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Capa do mês: Pitty no espelho do tempo

Há 15 anos Pitty estreava apresentando um arsenal de hits que marcaram o rock brasileiro nos anos 2000. Agora, ela vive a maternidade e o feminismo, aceita as revoluções internas e busca na garota o que ainda faz sentido para a mulher

Lucas Brêda Publicado em 05/07/2018, às 12h20 - Atualizado em 13/07/2018, às 11h50

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Pitty está na capa da edição de julho da <i>Rolling Stone Brasil</i> - Mauricio Nahas
Pitty está na capa da edição de julho da <i>Rolling Stone Brasil</i> - Mauricio Nahas

“Hoje pode dizer que gosta de Pitty?” Priscilla Leone brinca ao falar de si mesma enquanto mexe um suco verde e mede a ironia para que a frase não soe agressiva. Estamos em um café na região da Avenida Paulista, em São Paulo, perto de onde a cantora mora. Evidentemente, ela não está se referindo ao fato de que há mais de uma década vem sendo nome constante nas paradas de rock brasileiro, mas sim à relutância de quem descreve seu trabalho como “música juvenil”.

Pitty anuncia a primeira turnê em dois anos

Já se foram 15 anos desde que Pitty entrou para a cultura pop, com o disco Admirável Chip Novo. Agora, não só sua obra inicial começa a ser revista com certa nostalgia: ela também vive o que define como “atualização de identidade”, uma renovação que tem tanto a ver com o amadurecimento artístico quanto com o pessoal. Pitty deixou de ser tratada pelo estereótipo “roqueira rebelde” do começo do século e é tida como inevitável ícone feminista (ao emitir opiniões na TV ou nas redes sociais, despir-se de amarras estéticas e colaborar com cantoras como Elza Soares e Tássia Reis), sendo um dos poucos nomes do rock mainstream ainda capazes de atrair amplo interesse pela sua obra atual, e não apenas o respeito pelo passado.

João Rock 2018: leia como foi o show da Pitty no festival

Na tarde atipicamente quente do último mês de junho em que nos encontramos, Pitty está “exaurida”. Dois dias antes, havia tocado pela terceira vez em quatro anos no João Rock, evento que vem reunindo entre 50 e 60 mil pessoas um dia por ano em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Ela recorda uma conversa com o marido, Daniel Weksler, baterista do NX Zero, em um momento que estava “arisca”, “pela casa chutando coisas”. “Tô ficando doida, sério”, disse, e ouviu como resposta: “Você sempre fica assim antes de lançar disco, já te vi nesse lugar antes”. A apresentação no festival foi a primeira de uma nova era, a de um novo álbum, que a cantora está concebendo enquanto prepara a próxima turnê nacional e grava o programa Saia Justa, no canal a cabo GNT. “Nas brechas, viro mãe”, ri. “Tem rolado uma revolução por aqui, pessoal, musical, artística. Mudança de gente ao redor, de escritório, maternidade, experimentação com outros estilos, mudança sonora. Acabou vindo tudo junto, e eu tenho lidado diariamente com essa revolução, inédita para mim.”

Pitty se considera uma pessoa de ciclos. O último disco, Setevidas (2014), refletiu o momento em que ela se sentiu mais à vontade com o próprio lado feminino. Aquele também foi um período marcado por 20 dias internada em um hospital, resultado de uma disfunção hormonal que quase a levou à morte. Segundo a própria artista, o ciclo atual começou com a gravidez de Madalena, em 2015. “Mudou tudo, são coisas que fogem ao nosso controle. Foi assim com a história do hospital, com o Setevidas, e na gravidez também”, conta. “De repente, eu estava de cama sem poder fazer shows. [É um] momento de resiliência e aceitação, como se a vida falasse: ‘Você acha que tem controle sobre tudo? Então, vamos conversar sobre controle.” Pitty, que sofreu um aborto espontâneo em 2008, teve uma gravidez de risco, devido a uma “incompetência istmo-cervical” (colo do útero curto). “Rolou medo de tudo. Fui obrigada a parar de trabalhar e ficar de repouso absoluto. Estava tão ocupada em sobreviver, fazer aquilo dar certo, cuidar do meu corpo e manter minha cabeça no lugar... É um saco não fazer o que a gente quer. Tenho muita dificuldade em lidar com ‘autoridade’, coisas em que eu não mando, sobre as quais não tenho controle.” O período de gravidez não foi apenas de doação, mas também de reflexão interna, em grande parte registrada em diários que serviram de base para as composições do próximo LP. “Estou me recuperando desse processo até hoje, não é uma coisa que passa tão rápido. Agora, a Madalena tem 2 anos e eu começo a me reconhecer. Amamentei por um ano e quatro meses, tempo em que meu peito não é meu, sabe? [Risos] Só parei porque ela quis, mas é um bagulho muito louco.”

Comemore o Dia do Rock relembrando os clipes da carreira da Pitty

Dias antes da entrevista, Pitty estava em uma festa junina do bairro, com o bebê de uma vizinha no colo. “Já estava com saudades”, confessa ao lembrar da própria pequena nessa fase. “Agora é diferente: troca ideia, começa a conectar pensamentos, falar umas coisas que você não ensinou. A mágica é foda, e é no cotidiano mais trivial que esse sentimento se apresenta avassalador. Ontem, estava dando banho, ela levantando um pezinho de cada vez, pedindo para eu jogar água. Aqueles dedinhos roliços boiando na flor da água, e eu derrubando uma gotinha em cada um, um de cada vez… O olhar dela para mim, as risadas. Tão simples e tão divertido. Tenho curtido essa coisa de ser mãe.”

Em 2006, a noite em que foi realizada uma das edições do VMB, extinta premiação da MTV, foi definitiva na vida de Pitty. Ela ganhou todas as categorias às quais concorreu (Escolha da Audiência, Videoclipe de Rock, Website e Vocalista da Banda dos Sonhos), além de ter conhecido o futuro marido, Daniel Weksler. Mais ainda: aquele dia, de certa forma, delimitava o auge de popularidade da cantora, que não muito tempo antes transitava no cenário underground. Na cidade de Salvador, nos anos 1990, ela integrava a banda de hardcore Inkoma. Em meados dos 2000, Pitty já havia dominado as rádios e a própria MTV com os singles de Admirável Chip Novo (“Máscara”, “Equalize”, a faixa-título, “Teto de Vidro”, “Semana Que Vem”) e Anacrônico (a faixa-título, “Memórias”, “Déjà Vu” e “Na Sua Estante”), além de ter participado de outro hit, “Eu Quero Sempre Mais”, no Acústico MTV (2004) do Ira!. Com uma raiva necessária, ela trazia um discurso direto e ideologicamente alinhado com o punk, além de uma verborragia que casava com parte do hip-hop dos anos 1990. No meio desse mix, havia um pouco da estética do emo, que viria a dominar a produção roqueira dos anos seguintes – no Brasil, com Fresno e NX Zero, e lá fora com nomes como My Chemical Romance e Simple Plan. A baiana trouxe frescor à cena, representando e atraindo para aquele tipo de rock o público feminino e, ainda que indiretamente, o LGBT.

Pitty era um caminho natural para fãs de Evanescence e Avril Lavigne; conseguia agradar a quem ouvia Linkin Park; até fãs de sons mais pesados, como o do Korn, passaram a dar atenção à artista. Em resumo, cerca de três anos depois de deixar de ser Priscilla, Pitty já era protagonista da última era em que o rock vendeu em massa.

“Não podia sair na rua para comprar pão”, ela lembra. “Essa coisa de não ter o isolamento de que eu precisava para fazer as coisas comuns me machucava muito. Eu só queria viver, só que era incompatível. Você entende que as pessoas querem falar com você porque gostam pra caramba do que você faz, mas não vai dar para você chegar no balcão e pedir um pingado? Eu fiquei bem confusa.” Na época, Pitty ainda não havia completado 30 anos de idade. “Chegou uma hora que eu estava no camarim e só queria ter uma conversa real. Alguém que não falasse simplesmente ‘Ai, meu deus, ai!’ [imita uma pessoa histérica]. É o barulho enorme de você estar no palco com um monte de gente e o silêncio enorme de estar sozinha no hotel olhando sua cara no espelho. É um lugar muito assustador, mas a gente aprende a lidar com ele. Chegar no hotel sozinha, fechar a porta do quarto e tirar a maquiagem na frente do espelho era tipo: ‘Oi? O que é isso, gente? Cadê as pessoas? Cadê gente?’”

Embora ela tenha mudado, a atmosfera no entorno permanece. Conversamos em uma área reservada no mezanino de um café e, quando um garçom vem nos atender, a primeira reação é a materialização do que a cantora havia acabado de relatar. “Meu Deus, a Pitty!”, ele exclama, porém sem histeria. “Vou te contar, sua música nova é um tapa na cara da sociedade.” Ele fala de “Contramão”, faixa do próximo disco (ainda sem título) da artista, lançada alguns dias antes. A canção, com participação de Emmily Barreto, vocalista da banda potiguar Far from Alaska, e de Tássia Reis, tem um marcante riff eletrônico e levada que remete indiretamente a um funk desacelerado, apesar do refrão facilmente identificável com a sonoridade característica de Pitty.

Desde que viu a resenha de um fã (“as melhores resenhas”) na internet, ela encara a música nova como uma espécie de “irmã” da colaboração dela com Emicida, “Hoje Cedo” (2013), em que o rapper rima sobre “holofotes fortes”, “purpurina” e a fama. “Tenho essa sensação de que ele procurou o lugar dele. ‘Ainda sou o Emicida da rinha/ Lotei casas do sul ao norte, mas esvaziei a minha’. Aí eu falei: ‘Putz, ele está naquele lugar, eu sei qual é esse lugar’”, ela diz, recitando os versos.

Para se manter a “Priscilla de Salvador” ao longo dos anos, Pitty se cercou de gente que a conhece desde antes do sucesso, pessoas “que podem me dizer a verdade, me trazer para o chão”, “que não ficam o tempo inteiro esperando alguma atitude preconcebida na cabeça”. Um desses amigos (“âncoras para eu não dar uma pirada”) é Rafael Ramos. Foi ele quem recebeu as 22 gravações ao violão que foram o embrião de Admirável Chip Novo. “Conheci a Pitty em meados dos anos 1990, era fã da banda dela, o Inkoma”, conta o produtor por trás da gravadora Deck, que em 2018 completa 20 anos e pela qual saíram todos os álbuns da Pitty (ele assinou a produção de cada um).

Quando era mais jovem, Ramos tinha outro selo independente, chamado Tamborete, responsável pelo primeiro LP do Inkoma, Influir (2000). Desde aquela época ele está sempre na linha de frente na hora de ajudar a cantora a realizar seus projetos, às vezes até meio malucos, como o disco/filme ao vivo Trupe Delirante no Circo Voador (2010), gestado em menos de 25 dias, e a gravação do álbum do Agridoce (projeto paralelo com Martin Mendonça, guitarrista da banda dela, lançado em 2011) em uma “casa remota” na Serra da Cantareira, em São Paulo. Pitty dá gargalhadas ao contar como decidiu, de última hora, fazer um vídeo em plano-sequência para a inédita “Te Conecta” durante o show do João Rock. “Foca no Michel Gondry”, brinca, remontando o que disse à equipe.

Mesmo nos tempos em que esteve no olho do furacão, Pitty afirma que sempre manteve uma relação saudável com as drogas. “Não tive nenhuma questão maior nem menor, foi normal. Nunca me compliquei, de dar ruim, sempre deu bom [risos]”, conta. Hoje, ela se diz “tranquila”, sem revelar o que consome além do álcool. “Depende do momento, da vibe. Tenho tanta coisa para pensar que gosto mesmo é de tomar uma biritinha depois do show, e fico bem tranquila assim.” A “biritinha” nunca vem antes de uma apresentação, o que não chega a ser algo surpreendente para alguém que é tão preocupada com o que faz. “Antes eu fico intocável, muito concentrada. Depois do show todo mundo relaxa. Mas acho que cada um sabe o que faz, tudo tem seu lugar, seu tempo e sua medida – principalmente a medida.”

Em 2018, Pitty tem suas armas para lidar com a fama: absorver o amor que recebe dos fãs e não atrelar a autoproteção a algum tipo de paranoia. E, mesmo assumindo a personalidade controladora, ela não soa, nem casualmente, autoritária – pelo contrário, conversa sem se prender a discursos prontos e é absolutamente atenciosa no que faz. Depois da entrevista, envia um e-mail desenvolvendo alguns tópicos da conversa anterior, e encerra escrevendo “desculpa ae o I hate being bipolar it’s awesome, rs”, fazendo referência à capa de Ye, álbum recém-lançado de Kanye West. Diferentemente do rapper norte-americano, Pitty não sofre de transtorno bipolar, mas sim do desgaste com o cuidado extremo despejado em tudo que ela realiza, da educação da filha até o novo disco e a subsequente turnê, que deve começar em agosto. “Procuro ficar atenta às egotrips, porque quando você é artista e fala muito sobre você, o tempo todo, você entra em umas de que é muito importante, e eu acho isso bizarro”, diz. “Se você é um pouco neurótico, já se sente muito vigiado, cobrado. Todo mundo sente isso em algum nível, mas quando você está exposto é muito fácil ficar louco, especialmente quando tem muito poder e todo mundo gosta do que você fala. Tentei nunca me distanciar dessas coisas que eu acho massa, que eu fazia quando tinha minha banda de hardcore. Coisas simples, como descer para ver as outras bandas quando tocamos em algum festival.”

O mento, ritmo jamaicano pré-reggae, é a atual obsessão sonora de Pitty. Apesar de ter uma produção bastante restrita ao rock, a cantora – que chegou a prestar vestibular para jornalismo, antes de seguir a carreira artística – é eclética e gosta de mostrar o que tem ouvido. Ela saca o celular do bolso e abre o Spotify, antes de se perder em uma playlist que fez apenas com covers. Passando por “Back in Black” (AC/DC) com o rapper Nas, Pitty atenta para uma de suas favoritas, Beck cantando “I’m Waiting for the Man” (Velvet Underground); depois, tem a atenção tomada por uma versão engraçada de “Hotline Bling”, megahit de Drake em encarnação de cúmbia assinada por um grupo chamado Los Miticos del Ritmo (“Ouvimos muita cúmbia no camarim”, conta). Ela está fascinada com a presença lírica de Cardi B e a simplicidade cativante do trap. “Eu achei bem foda o disco dela [Invasion of Privacy, 2018]. Vi o show no Coachella e achei brutal. Sempre curti hip-hop, nos anos 1990 tinha um crossover muito foda com o rock, e pesou mesmo. O trap é minimalista, tem umas bases que são três coisas, que nem a galera do gangsta nos anos 1990, tipo Boo-Yaa T.R.I.B.E, muito roots.”

Ela ouve música nas plataformas de streaming, especialmente quando está na rua, mas ainda escuta vinil em casa. Também acabou de consertar seu tape deck para voltar a ouvir cassete – formato pelo qual lançou o single “Contramão”. Garota dos anos 1990 (a década da demo tape), ela se empolga ao falar da coleção de demos que tem: Planet Hemp, The Funk Fuckers (banda de BNegão), Ultramen. “Guardei minha coleção sem nunca imaginar que a fita cassete iria voltar”, ostenta. Pitty, contudo, não chega a ser saudosista. Ela se relaciona com os formatos como a contemporaneidade sugere: streaming para o consumo primário rápido, físico para os mais especiais. “A noção mudou completamente, a relação de posse mudou, isso é muito atual. A música está aí, você escuta um pouquinho e, se quiser muito pra você, vai encontrar um formato. Só tenho em vinil as coisas que eu quero muito, as outras eu dou um play, e pronto, fiquei, beijo, tchau, não quero casar [risos]. O vinil é aquela música com a qual eu quero casar, olhar na capa todo dia.” Os algoritmos das plataformas de streaming, inclusive, a ajudam na busca por novos sons. “É assim: começo a escutar uma banda de mento da Jamaica e aí me sugerem uma outra banda que tem a ver com aquele tipo de som. Daí [aparece] um disco [gravado pelo] Keith Richards na Jamaica em não sei quando, então vou indo, pesquisando. E vou atrás de muita música nova para saber como as coisas estão sendo produzidas, o que está sendo dito.”

Não é à toa que a primeira canção concebida para o novo álbum, “Te Conecta”, tenha influência descarada de dub. “Ouço esse tipo de som mais do que outras coisas há muito tempo, mas nunca tinha vindo à tona”, conta. No meio de uma madrugada, ela sentiu nascer a vontade de produzir algo relacionado ao gênero. “Falei: ‘Caralho, ferrou, por que veio um dub na minha cabeça? Socorro, alguém tira isso de mim’. Mas respeitei, já tive mais medo [de mudar].” A faixa representa um pouco da diversidade de sonoridades que a cantora está seguindo conforme faz o próximo disco, a exemplo dos aspectos eletrônicos e da rima de hip-hop de “Contramão”. Pitty também sabe que não pode soar fake. “Não quero tocar um reggae como a galera da Jamaica, porque não sou eles, tenho outro contexto, sou outra pessoa. Vim da Bahia, tenho a minha bagagem. O que eu gosto, com a minha bagagem, vai virar uma terceira coisa”, acredita. Rafael Ramos confirma a “nova dinâmica”, com “outras influências e outros objetivos”. “O rock não é mais o mesmo, os instrumentos e as possibilidades eletrônicas estão mais presentes neste trabalho, sim”, revela o produtor. “Temos bases que começaram com banda, mas que estão sendo desenvolvidas com outros complementos. Também tem músicas cujos arranjos não necessariamente nasceram de uma base com banda, e sim de bases e ideias mais minimalistas, valorizando a letra e a canção, mas sem deixar de ser pesado.”

Não se trata da primeira vez em que Pitty se aventura em outros territórios. Além da experiência folk do Agridoce, no ano passado ela compôs uma música de presente para Elza Soares. A histórica sambista deu uma guinada na carreira em 2015, com o disco A Mulher do Fim do Mundo, uma parceria com diversos músicos da cena paulistana de samba-noise. A aproximação de Elza com o rock despertou em Pitty a inspiração para “Na Pele”, que acabou sendo gravada pelas duas, gerando clipe e performance no Fantástico, da Globo. Na ocasião, a dupla fez uma homenagem à memória da vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL/RJ), dividindo os versos de “Juízo Final”, escrita por Nelson Cavaquinho. Este ano, no filme/disco ao vivo de Emicida, Pitty cantou o refrão dela em “Hoje Cedo”, mas também adicionou algumas rimas próprias ao rap. Para “Contramão”, estreitou os laços com Tássia Reis (“Nunca tinha visto a cara dela, só ouvido aquela voz incrível. Uma vez, vi uma foto e fiquei em choque: meu Deus, que menina maravilhosa!”) e Emmily Barreto (“Me identifiquei com o fato de ela ser nordestina, ser menina e ter aquele som pesado, stoner”).

Além de tudo, não é mais tão novidade que o rock está “envelhecendo”. Apesar de nomes estabelecidos no passado continuarem a lotar shows, o gênero está gradativamente perdendo espaço na preferência dos jovens, nas paradas de sucesso e nas listas de melhores discos da crítica. Aos 40 anos, Pitty, por sua vez, não está parada no tempo. “Não tenho mais essa brisa de ficar presa a ‘isso é rock, isso não é’”, conta. “Escuto Sister Nancy e me bate muito mais do que esse rock. Acreditava nisso quando eu tinha 14 anos e ficava nesses estereótipos. Tinha uma banda de hardcore e, quando tentava escrever qualquer coisa que fosse meio diferente, me sentia meio julgada. Tipo ‘ah, você tá falando uns negócios esquisitos aí’. E eu queria mais, desde aquela época. Saí de uma banda de hardcore porque queria experimentar outras coisas, falar o que eu quisesse, ter liberdade. Me parecia uma incongruência que uma filosofia de punk rock não estivesse ligada à liberdade. Tipo, ou você respeita a estética e a temática ou você não está dentro? Que liberdade vigiada é essa?”

Ela também consegue compreender como o sentimento que uma vez já foi combustível para o rock pode se apresentar de novas maneiras. “Sabe esses emo-trap? É igual, gente”, teoriza. “Estávamos no camarim, festa rolando, e botaram aquele som do Khalid. Eu virei e falei: ‘Pensa se não é tipo um Nevermind da nossa geração? Pensa a letra de ‘Smells Like Teen Spirit’. O que a gente via no grunge, naquela época, estamos vendo agora, só que com outra estética. A temática é a mesma, porque o jovem sempre vai ser essa coisa entediada e procurando solução para as coisas, seja nas drogas, em si mesmo, seja em qualquer lugar – na música, por exemplo, e que bom que seja na música.” Ela está falando do tipo de som que mistura batidas de pop, trap ou hip-hop com as guitarras melódicas, o clima triste e as letras depressivas do emo (e, de certa maneira, do grunge). Lil Peep, um dos nomes proeminentes do emo-trap, morreu no fim do ano passado, aos 21 anos, após uma overdose. “Nunca tive isso de ‘Não, ah, porque no meu tempo…’ É entender o tempo em que você vive. Por que essa geração se conecta com isso?”

Pitty sequer se lembrava do 15º aniversário de Admirável Chip Novo, lançado em maio de 2003, até que um jornalista da Vice a contatou para uma entrevista sobre o tema. Na data da celebração, as redes sociais foram tomadas por relatos e memórias de pessoas com aquele álbum. Ela estava experimentando algo até então inédito, em termos da relação do público com sua obra: a nostalgia. Pitty não é dada a shows ou turnês comemorativas, e tem uma discografia relativamente curta, com apenas quatro discos de estúdio. A situação, contudo, é compreensível. Quem tinha 15 anos quando o debute dela saiu hoje está com 30, e a reavaliação da música que marcou a adolescência é um processo comum do amadurecimento. A partir de determinado momento, ouvir um disco que definiu essa época frequentemente confusa da vida passa a gerar saudades, em vez de vergonha. “O distanciamento histórico é importante e eu também tenho isso em relação a muitos artistas”, analisa. “Passa um tempo com você pensando ‘não sei se eu gosto nem se eu posso dizer que gosto’. Lembro que, quando o Strokes surgiu, fiquei assim: ‘Ah, não sei se gosto’, com vergonha de dar o braço a torcer. É louco, porque às vezes não há a oportunidade de o tempo ser generoso. Existir, muita coisa existe, mas durar nessa parada é foda.”

Não é apenas pela “generosidade do tempo” – ou seja, uma obra se manter ou ganhar relevância com o passar dos anos – que Pitty é duradoura. Nenhum dos quatro álbuns de inéditas que ela lançou até hoje passou sem um hit de grandes proporções. “Na Sua Estante” (2005), por exemplo, está tão incrustada na cultura nacional que virou um som sertanejo na voz da dupla Jads e Jadson. Porém Setevidas, o mais recente LP, apesar de conceitual e bem-sucedido, trouxe pouco em termos de novidades sonoras para a artista. Esta é certamente a missão do próximo disco: representar em arte toda a renovação/reavaliação de identidade/vida pela qual Pitty está passando. “O simples fato de ela fazer música em cima de suas emoções, sempre de forma verdadeira, acaba criando uma comunicação muito forte. O discurso é sempre muito forte e acho que essa é uma das características mais marcantes na obra dela”, Rafael Ramos opina, ressaltando o caráter pessoal de praticamente toda a carreira da cantora.

Desde os primeiros dias no Inkoma, Pitty expurgava demônios gritando ao microfone. “Os meus [demônios] eu deixava ali”, diz. “Para mim, a escrita ainda é um grande lugar de exorcismo. É ótimo que exista essa válvula de escape, porque essas coisas têm de encontrar seu lugar no mundo, fora da gente.” Lembrando as músicas mais agressivas do início, ela compreende a autenticidade e a urgência daquela raiva juvenil, de quando tinha uma postura, segundo ela própria, “masculinizada”, uma defesa contra o machismo que a cercava. “Faz parte de uma revolta contra tudo e todos e, na verdade, é contra você mesmo. Eu gastava muito à toa – a palavra, a energia, a ideia, o verbo”, confessa. Quando a gente fica mais velho, aprende a gastar menos bala para chegar aonde quer. Tem hora que não precisa ter raiva, só precisa ser samurai. É gritar na hora de gritar, calar na hora que tem que calar. Uma raiva mais controlada.” Quando sugiro que mesmo no novo single ela mantém a atmosfera sombria dos primeiros discos, Pitty fica em silêncio. “Minhas melodias nunca foram alegres mesmo”, responde, concordando sem muita veemência para, depois de outro momento em silêncio, cair na maior gargalhada daquela tarde.

É curioso que Pitty esteja trilhando caminhos diferentes exatamente nesse aniversário de Admirável Chip Novo. Para as novas composições, ela resgatou o mesmo violão com cordas de náilon com o qual gravou todas as demos do primeiro álbum. Também retomou a dinâmica de “colcha de retalhos” – juntar trechos de diários e escritos para fazer as letras. “Estou nessa onda de encontrar algo entre o passado e o futuro”, afirma. “Quero achar essas batidas no meio desse violão. Essa coisa de usar beat, mas ser rock. Também quero investigar novamente o violão de náilon, a canção. Tipo, se eu tirar o violão aqui e tocar contigo, será que vai bater? Tem uma música, ‘Submersa’, que foi isso: eu e o violão. Eu e ele de novo, o mesmo de 2003.”

A Pitty de 40 anos está encarando sua versão de 20 e poucos, procurando os sentimentos da garota que ainda permanecem na mulher, e se despindo daqueles que não têm mais sentido. Se há 15 anos ela estava enfrentando as próprias inseguranças em busca de personalidade, hoje trabalha para assimilar a sociedade, as próprias questões femininas e as revoluções pessoais pelas quais vem passando. “Fui tentando entender isso: me libertar do que é prisão e manter o que é essência. Dar a corda para essa pipa voar e ter o equilíbrio para não deixá-la ir embora. É um jogo que nem sempre ganho, mas isso tem sido a grande coisa como artista. Meu tesão mora nesse desafio, desconstrução e eterna reconstrução artística, e isso tem um preço: eu deixo tudo ali.”

Sem Saudades

Uma das últimas roqueiras a fazer sucesso de massa no Brasil, Pitty reflete sobre o futuro e o estado do rock

“Às vezes vira Disneylândia mesmo: você entra no brinquedo, sai do outro lado, compra o souvenir e vai para casa. Amanhã, quando você acordar, o que ficou?”, Pitty reflete, falando de um tipo contemporâneo de show de rock em estádio: aqueles com ingressos caros, longa duração e geralmente alavancados por caminhões de hits (muitas vezes já batidos de tão tocados). “Entendo quando o Dave Grohl [do Foo Fighters] faz aquele ‘espetáculo da Broadway’ – porque é quase isso, e muito bem feito –, e as pessoas vão para três horas de show, bandana na cabeça e uhul! Mas tem o outro lado: o esvaziamento da estética.” Pitty já esteve mais preocupada com a tal “renovação do rock” e hoje se esquiva de fazer previsões, porém acredita que a única maneira de oxigenar o gênero é o surgimento de “uma nova coisa”. “Não é querendo imitar o Led Zeppelin que vamos atingir algo”, diz. “Pra que outro? Eles são bons e já existem, é só dar play. Podemos revisitar, mas não copiar a roupa, o timbre. Tem que trazê-los para hoje. Fico chocada com o Greta Van Fleet [banda fortemente influenciada pelo Led]. Esse sentimento saudosista nos impede de olhar para a frente.