Encontrei eduardo pela primeira vez não muito depois de me formar na faculdade. Ele tinha acabado de se livrar de uma doença séria que nem vale a pena citar e foi contar a novidade a um amigo, com quem eu dividia o apartamento. Estava só e fui o receptor da boa nova monossilábica, "diz pra ele que melhorei", proferida por um dos caras que influenciou toda uma geração de jornalistas gaúchos na época em que apresentava o antológico programa de cultura pop Pra Começo de Conversa, na TVE-RS.
Uma década depois, nos anos 90, presenciei uma cena sintomática do escritor e jornalista de 49 anos, desde os 17 também conhecido como Peninha. Uma madame estacionou em fila dupla para comprar pão na padaria mais hype da rua mais in do bairro mais badalado de Porto Alegre (o Moinhos de Vento). Saiu calmamente do carro, deixou a porta aberta, entrou na fila para ser atendida. A rua Padre Chagas ficou totalmente engarrafada.
Na mesma hora, a duas quadras dali, Eduardo Bueno tirou sua Blazer da garagem do escritório. Pôs Mozart para tocar. Permaneceu alguns minutos parado no caos urbano ao som de flautas, clarinetas, fagotes e oboés, até resolver averiguar o que inviabilizava o trânsito. Saiu caminhando em frente, deparou com o automóvel que atravancava o fluxo, entrou na padaria e, aos berros, perguntou de quem era o veículo. Impávida, a dona afirmou que só sairia de lá quando fosse atendida.
Espumando de raiva, feito Michael Douglas de Um Dia de Fúria (1993), o vegetariano convicto desde 11 de agosto de 1980, 1,89 metro de altura, 80 quilos, fã de Bob Dylan, gremista fanático, amante incondicional da literatura beat, até então autor de apenas um livro, a biografia do Mamonas Assassinas (Mamonas Assassinas: Blá, Blá, Blá: a Biografia Autorizada), subiu no capô do carro mal estacionado e começou a pular. Até afundar a lataria. No final da cena, apesar de ter se estatelado no chão umedecido pela garoa porto-alegrense, levantou-se altivo para saborear a onda crescente de aplausos que vinha do café mais lotado da região. A madame ficou calada. "Tenho certeza de que ela nunca mais estacionou em fila dupla", completa Eduardo. E ele acredita que o país que descreve com pegada pop nos seus livros de história carece desse tipo de atitude. "As pessoas precisam agir. Meu sonho é a terapia dos tacos de beisebol", exagera o controverso escritor best-seller em um exercício retórico de virulência verbal. É assim que comumente se expressa sobre o mundo. Não sem antes reiterar que ninguém deve confiar no que diz, apenas no que escreve (ele diz "tacos de beisebol", mas não escreveria a respeito deles). "Sou contra a violência, mas defendo atitudes firmes. Lúcia, minha ex-mulher, sempre me imaginava como o síndico do mundo, de pijama azul listrado, com um revólver na mão e de chinelo, caminhando pelas ruas e dizendo 'isso pode, isso não pode!'. Não quero ser o síndico do mundo, mas ao mesmo tempo me sinto compelido a isso!"
Falando ou escrevendo, Eduardo Bueno é "a man with a mission", sem intermediários, sem censura, às vezes sem noção. Com freqüência, o geminiano começa as frases como Eduardo e termina como Peninha, a persona que lhe possibilita soar hiperbólico e escrever máximas como "futebol arte é coisa de veado" (de seu livro Grêmio: Nada Pode Ser Maior). Ele não tem pudor de parecer caricato para imprimir sua versão jornalística sobre o DNA do Brasil e jamais se afirma como o dono da verdade. Prefere acreditar e difundir que a história tem muitas verdades. Quem o viu histérico na fila dupla da Padre Chagas, histriônico em entrevistas sobre sexo, drogas & rock'n'roll, ou ensandecido torcendo pelo Grêmio nas arquibancadas do Estádio Olímpico, não se surpreendeu ao se deparar com ele nas telas da Globo travestido de personagens históricos no quadro É Muita História, do Fantástico, que foi ao ar entre setembro e outubro deste ano, co-apresentado pelo velho e bom amigo Pedro Bial - com quem não falava desde a Copa de 1998, pela sinceridade que lhe é peculiar: "Inventaram que o Bial estava comendo a Suzana Werner, que namorava o Ronaldo na época, e vieram me perguntar se era verdade. Falei que, conhecendo ele, não duvidaria, mas nunca afirmei que sabia de algo", explica Bueno. "Aí rolou um mal-entendido, disseram para ele que tinha plantado a história e ficamos um tempão sem nos falar."
Assim como desconstrói mitos sagrados, Eduardo subverte a crítica e admite sem qualquer constrangimento que pagou mico no quadro do Fantástico, em parte porque atribui ao programa problemas de edição e não pôde dar o final cut que gostaria, sobretudo por acreditar que vale a pena se expôr para atingir seus objetivos - entre eles não está a grana, diga-se: ele não recebeu mais do que R$ 8 mil por programa, além do crédito do livro do qual se basearam os textos, Brasil: Uma História - A Incrível Saga de um País. "Quem me critica [aproxima-se do gravador e grita, como se tivesse falando para uma multidão] deveria ver o povo na rua me perguntando se era verdade que Tiradentes não tinha cabelo nem barba", desabafa o alvo predileto de historiadores inconformados com sua abordagem da história e atuação na TV. "Me divido entre uma profunda pena deles e de mim próprio por estar inserido nessa discussão e uma angústia de não poder torná-la pública e efetiva", provoca. "Tenho consciência de que seria muito cruel chamar esses caras para uma discussão, mesmo porque os únicos historiadores que me interessam não querem discutir comigo, porque entendem o que faço [cita sem pausa]: Nicolau Sevcenko, Lili Schwarcz, Mary Del Priore, Max Justo Guedes, Kenneth Maxwell, Leslie Bethell, eles sabem a grandeza e a 'pequenês' da minha obra. Grandeza no sentido de que popularizou a história com uma dimensão até então inédita, 'pequenês' por não se propor a ser uma investigação historiográfica, embora tenha se tornado em muitos momentos."
Quando parece que Eduardo vai parar, engata uma quinta marcha com um ar sério, e baixa a voz: "Nunca quis contar isso antes, mas duas crianças, uma de 7 [sete!, levanta a voz] e outra de 8 anos [oito!, levanta a voz], me disseram 'vou ser historiador por sua causa'. Outras cinco pessoas me revelaram que 'nunca tinham lido um livro antes na vida!' [aí ele gagueja de emoção verdadeira e não consegue falar mais nada] O que eu vou querer mais? Vou discutir? Não vou, né?"
O autor dos livros sobre a história do Brasil colonial - A Viagem do Descobrimento; Náufragos, Traficantes e Degredados; Capitães de Areia; e A Coroa, a Cruz e a Espada - que já venderam exorbitantes 840 mil exemplares se propõe a discutir a maneira como o passado influi no presente e esboça o futuro. "A crise do Brasil é moral e ética por sermos um povo de desterrados, transplantados, que não sabem de onde vieram e nem pra onde vão" [eleva novamente o tom de voz e mira o gravador]. "Se tu não sabes que tempos são estes, e não tens a menor consciência histórica do lugar onde vives, és um joguete nas mãos de alguma coisa que a teoria conspiratória te levaria a crer que é obra de políticos. É preciso buscar uma consciência histórica maior para tu poderes exercer teus direitos, tua cidadania."
- Quer dizer que os políticos não têm culpa nesse processo?
"Não, eu não consigo acreditar na classe política. Não acredito, não consigo acreditar [exaltado]. Renego! [levanta a voz]. A solução do mundo passa pelos direitos do indivíduo. Nesse sentido, a classe política brasileira é repugnante, desprezível, vomitativa, perturbadora. Tem uma frase portuguesa que explica muito o Brasil: aos amigos tudo, aos inimigos, a lei. É uma loucura. A lei verdadeira não é a lei que esses caras aplicam e exercem."
A lei para o jornalista que cutuca os detratores ao se proclamar historiador com "I" maiúsculo é o poder do indivíduo: "Em países onde as pessoas têm uma visão histórica e política mais completa, elas têm um exercício de sua ação individual mais completo também. Eu só respeito o indivíduo. Por respeitar a mim, respeito o indivíduo único, indivizível. É isso que me liga com a Rolling Stone. Quando aquela turma de São Francisco fundou a revista, foi baseado em um ideal sessentista, global e que propunha uma ação conjunta, inspirada por conceitos superamericanos e superindividuais, encontrados em Henry David Thoreau, nos livros Princípios da Desobediência Civil e Walden, e no livro Folhas da Relva, do Walt Whitman, cuja primeira frase é 'eu canto a mim mesmo'. Confundir isso com egocentrismo é um equívoco. Quando tu consegues cantar a si mesmo, tá cantando a todos. Os Estados Unidos têm muito disso, a Rolling Stone foi um veículo disso, e por isso me influenciou tanto. Quando parece que estou fazendo uma ação individual, tresloucada, estou fazendo algo social, cara! [aqui Eduardo abre um de seus tantos parênteses verbais para enaltecer o único político que suporta, Fernando Gabeira: "Ele teve a experiência do corpo, da droga, da transcendência, do budismo, a vegetariana, a militante, se envolveu no seqüestro do embaixador americano! Sei o quanto o Gabeira venera os Estados Unidos no sentido do que eles têm de melhor! Gabeira pra presidente já! Nem que seja do Jardim Botânico! Essa é uma frase boa, né?, indaga depois de repeti-la, antes de fechar o parêntese].
Eduardo "Peninha" Bueno encara a história como um ser vivo, mutante, orgânico, aventuresco, tão cheio de energia quanto o ser delirante que me recebeu em seu escritório/apartamento alugado na rua Mariante, em Porto Alegre, para a primeira e a terceira rodadas desta reportagem (ambas embaladas por goles de cerveja preta que compramos em um supermercado próximo, onde pude comprovar sua porção celebridade junto aos caixas, empacotadores e clientes - excitados ou contrariados com o pijama de Getúlio Vargas, a diarréia de D. Pedro I, o boi voador de Maurício de Nassau). O apartamento do edifício Livonius onde ele foi morar desde a terceira separação é um-tudo-ao-mesmo-tempo-agora em todos os sentidos. É um reduto de sua memorabilia pop, lar de mais de 200 bonequinhos (de Elvis a Batman, passando por muitos Tintins), de quadros não necessariamente pregados às paredes, de crachás dependurados por todos os cantos, de miniaturas de caravelas, de elepês de rock, de bonecos e flâmulas e manuscritos do Grêmio, de fotos das filhas e de Bob Dylan, de milhares de recortes de jornal, de gavetas muito bagunçadas que guardam a primeira carteira (com um desenho do Bambi) e do sleeping bag que nunca mais usou, mas sempre será sua "roupa" predileta.
Nas prateleiras pretas de metal, em armários e mesas, pelo chão, pelas camas, no banheiro, na despensa, na escrivaninha, estão espalhados os 7 mil livros de sua coleção. Ele mesmo já lançou 22, dez para a venda, 12 sob encomenda - entre estes os da história da Caixa Federal, da Anvisa, e da propaganda dos medicamentos do país. "Cheguei a ganhar R$ 4 milhões em dois anos", revela, numa conta que não inclui seus custos. "Qualquer idiota ficaria rico, mas sempre gasto mais do que recebo", admite o homem que despreza o dinheiro, mas adora o que a grana compra. "Não sei lidar com dinheiro - ou é demais ou é de menos - nunca é na medida certa." Com o que recebe dos royalties dos livros e das dezenas de animadas e informativas palestras que faz pelo Brasil, Eduardo ajuda a sustentar as duas enteadas (Flora e Belém, de quem assumiu a paternidade desde que são pequenas e se nega a não chamar de filhas) e a filha biológica Lízia. Quando começou a faturar como escritor, teve de pagar só de multa R$ 486 mil pelo imposto de renda que tinha deixado de declarar, em parte por descuido, um pouco por convicção. "Fiquei muito revoltado de pagar um imposto sórdido para sustentar esses políticos imundos, esse judiciário com bandas podres, esse executivo que não executa nada, a não ser o meu saco", declara enfático. "Embora prefira o movimento 'Peidei' do que o 'Cansei', essa revolta do empresariado, que também é desprezível em grande parte, é totalmente genuína. Apóio um movimento de sonegação gigantesco, que estrangule esse funcionalismo público ineficiente. Não agüento mais sustentar essa gente!" [Como aqui a prática tem de ser diferente do discurso, Eduardo contratou há um bom tempo o único irmão, o fotógrafo Fernando Bueno, para administrar sua carreira].
Na segunda noite desta reportagem, fui com Eduardo a uma exposição de fotos antigas sobre Porto Alegre, onde ele nasceu. Nenhuma imagem passou sem comentários minuciosos. Ele é uma espécie de GPS da história. Sabe o significado do nome de qualquer rua de qualquer cidade brasileira, lembra de todas as datas históricas e remotamente históricas, identifica se o chão em que estamos pisando é de basalto, arenito ou granito. Ao ver um senhor observando uma foto do aterro do lago Guaíba, explica com detalhes como, quando e por que a obra foi feita. Em segundos, conversa com o desconhecido como se fossem velhos amigos da escola, ao ponto de criticá-lo quando descobre que torce pelo Inter, o rival dos campos de futebol - quando quer criticar alguém, ele apela com desdém: "Deve ser colorado!".
Minutos depois, alega delirante que depois de fumar maconha ao ar livre pela primeira vez e de comer cogumelos alucinógenos, com 17 anos, em Santa Catarina, descobriu que vive em tempos justapostos que se entrelaçam. Naquela viagem ele já estava vivendo os primeiros efeitos do estimulante que definitivamente mudou sua vida, lhe fez botar o pé na estrada, amar a cultura norte-americana, querer ser índio, aprender a falar em inglês. Eduardo Bueno nunca tinha ouvido Bob Dylan até 1974, quando escutou o álbum Before the Flood. Nunca mais parou de ouvir. Chapado pela voz anasalada do autor de "Like a Rolling Stone", sua música predileta, começou a se interessar por tudo e qualquer coisa que o conectasse ao poeta que buscava respostas no vento.
Foi por isso que leu Enterrem meu Coração na Curva do Rio, o relato de Dee Brown sobre a destruição dos índios da América do Norte que lhe mostrou todas as possibilidades de um bom livro de história, e que se contaminou pelos beats e caiu na estrada em 1978, para refazer a trilha de Jack Kerouac, autor da obra mais importante do movimento, On the Road.
A viagem começou na ponta do Sagres, em Portugal - "onde exorcisei um monte de conexões e decidi escrever sobre a história do Brasil, sob o efeito de ópio". Depois de percorrer mais de 15 países da Europa e Ásia e tomar todos os ácidos e fumar todas as drogas que seu pouco dinheiro permitia, voou para Nova York, onde começou a seguir, de carona, a trilha de Kerouac descrita em On the Road. A trip incluiu uma parada de um mês em Real de Catorce, no deserto de Sonora, onde tomou peiote com os índios locais, e terminou em Ganchos, Santa Catarina, um ano e quatro meses depois.
Se a Europa despertou nele a vontade de escrever sobre o Brasil, os Estados Unidos lhe deram um sentido pop até então desconhecido. Imerso na contracultura norte-americana, Eduardo resolveu traduzir On the Road, que acabou publicado apenas em fevereiro de 1984, com o título Pé na Estrada - Antônio Bivar divide os créditos da tradução. O sucesso do livro, que vendeu 150 mil cópias, deflagrou a literatura beat no país. A essência libertária da obra é sua Bíblia. Por isso ele desconfia da escolha de Walter Salles para dirigir o filme sobre as peripécias de Dean Moriarty e Sal Paradise. "Acho inconcebível, não é a visão, não é a linguagem. É óbvio que tenho uma pitada de inveja dele, mas não dá, vi aquele Diários da Motocicleta, pelamordedeus, Central do Brasil, pelamordedeus! [detona Eduardo] Preferia que o filme fosse feito pelo mordomo dele, o Santiago", completa Peninha. "Era um filme para o Robert Rodriguez. Se fosse um brasileiro, poderia ser o cara do Cinema, Aspirina e Urubus (Marcelo Gomes), ou o Cláudio Assis, ou o Beto Brant", sugere. "Realmente, venero o Cão sem Dono, mas queria usar essa entrevista mesmo para ver se a Tainá [Müller, protagonista do filme] quer namorar comigo", finaliza.
A modéstia não está entre os tantos atributos de Eduardo Bueno. Porém, ele tem dificuldade de se aceitar como uma cara diferente da cultura pop brasileira - "já sou autocentrado pra cacete, se, além disso, me tornasse auto-referente, seria um problema". Mas ele é diferente, e por isso desempenha um papel fundamental na história do Brasil, e não apenas a colonial. Da geléia geral dos formadores de opinião de um país carente de uma crítica desconectada da moral cristã, poucos assumem tantos riscos quanto o escritor, que teria inclusive perdido a adoção de seus livros pela rede pública de ensino por defender a maconha (ele ouviu a notícia de uma fonte segura, mas admite que nunca aconteceu qualquer contato oficial). "Já vi um monte de gente legal dizer que soube que um amigo de um primo da namorada de um colega do filho da babá parece que conheceu um vizinho que teria fumado maconha. Diz que fuma e pronto! A maconha deveria ser legalizada e as drogas descriminalizadas", defende Eduardo, pronto para fazer um mashup entre drogas e o pop, assim como faz com a história do Brasil. "Neste país medíocre, não existe a imposição de uma visão pop até hoje. O Caetano e o Gil, na real, não são medalhões, né cara [pergunta, como quem busca apoio]? Agora, o Caetano pinta os olhos e aparece na capa da Rolling Stone com 60 anos de idade e vira quase um factóide. Qual é o problema? Aí uma coisa fundamental como discutir a maconha fica em segundo plano!"
Como quase tudo na vida de Eduardo Bueno, a defesa pelas drogas teve um período de patrulhamento - "me recusava sequer a falar com quem não tivesse fumado baseado", admite. Com o tempo, ele compreendeu que a droga age com cada pessoa de um jeito. "Estou preparado para usar drogas, nesse sentido sou um abençoado, embora deteste cocaína e cigarro." Como que fechando um ciclo, foram as drogas (a iluminação) que o levaram a encontrar Dylan (o Iluminado, pelo menos na sua mitologia). Em tom de ameaça, mais para Peninha, ele me adverte: "Assim como três pessoas já desmaiaram em festas porque comecei a falar sem parar, todos os jornalistas para os quais contei minha história com o Dylan não resistiram até o fim. E nenhum conseguiu publicar!" [Ele me confessou depois que tem muita dificuldade de expor a relação com seu ídolo. O sentimento é reverencial, acima de tudo: Eduardo admite que já gosta de se exibir o suficiente por si mesmo, não teria sentido fazer o mesmo "usando" Bob Dylan, "a quem devo tanto"].
Em 1978, o viajante eduardo Bueno trabalhou 21 dias colhendo uva, na França, para assistir no Pavillion, em Paris, pela primeira vez, a um show de Bob Dylan. "Quase morri!" Em 1990, ele leu no jornal Folha de S.Paulo que Dylan estava a uma assinatura de tocar no Hollywood Rock, no Rio e em São Paulo. Quase morreu, de novo. Na manhã de 17 de janeiro desse ano, rumou com seu Passat para o Hotel Hilton. No hall de entrada, viu Dylan chegar ao Brasil de óculos escuros, jaqueta, bota e luvas de motoqueiro, apesar dos "180 graus de temperatura", exagera Peninha, "com aquela aura perturbadora". Ficou de plantão e aproximou-se de Victor Maymudes, o ex-motorista que havia 30 anos trabalhava como tour manager do cantor. Disse a ele que sabia tudo sobre Dylan.
- "Mais um?", desdenhou Victor.
- "Sou diferente, não sou daqui", argumentou Eduardo.
- "De que planeta você é?", contra-atacou o manager.
- "Provavelmente do mesmo que o teu", respondeu o jornalista.
- "Então cadê o baseado? Você vem encontrar Victor Maymudes e não traz nada?"
Eduardo foi em casa buscar o que tinha e, de volta ao hotel, descobriu que não havia nenhum Victor Maymudes registrado. Lembrou do alias dele, publicado no fanzine The Telegraph (a CNN dos dylanófilos, segundo o escritor Nick Hornby). Pediu por Jack Ryder - o nome é baseado em um personagem do livro Dharma Bums, de Kerouac. Subiu e introduziu os beats entre as baforadas (um truque calculado). Acabou no quarto de Bob Dylan, que também queria fumar.
"Chegamos no quarto dele e havia muitas roupas penduradas", conta Bueno. "Ele mesmo as tinha lavado. 'Lavagem química destrói as roupas' foi a primeira coisa que Dylan disse." Um rápido papo sobre Sam Shepard seguiu-se até o momento em que o fã retornou para a redação e voltou a ser jornalista. No outro dia, depois de muita conversa (sua especialidade), pegou carona no ônibus que levou a trupe de Dylan até o Rio - no trajeto, enturmou-se com a banda, mal falou com o chefe. Os gringos voltaram para casa sem deixar nenhum contato e nunca souberam que Eduardo publicou no Estadão detalhes da viagem de ônibus e das conversas com Dylan. "Tinha que publicar, mas tive muito cuidado no que revelei."
Em outubro de 1990, ele descobriu pelo telex do Estadão o hotel onde Dylan estava hospedado em Columbus, Ohio. Conseguiu ligar para Victor e iniciou um contato regular que só terminou no dia em que o tour manager morreu, 11 anos depois. Eles se reencontraram em novembro, em Nova York, na temporada de Dylan no Beacon Theater - Eduardo viu os dez shows e voltou a conversar com o ídolo. Um ano depois, foi a vez do passeio lendário por Porto Alegre: Eduardo, Victor e Dylan (e um segurança) subiram o morro de Santa Teresa para fumar um e ver o pôr-do-sol, depois mataram a larica na Banca 40 do Mercado Público (um clássico local). "Ninguém reconheceu Dylan, que foi caminhando até o hotel [são poucas quadras]. No outro dia, ele foi a pé para o show! [a distância é considerável, mas não é incomum Dylan fazer grandes caminhadas, garante Eduardo].
Em 1991, o verborrágico jornalista foi convidado por Dylan para acompanhar sua turnê pelo Leste Europeu. Em Budapeste, fez o que mais se aproximava de uma entrevista com o cantor, publicada no Estadão. Encontrou-o apenas outras duas vezes, a última em 1995, na sua casa, em Los Angeles. De Victor Maymudes, nunca mais se desgrudou. "Ficamos muito amigos. Em 1999, Dylan teve uma discussão feia com a filha do Victor, Aerie Victoria, que era sócia dele em um bar. Por tabela, Victor brigou para sempre com Dylan. Aí me convidou para escrever um livro destruindo o ex-chefe. Não podia fazer isso, nem conseguiria. Mas a idéia de um livro com relatos de um cara que acompanhou Bob Dylan por tanto tempo me interessava. Convenci Victor de fazer quase uma louvação."
Eduardo foi para Los Angeles em maio de 1999 para colher os primeiros depoimentos. Gravou 57 horas de fita e chegou a escrever dez capítulos de The Joker and the Thief. Victor veio várias vezes ao Brasil para continuar o serviço. Ambos criaram a Little Feather Publishing Co. (a Editora Peninha). Em 23 de janeiro de 2001, Victor assinou um contrato com a editora St. Martin's Press. Morreu no dia 27, de aneurisma cerebral, menos de cinco horas depois de ter falado uma hora e meia ao telefone com Eduardo. "Espero que não tenha sido por minha causa", brinca o escritor [a St. Martin's Press ainda tenta recuperar o dinheiro do adiantamento, que teria ido parar na conta das duas ex-mulheres de Victor. Vi a transcrição encaixotada na sala de jantar do apartamento de Eduardo, mas os originais da obra incompleta, que por questões legais dificilmente será lançada, estão com Aerie].
Nenhuma droga ilícita foi consumida durante essa reportagem. O primeiro parágrafo deste texto foi livremente inspirado no primeiro parágrafo de On the Road, lançado há 50 anos, quase uma década depois de ter sido escrito por Jack Kerouac, ao som de jazz.
Desde março do ano passado, a rádio norte-americana XM apresenta o Theme Time Radio Hour with Your Host Bob Dylan. O cantor de 66 anos já fez 99 shows até outubro de 2007 e jamais repetiu o set list. Em tom de confissão, Eduardo Bueno me contou que adoraria transmitir a paixão e o conhecimento que tem sobre história com um toque: "Mas como isso é impossível, queria transmitir os conhecimentos e visões que tenho sobre a história do Brasil como se fosse& uma música do Echo & the Bunnymen!. Só assim, como se fosse 'Lips Like Sugar', aquilo que tu sentes quando ouves, isso que eu queria." Ele também revelou que não passa por sua cabeça relatar em livro os encontros com Dylan. E que está decidido a escrever ficção, provavelmente algo sobre a vida de alguma cidade brasileira. O resto é história.