Romário já foi o melhor jogador de futebol do mundo. Hoje, fora do habitat, é um dos deputados federais de maior destaque em Brasília. Quantos gols mais ele ainda pretende marcar na vida?
Favela do Jacarezinho, zona Norte do Rio de Janeiro, meados dos anos 50. O rádio, aparelho sagrado nos lares brasileiros, está sintonizado no prefixo PRE-8, no programa César de Alencar, o mais ouvido do Brasil. No horário das 15h, a grande atração era intelectual: o fenômeno “Romário, o Homem Dicionário”, célebre pelo vasto vocabulário, que para amplificar o mistério em torno de si ornava a cabeça com turbantes indianos e se fantasiava com vestes exóticas. A semana inteira, os ouvintes estudavam palavras difíceis para desafiá-lo.
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Qualquer um do auditório podia perguntar: “Seu Romário, o que significa ‘zíngaro’?”
Ele concentrava-se por instantes e respondia:
“Cigano, ou boêmio.”
“Uma salva de palmas!”, comandava Alencar. A claque delirava.
Outro desafiante tirava um papelzinho do bolso e investia:
“Me diga o que quer dizer ‘helíaco’.”
Em tom professoral, Romário respondia: “Diz-se do nascimento ou ocaso de um astro”.
Ninguém jamais embolsou o polpudo prêmio que seria pago a quem apresentasse um vocábulo desconhecido para o craque das letras. Reza a história de que não houve sequer uma vez em que ele tenha errado. Romário era imbatível com as palavras.
Dono de espirituosas tiradas, o jovem Edevair de Souza Faria era tão fiel ao programa radiofónico quanto ao América Futebol Clube, seu time do coração. Recém-casado com Manuela Ladislau Faria, a dona Lita, ele buscava um nome importante para batizar o filho que se encaminhava. E não pensou duas vezes em batizar o rebento com o nome do ídolo do rádio. Romário de Souza Faria foi escalado por “Papai do Céu” (como ele gosta de dizer) para entrar em campo no dia 29 de janeiro de 1966. E, tal qual seu homônimo, predestinava-se a acertar incontáveis vezes ao longo da vida. Mas, ao contrário do imbatível Homem Dicionário, a errar outras tantas também.
“Sou bem diferente do Homem Dicionário. Porque de vez em quando eu erro, né?”, assume o baixinho, do alto de seu 1,69 m. Porém, não é preciso dizer que a fama do proverbial “peixe” foi bem mais longe. Da Holanda ao longínquo Qatar, nos Emirados Árabes, o nome de Romário – e suas façanhas – correram o mundo. Apelidos não faltaram: “Gênio da Grande Área”, “Reimário”, “Romágico”. Em 2001, sua marrentice foi satirizada na Escolinha do Professor Raimundo de Chico Anysio, com a paródia “Ramório”. Os fãs, para recordar os feitos heroicos nos 11 clubes para os quais o jogador emprestou sua arte (cronologicamente: Estrelinha, Vasco da Gama, PSV Eindhoven, Barcelona, Flamengo, Valencia, Fluminense, Al-Sadd, Miami, Adelaide United e, realizando o sonho do falecido pai, o adorado América, pelo qual disputou uma única partida), instituíram, em 11 de novembro de 2011, o “Romarian Day”.
Atualmente fora dos gramados, palco habitado profissionalmente por mais de 20 anos, é no minado campo da política nacional que, até 2015, o deputado federal Romário disputará suas partidas. Em uma chuvosa tarde de terça-feira de março, ele está sentado relaxadamente em seu escritório abafado de 40 metros quadrados, no anexo da Câmara dos Deputados. O número do gabinete (411) alude ao cabalístico 11 da camisa com que inúmeras vezes se sagrou campeão. Vestindo o amarelo da seleção, o centroavante – escudado pelo parceiro Bebeto – foi o expoente decisivo da conquista do tetra na Copa dos Estados Unidos, em 1994. Na estante no canto, descansa uma réplica da Taça Fifa que ele levantou em 17 de julho daquele ano.
Amaury Jr., veterano colunista televisivo, também está na sala, e quer saber de Romário se ele frequenta as baladas de Brasília. “Já tive bastantes fraquezas”, ele confidencia. Durante o expediente, de terça a quinta-feira e sem hora para terminar, o gabinete é assolado constantemente por políticos, representantes de entidades e toda sorte de pessoas em busca de algum tipo de apoio. Pedem desde autógrafos, cessão de imagem, passagens e, se for possível, até dinheiro vivo. Em cima da mesa, uma pilha de objetos (livros, fotografias, fardamentos oficiais) o aguarda para que neles Romário eternize o autógrafo. A maior parte do material é relacionado ao Vasco, flâmula com a qual os torcedores mais o identificam. O telefone toca intermitentemente. Uma das ligações, revela a secretária, é de Andrew Parsons, presidente do Comitê Paraolímpico Brasileiro. “Precisa urgentemente falar com o deputado”, ela explica.
Coberta por fios prateados, a cabeça de Romário não esconde a calvície. Em 2007, quando atuava pelo Vasco, a queda de cabelo chegou a levá-lo à suspensão de 120 dias nos jogos do Campeonato Brasileiro. Tudo por causa da loção Propécia (para o combate da queda de cabelo), que contém a substância finasterida, proibida pelo Controle de Dopagem da CBF. “Se [o remédio] fazia algum efeito era ao contrário, pois eu corria cada vez menos e fazia menos gols. Até brinquei, na época, que era o ‘doping do Paraguai’”, diz, acariciando a cabeça e esboçando um raro sorriso (na verdade, ele é “tímido”, garante a assessora).
Na ocasião, Romário está trajando um bem cortado terno Armani azul-petróleo riscado com listras brancas. Embora tenha cursado dois períodos de educação física na Universidade Castelo Branco (RJ), poucos sabem que ele também estudou Design de Moda na faculdade Estácio de Sá, visando ser “estilista de moda masculina e feminina”. É elegante e vaidoso, mas não se considera metrossexual. E, ainda que carregue marca de furo na orelha, ao menos na vida pública dispensou o clássico brinquinho. Ligeiramente caídos e avermelhados, os olhos estão sempre atentos, como se vigilantes, e a língua, levemente presa, permanece afiada. Romário atende o celular, fala rapidamente e, após desligar, volta-se em minha direção. “O cara ligou pra avisar que hoje vai ter uma reunião pra decidir se vai ter uma reunião amanhã. Foda, né?”
Você continua lendo a entrevista com Romário na edição 67 da Rolling Stone Brasil, nas bancas a partir de 12/4. Nela, o deputado-jogador critica os preparativos para Copa (“Vai ser uma Copa da mentira. Vamos passar vergonha”, ele decreta), alfineta Ronaldo Fenômeno e se abre sobre sua vida pessoal.
Em encontros profissionais, entretanto, Romário mantém a seriedade constante e jamais fala palavrões. Apesar de me deixar à vontade para chamá-lo tanto pelo nome de batismo como pelo protocolar “deputado”, os assessores o tratam somente pela deferência “senhor”, como se ignorassem que, dentro das quatro linhas, aquele é o homem que fez mais de mil gols e realizou outras mil façanhas (melhor do Brasil, melhor da América, melhor do mundo). “Se for pôr na balança, no futebol tive muito mais coisas positivas do que negativas. Umas 80% positivas e 20% negativas”, ele mensura, professando a “filosofia romariana” de que ninguém vive apenas de coisas boas. Com o pai, seu Edevair – que montou um time de futebol, o Estrelinha, especialmente para Romário e o irmão Ronaldo –, ele afirma ter aprendido que tudo o que é muito bom sempre tem algo de ruim, e vice-versa. “Foram ensinamentos valiosos”, prega.
Bem ao estilo Pelé (o “poeta de boca fechada” que Romário, contudo, considera o “Atleta do Século”), o deputado fala na terceira pessoa sobre como finalmente amadureceu. As pessoas, diz ele, têm reconhecido que o Romário de hoje, aos 46 anos, é bastante diferente daquele fanfarrão e bad boy de 20 anos atrás, que só queria curtir a vida. “Mas eu sempre falei o que quis”, afirma. A diferença crucial é que agora goza de imunidade parlamentar, que, teoricamente, permite-lhe falar ainda mais. De qualquer forma, mesmo quando não a possuía, sempre falou o que bem entendeu. “Eu ainda digo o que quero e continuarei falando sempre”, repete. Romário crê que as quase 150 mil pessoas que votaram nele em 2010 esperam atitudes semelhantes às que tinha quando era jogador. “Muitos colegas desta Casa talvez não gostem de ouvir o que eu digo, mas são pessoas que não têm seriedade. Aqui tem muito mau caráter. Gente que, definitivamente, não é do bem.”
O Romário político, que diz não ter amigos no futebol, move-se sobre os gramados da Câmara com uma desenvoltura que jamais sonhou ter, destoando de outros parlamentares egressos do meio esportivo cujo pecado mais grave é a falta de conteúdo político. Jogo de cintura, predicado essencial para as disputas travadas em Brasília, todavia, não é seu forte maior. Ainda mais para quem nunca teve papas na língua. Em seu primeiro ano de mandato, já se pode dizer que Romário não é um estranho nesse ninho de velhas raposas, caciques e cobras da política nacional.
O espinhoso tema Copa do Mundo 2014 parece ser o favorito de Romário. De cara, ele observa que não há sequer um ex-jogador ocupando cargos diretivos da Confederação Brasileira de Futebol. “Tem gente ali que nunca jogou uma partida de futebol na vida”, detona. Sobra até para Ronaldo “Fenômeno”. “Ele diz que quer ser presidente da CBF, mas só depois que passar a confusão da Copa. Assim é fácil.”
Romário também lamenta o fato de que apenas 20% do público dos estádios será formado por brasileiros. O restante, alega, serão torcedores de outros países “acostumados a beber”, e por isso prevê problemas caso a cerveja não seja liberada durante os jogos. “É só a Fifa pôr maior números de seguranças”, opina. O debate em torno da liberação da venda de bebidas alcoólicas é apenas a ponta do iceberg no mar de críticas que Romário faz sobre a realização do evento no país.
“Não foi a Fifa que pediu que a Copa fosse aqui”, ele recomeça. “Todas as exigências que foram feitas no protocolo de intenções assinado em 2008, como a questão da mobilidade urbana, o Brasil já sabia de antemão. Agora, já não dá mais tempo!” Ele também crê que muitas das solicitações impostas pela federação estão acima da soberania nacional. “A Fifa é uma empresa e, sendo uma empresa, não pode ‘apitar’ no nosso poder Judiciário. Quem são eles para ter esse poder?”, reclama. “Não podemos permitir que, durante seis meses, a Fifa monte um Estado dentro de nosso Estado.”
Há quatro anos, ele continua, a Copa foi orçada em R$ 52 bilhões, valor anunciado por Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil. A cifra, porém, já está na casa dos R$ 80 bilhões. “E você pode escrever, o valor vai bater os R$ 200 bilhões”, diz, citando o dia em que Joseph Blatter, presidente da Fifa, quis saber de Romário se o Brasil teria condições de fazer a maior Copa de todos os tempos. Ele, que naquele tempo ainda não atuava na política, respondeu: “Não só tem condições como fará a maior Copa da história”. Hoje, diz se arrepender das palavras. “Retiro o que eu afirmei na época: o Brasil não vai fazer a maior Copa de todos os tempos. E não adianta ficar pirando! Vamos passar vergonha.” A “maior Copa de todos os tempos”, para o eterno camisa 11, será exclusiva das classes A e B, que circularão em jatinhos particulares, ficarão em hotéis cinco estrelas e assistirão aos jogos de camarote.
“Será a Copa da mentira, onde tudo será maquiado”, sentencia. “No Brasil, infelizmente é assim.” Não raro, os correligionários de Romário o advertem quanto à língua ferina: “Cuidado, você está falando muito”. Ele se defende. “Não estou chamando ninguém de ladrão, só estou dizendo que vão roubar. Isso é claro e já estou prevendo.” Muito dinheiro investido na Copa, na concepção do deputado, é gasto à toa. Apenas no Maracanã – cujas obras chama de “imbecilidade” – mais de R$ 1 bilhão será investido. Sobre Ricardo Teixeira, desmente que tenha sido amigo do homem que comandou o futebol brasileiro por 23 anos, mas confirma que, quando vestiu a camisa da seleção, tiveram boa convivência. A relação começou a ruir em 2002, pouco antes da conquista do pentacampeonato mundial. “Um dia, ele apertou minha mão e, olhando nos meus olhos, prometeu que eu iria para a Copa. Disse: ‘O Felipão [Scolari] é o treinador, mas quem manda de verdade sou eu’.” No dia da convocação, Romário descobriu que seu nome não estava entre os escolhidos. Hoje, o deputado mantém, inclusive, a polêmica frase “extirpamos um câncer”, dita quando Teixeira renunciou ao cargo, na CBF, em 12 de março. “Estava mais do que na hora de ele pedir pra sair. Saiu da CBF, do COL [Comitê Organizador Local] e agora da Fifa. Fez certo. É muito melhor sair do que ser expulso.”
“Muito ruim” é a opinião de Romário sobre o atual desempenho da seleção brasileira, mas afirma que o fraco futebol apresentado pelo time não é motivo para mudar de treinador (“só quando a coisa ficar feia”). Questionado sobre Neymar – para quem Romário pretende “dar uns conselhos sobre pensão alimentícia” –, diz que apesar de já ser uma realidade do futebol, é um profissional que está começando, que não teve a oportunidade de mostrar na seleção tudo que sabe. “Isso acontece com o tempo. Eu acredito que Neymar será uma de nossas grandes esperanças para conseguirmos o hexa.” Já com o argentino Messi, Romário não é condescendente, apesar de considerá-lo o melhor do mundo na atualidade. “É um atleta diferenciado, que evolui a cada ano. Mas, para estar entre os cinco maiores do mundo, ainda necessita ganhar um mundial. Precisa de uma Copa no currículo dele”, alfineta.
Mas nem só de glórias é feita a vida de um Romário. Fama e dinheiro em demasia também atraem confusões e problemas. A maior delas, certamente, aconteceu às vésperas da Copa de 1994, quando Edevair Faria foi sequestrado no Rio de Janeiro. Os criminosos, que terminaram presos, exigiram US$ 7 milhões para libertar o pai de Romário, solto do cativeiro sete dias depois. Em 2003, agrediu um torcedor do Fluminense que arremessou galinhas vivas no campo de treinamento, em protesto pela péssima campanha do time. Acabou processado. E em 2009 foi parar na delegacia, acusado pela ex-mulher, a modelo Mônica Santoro, de não pagar a pensão alimentícia dos filhos Romarinho, 18, também jogador de futebol, e Moniquinha. O juiz que ordenou a prisão entendeu que o ex-jogador do Vasco devia à esposa dois meses de pensão, soma que totalizava R$ 50 mil. “Na verdade, já tive a oportunidade de dormir numa delegacia duas vezes”, lembra Romário sobre a “fase negativa do caralho, em que nada dava certo”. Mas ele mesmo admite que, na relação de marido e mulher, é “meio difícil de conviver”.
“Eu era muito difícil de conviver”, ele corrige.
“Tenho melhorado muito. O tempo vai passando e a gente vai melhorando.”
A entrevista precisa ser interrompida para que Romário vá a uma reunião externa. Embarcamos no automóvel oficial, de chapa branca, estacionado na vaga 411 da garagem da Câmara. O destino é o Setor de Autarquias, conjunto arquitetônico onde enfileiram-se edifícios de órgãos do Governo Federal. É hora do rush na chuvosa e engarrafada capital federal, cidade pela qual Romário se diz apaixonado e onde às vezes sai a esmo em busca de lugares para “dançar funk e hip-hop com os amigos”. Em terra firme, andar pelas entrequadras de Brasília ao lado de um astro do futebol como Romário é presenciar o tamanho de sua popularidade. Ele tenta ser discreto, mas passar incólume é impossível. Em uma reunião a portas fechadas no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o deputado conversa com o presidente da instituição, Mauro Hauschild. O tema é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para o qual o parlamentar apresentou duas emendas que beneficiarão pessoas com deficiência. Uma delas garante que o deficiente, contratado como aprendiz, acumule salário por até dois anos. No encontro, Romário revela-se expert em diversas doenças, citando, com admirável facilidade, nomes de enfermidades como autismo, hanseníase e esclerose lateral amiotrófica. Na verdade, ele quer saber quanto custaria aos cofres públicos elevar o BPC, hoje correspondente a um quarto de salário mínimo, para um salário integral. “Em torno de R$ 50 bilhões anuais”, responde Hauschild. Romário chuta de bico: “Se gastam R$ 1 bilhão em um estádio de futebol, não é tão caro assim”.
De volta à Câmara, mais compromissos esperam o parlamentar, entre eles uma votação nominal sobre a aguardada Lei Geral da Copa. No caminho, Romário encontra a deputada Luiza Erundina, companheira de PSB, com quem mantém uma relação quase maternal. Romário é fã de Erundina, e ela dá conselhos políticos a ele. Na mão inversa, é provável que ela seja uma das únicas pessoas do universo político para quem o ex-atleta oferece qualquer abertura. De volta ao gabinete, ele aproveita para checar as redes sociais pelo celular, em que ele próprio (na maioria das vezes) escreve e posta os textos, cuidadoso para preservar as peculiaridades de sua linguagem.
“Quando entrei na política, tinha cerca de 200 mil seguidores [no Twitter]. Hoje estou com mais de 430 mil e, com certeza, muitos desses novos pertencem à classe ‘top’ do Brasil”, Romário comemora. “Nas ruas, vejo que 80% dos que votaram em mim são da classe C, D e E. Atualmente, muitas pessoas da classe A cumprimentam-me e dizem que me darão voto nas próximas eleições. Ganhei credibilidade de quem achou que eu seria mais um bobalhão que entrou na política para defender causas perdidas ou roubar. Pô, tem deputado que tem 16 anos de Câmara e nunca fez porra nenhuma! Eu boto a minha cabecinha no travesseiro e durmo.”
O dia seguinte é especial para romário. Na solenidade do Dia Internacional da Síndrome de Down, o deputado está abancado ao lado do presidente do Senado, José Sarney, e da senadora Marta Suplicy, em cerimônia acompanhada pelo ministro da Educação, Aloizio Mercadante. Sarney cochicha ao pé do ouvido de Romário, que sorri. Mostrando intimidade, o senador e ex-cara pintada Lindbergh Faria faz um cafuné na cabeça do ex-craque. Estão todos harmoniosamente comungados, em uma cena até estranha de ser presenciada. Em reconhecimento à dedicação à causa dos deficientes, Romário é presenteado com um singelo quadro cuja pintura não poderia deixar de ser outra: um peixe. Assim como o Homem Dicionário, Romário demonstra uma intimidade nata com as palavras. Despreza por completo o discurso que, na noite anterior, havia escrito de próprio punho conforme manda o idioma “romariano”. As frases saem certeiras como um de seus 1.003 gols: “Papai do Céu pôs um anjo no meu colo”, repete o bordão tantas vezes dito. Ele se refere à Ivy, 7 anos, a filha portadora de síndrome de Down que tem com Isabelle Bittencourt, a atual esposa. Romário é aplaudido.
Das suas “bandeiras brancas”, o combate ao crack é uma das que hasteia com mais insistência. O esporte – não apenas o futebol – é, para ele, a melhor arma contra as drogas e o caminho ideal para a juventude, principalmente no momento em que o Brasil está prestes a receber a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos e as Paraolimpíadas. Romário se declara favorável à internação compulsória de dependentes (“O governo tem que pegar essas pessoas e tratar, independentemente de elas quererem ou não. É uma forma de mostrar à sociedade que está fazendo algo”) e compara o atual apelo do crack ao do futebol (“Ainda é o esporte que se joga em qualquer lugar, mas infelizmente eu tenho que te afirmar: o crack pegou de tal forma que até mesmo o futebol está perdendo pra ele”).
Mas nem só de causas óbvias vive Romário. Ele também é radicalmente contra um projeto em tramitação no Senado que, caso seja aprovado, redistribuirá os lucros de extração de petróleo com outros estados e subtrairá, até 2020, cerca de R$ 9 bilhões dos cofres do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Foi, também, contrário à já aprovada “PEC da Música”, votando “em favor da Amazônia”. “Tiramos da Amazônia [com a PEC] cerca de 80 mil empregos que eram das pessoas que trabalhavam na Zona Franca de Manaus. E o que essas pessoas vão fazer daqui pra frente? Vão desmatar a Amazônia.” Ele não se furta de falar nem mesmo sobre casamento homossexual. “Eu sou a favor de que as pessoas sejam felizes. Se um homem encontrar em outro homem a felicidade, que sejam felizes para sempre. Eu não quero isso pra mim e, sinceramente, não gostaria pro meu filho. Em outras palavras: cada um dá o que é seu. Vou eu me meter no que é dos outros?” Ambivalente, diz entender e respeitar 100% a posição do polémico deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), radicalmente contra a união gay: “Eu não sou igual a ele, mas se ele está onde está, é porque existem pessoas que votam nele. Não vou dizer que sou contra o Bolsonaro. Eu respeito ele pra caralho”.
Quando menciono as estripulias dos tempos de jogador, como as célebres fugas de concentrações, Romário quer saber: “Qual delas? Já fugi várias vezes de concentração. Sempre disseram que eu fugia das concentrações. Mas, na realidade, sempre saí pela porta da frente”. Os responsáveis, afirma, faziam vista grossa ou fingiam não ver. E aproveita para desmentir os recentes comentários de Ronaldo sobre a famosa escapada que deram em 1997, durante a Copa América disputada na Bolívia: o Fenômeno disse que, na ocasião, fugiu a convite de Romário.
“Ele saiu porque quis, não foi culpa minha”, Romário entrega. “Fomos a uma festa que estava rolando na casa de um pessoal de faculdade. Ficamos mais ou menos três ou quatro horas trocando ideia e ouvindo música. Eu nunca fui de beber e Ronaldo, ao menos naquela época, não bebia. Tinha umas mulheres bonitas lá e, infelizmente, não aconteceu nada de mais. E não foi por falta de querer. Eu até queria, mas elas que não quiseram.” E confessa, exibindo a marra de costume: “Sempre que eu transava antes do jogo, me sentia mais leve”.
No livro Futebol ao sol e à sombra, o escritor uruguaio Eduardo Galeano cantou em prosa e verso as façanhas de Romário e de outras lendas do futebol. “Um jogador”, escreveu, “que nasceu na miséria, mas desde menino ensaiava a assinatura para os muitos autógrafos que iria assinar na vida. Um apreciador da noite, farrista, que sempre disse o que pensava sem pensar no que dizia. Vindo sabe-se de que região do ar, o tigre aparece, dá o seu bote e se esfuma. O goleiro, preso na sua jaula, não tem tempo nem de piscar. Num lampejo, Romário mete seus gols de meia volta, de bicicleta, de voleio, de trivela, de calcanhar, de ponta ou de perfil”. São palavras de indiscutível beleza. Mas ninguém melhor do que o próprio Romário para capturar a si mesmo com a precisão com a qual assinalou seus gols.
“Uma pessoa do bem, antes de mais nada”, ele se define. “Amigo dos amigos e que continua gostando das mesmas coisas de quando tinha 20 anos. Um cara com defeitos e virtudes, que vê a vida diferente de alguns anos atrás e que não cometeria hoje alguns erros do passado. Discreto e sempre na dele, que ama seus filhos. Sobretudo, que está amarradão com a política. Consciente de que a cada dia pode fazer mais e mais.” O peixe, que ao longo de sua vida fez dos gramados do mundo a sua água, já sabe nadar com destreza no aquário de tubarões que é Brasília.