamento

Lançado em 1977, The Beatles: Live at the Hollywood Bowl (Universal) seguia como o único álbum ao vivo oficial do grupo de Liverpool. Nunca disponibilizado em CD, o trabalho ganha agora uma versão física e digital. Na época, o lançamento foi criticado por juntar arbitrariamente faixas das apresentações dos Beatles no Hollywood

Bowl em Los Angeles realizadas em 1964 e 1965. A gritaria exagerada das fãs também atrapalhava a apreciação musical. Giles Martin, filho do falecido produtor George

Martin, eliminou parte do ruído e também realçou os instrumentos de John, Paul, George e Ringo. Agora a seleção de faixas também faz mais sentido do que antes.

- Paulo Cavalcanti

TAGS: