O primeiro Código Florestal surgiu em 1934, foi renovado em 1965 e hoje está no centro de acirradas disputas entre ruralistas e ambientalistas
O imaginário dos povos da floresta é ricamente habitado por seres fantásticos cuja missão é proteger o ecossistema e castigar seus malfeitores. Guardião das matas, o Curupira, com os pés virados para trás, assume a forma de um menino de cabelos avermelhados. A responsabilidade dele é zelar pelas árvores, plantas e animais da sanha de caçadores, lenhadores e predadores deste “país tropical, bonito por natureza”, como imortalizou a canção de Jorge Ben Jor. Nessa constante batalha, o Curupira não está sozinho. Atua em parceria com outro mito das florestas: o Boitatá. De origem tupi-guarani, a entidade é representada por uma cobra de fogo que vigia as matas e devora quem as destrói. É considerado, aliás, o primeiro mito registrado no folclore nacional. O padre José de Anchieta o documentou pela primeira vez, em 1560, na Carta de São Vicente: “A cobra de fogo, ou ‘a coisa de fogo’, é como um facho de luz cintilante correndo de aqui para ali; acomete suas vítimas rapidamente e as mata”, descreveu.
É inegável: em controvertidos tempos de Código Florestal, a mitologia do Boitatá e do Curupira é metaforicamente perfeita. E retrata, antes de tudo, o sagrado respeito guardado por nossos ancestrais indígenas aos recursos naturais. Algo a ser aprendido. Para entender melhor a contenda em torno do Código Florestal nos anos 2000, é preciso, antes, retroceder a tempos imemoriais e recapitular como se sucedeu o processo de ocupação do solo no Brasil. Desde a chegada dos colonizadores, a natureza era vista meramente como uma fonte sem fim de recursos; as florestas não passavam de “obstáculos” que “impediam o avanço do desenvolvimento”.
Esta é uma noção que, até hoje, sobrevive em certas regiões do país. Uma lógica aproveitadora segundo a qual é mais barato queimar, degradar e procurar outras áreas para devastar do que exatamente permanecer na terra, cuidá-la e, como alternativa, investir no aumento de sua produtividade.
Após muitas idas e vindas polêmicas, no fim de maio, o novo Código Florestal começou a ganhar sua feição “definitiva”. Foram 12 vetos e 32 modificações no texto que tramitava, referendados por meio de uma medida provisória (MP) enviada pela presidente Dilma Rousseff ao Congresso Nacional. “Este não é o Código dos ambientalistas nem o Código dos ruralistas”, disse o ministro da Agricultura Mendes Ribeiro. Izabella Teixeira, ministra do Meio Ambiente, por sua vez, reforçou o compromisso de Dilma de “não permitir anistia aos desmatadores”. Também afirmou que, com o veto parcial, o governo mostra respeito ao Congresso. Já o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, afirmou que o texto é resultado de um “acúmulo técnico, fruto de muito debate”.
Impedir a anistia a quem desmatou e proibir a produção agropecuária em áreas de proteção permanente (APPs) foram alguns dos vetos presidenciais. O descarte de 12 artigos resgata o teor do acordo firmado entre os líderes partidários e o governo durante a tramitação da proposta no Senado. Na medida provisória publicada no Diário Oficial da União, o Palácio do Planalto devolve ao texto do Código os princípios que haviam sido incorporados no Senado e suprimidos, posteriormente, na segunda votação na Câmara. Isso, segundo o discurso do governo federal. A MP foi o instrumento usado pelo governo para evitar lacunas no texto final.
ONGs de defesa ao meio ambiente – e também os especialistas da área ambiental – rebatem a gana dos ruralistas quanto à aprovação da íntegra do Código, que era o objetivo principal. O argumento dos ambientalistas era o de que as terras já exploradas seriam “suficientes para dobrar a produção”. Bastaria, portanto, aprimorar a eficiência nas lavouras e nos pastos, valendo-se de tecnologia e do uso sustentável da agricultura e da pecuária. Na visão dos ambientalistas, as mudanças antes previstas no texto abriam brechas para aumentar o desmatamento e poderiam, assim, colocar em risco recursos essenciais, dentre os quais o ciclo das chuvas e dos ventos, a proteção do solo, o controle natural de pragas e a biodiversidade. Tal desequilíbrio prejudicaria até mesmo a produção agropecuária.
Kenzo Jucá Ferreira, especialista em Políticas Públicas da ONG WWF-Brasil, defendia o veto integral de Dilma. De acordo com ele, a sanção parcial foi uma involução de aproximadamente 80 anos em relação ao primeiro Código Florestal, de 1934, que trazia em seu texto normas e regras de proteção ambiental mais avançadas do que aquelas contempladas no projeto sancionado em parte pela presidente Dilma. “Foi um grande retrocesso na história da legislação ambiental brasileira”, afirma, completando que os últimos governos lograram importantes conquistas. Na gestão de Lula, em 2008, Ferreira aponta que foi editado um decreto que ampliou itens previstos no Código de 1965. E antes, em 2001, acrescenta, o presidente Fernando Henrique Cardoso promulgou uma medida provisória que tornou a conservação dos ecossistemas mais rígida. “Sem o veto integral, Dilma provocou alterações na dinâmica histórica e nas conquistas de todos os governos da recente história do Brasil”, alerta.
Líder do Partido Verde na Câmara, o deputado Sarney Filho (PV-MA) afirma que “embora o veto não tenha sido total, recupera, em parte, junto com a MP que foi editada, as preocupações ambientais apontadas pelo Partido Verde” – principalmente no que diz respeito à manutenção das APPs, das Reservas Legais e, ainda, da obrigatoriedade de sua recomposição – mesmo que de forma parcial. “A definição das faixas que devem ser preservadas nas margens dos rios é positiva, porque vai diminuir a insegurança jurídica e garante, mesmo em patamares ainda não ideais, que a recomposição dessas áreas de preservação permanente aconteça”, diz o parlamentar. Mesmo discordando de pontos da nova Lei, Sarney Filho acredita que “os ruralistas saíram perdendo”, porque queriam impor um projeto que “deixaria o país na contramão da história”.
Também insatisfeito, o deputado federal Nelson Marquezelli (PTB-SP), que é um dos maiores exportadores de laranja do país, expõe preocupações semelhantes. “A caminho da Rio+20 para discutir a economia verde, como o Brasil sediará um encontro deste vulto?”, questiona o parlamentar, cuja propriedade foi aberta há mais de 400 anos em uma “área consolidada” – este, aliás, outro ponto da proposta envolto em névoa. “Quem desmatou, desmatou. Quem não desmatou, não desmata mais”, ele propõe. Embora faça parte do segmento rural, Marquezelli engrossa o coro dos ambientalistas para que ainda se faça uma revisão dos pontos, e, dessa maneira, se dê segurança e garantia às áreas que estão produzindo alimentos no Brasil. “A área consolidada produtiva é a mina de ouro no Brasil.” A íntegra do Código Florestal anterior, na visão do parlamentar, era “coisa de maluco”, e apenas “a educação da população” resolveria o problema. Sugere, entre outras providências, tratamento de esgoto decente para que não se jogue detritos nos rios. “Os rios, que foram as estradas do Brasil no passado, hoje são verdadeiras lixeiras.” Foi por meio das vias fluviais, lembra, que o Brasil foi criado, “mas não há nada a esse respeito na proposta do Código”.
“O governo tenta colocar o agronegócio em uma posição contrária ao meio ambiente, mas a própria presidente edita uma medida provisória [MP 558] diminuindo áreas de conservação. Existe um compromisso desta Casa para que o país melhore seu Produto Interno Bruto com sustentabilidade e, para tanto, houve amplo debate sobre este código”, argumenta Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), deputado da bancada ruralista. No seu entendimento, um Código único, para todo o Brasil, seria muito complexo. Não é possível, segundo ele, “agradar a gregos e troianos. Vetar tudo seria piorar a situação”.
Ferrenho ruralista, o deputado Luiz Carlos Heinze (PP/RS), titular da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, defende que o Brasil, hoje, é “um dos países que mais preserva no mundo” e que, “em qualquer estado da federação, existem áreas preservadas”. “Desde que o mundo é mundo, nunca foi mexido. Diferentemente dos países europeus, onde o mundo começou. É só ver a devastação que aconteceu lá. O Brasil, ao contrário, é o que mais preserva.” Um fator que deixa tudo ainda mais complexo, aponta Heinze, é o “inferno de leis” existente no Brasil. Ele também reclama das entidades ambientalistas, que vêm ao país “preconizar o que temos de fazer”. “Que moral tem o Greenpeace para vir aqui dizer o que precisamos fazer?”, reclama.
Renomadas instituições, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira da Ciência (ABC), apesar das inúmeras contribuições encaminhadas, alegam não terem sido consideradas como deveriam durante a discussão sobre o Código. Por causa disso, recentemente enviaram uma carta à presidente Dilma dizendo-se “surpresas com a aprovação do PL 1876/99”. “Trata-se de um Código Florestal que, por não ter incorporado os avanços rovenientes do Senado Federal e sugestões baseadas no conhecimento científico e tecnológico, traz sérios retrocessos e riscos para a sociedade brasileira”, registra a missiva. José Antonio Aleixo da Silva, coordenador do grupo de trabalho da SBPC, que, desde 2010, estuda as modificações sugeridas no texto, conta que vários encontros foram realizados, a partir dos quais, esperava-se, a ciência tivesse sido levada em consideração. “No texto aprovado na Câmara, praticamente nada do que indicamos foi considerado”, lamenta. Na realidade, pondera Aleixo, ficou evidente que se as duas entidades tivessem apoiado um dos setores – ruralistas ou ambientalistas – poderiam ter influenciado na tomada de decisão. “Reconhecemos a importância do agronegócio na balança comercial do país da mesma forma que consideramos a sustentabilidade ambiental.”
Para Márcio Astrini, coordenador da Campanha da Amazônia do Greenpeace, nada do que vem se sucedendo nos últimos tempos é novidade e destaca que há 12 anos a bancada ruralista tenta mudar, “para pior”, o Código Florestal. “Mas nunca encontravam espaço tão grande para fazer essas mudanças quanto no atual governo. Eles [os ruralistas] conseguiram, na verdade, fazer andar uma agenda de décadas em um espaço muito curto de tempo.” Para ele, o que se nota nestes últimos três anos (desde que o ex-relator Aldo Rebelo elaborou o relatório) é uma frase que sintetiza o pensamento ruralista: “Não estamos nem aí para o que vai acontecer”.
“Se pudessem ser sinceros sobre o Código, eles [a bancada ruralista] diriam: ‘Que se dane!’”, afirma Astrini. Mas durante esse processo também houve conquistas. A maior delas, avalia, foi conseguir o debate sobre as florestas no Brasil – tema que jamais foi tão popular como agora. Porém, no papel, o desfecho não agradou: “O texto final é péssimo. Contém anistias, diminui a proteção das florestas e incentiva o desmatamento. Mantém os mesmos problemas que foram criticados por cientistas, juristas, ambientalistas e até religiosos. Recebeu tanta crítica que, se o novo Código fosse um ministro, já tinha caído”, aposta.
Produzindo e preservando. Essa é a tônica de um projeto alternativo protocolado na Câmara, em abril, pelos deputados federais Elvino Bohn Gass (PT/RS) e Sibá Machado (PT/AC), que trata da recomposição das matas nas margens de rios (ciliares), as quais, segundo os autores, ficaram completamente desprotegidas no Código Florestal. O principal argumento dos petistas é o de que a não proteção dos rios é um atentado à agricultura. “Um rio sem mata ciliar é um rio condenado à morte. E com rios mortos não há produção agrícola”, afirma Bohn Gass. O deputado conta que, antes de formular o projeto, sentia-se incomodado com o radicalismo do ruralismo – que não quer recuperar absolutamente nada – e, na outra extremidade, com o ambientalismo extremado que, por sua vez, dificulta o processo de produção de alimentos.
Para o subprocurador-geral da República Mario José Gisi, especialista em direito ambiental, a reforma do Código deveria, sobretudo, criar mecanismos que incentivassem o produtor rural a proteger o meio ambiente. A nova proposta, ele opina, não presume proteção ambiental – é uma “Lei agrária”. “Obviamente que essa nova Lei foi gestada com base na conveniência e na necessidade dos agricultores e, portanto, baseou-se em demandas humanas de ocupação do solo.” Na opinião de Gisi, o Código foi criado a partir de manobras da bancada ruralista. “Qualquer decisão que não é baseada na inteligência é um tiro no pé; mata-se a galinha dos ovos de ouro”, teoriza.
Voltemos a consciência à memória do patrono da ecologia no Brasil, o naturalista Augusto Ruschi (1915-1986), homem que doou sua vida inteiramente à defesa obstinada da natureza. Curiosamente, a família Ruschi carrega a tradição de centenas de anos dedicados ao trabalho com ciências e plantas (seus ancestrais foram colegas de Michelangelo e Galileu Galilei). Até no sobrenome o ambientalista leva a insígnia da natureza: “Ruschi”, na verdade, é uma espécie de arbusto chamado Ruscus aculeatus, o azevinho do campo. Autoridade maior em Mata Atlântica, ele também foi pioneiro em denunciar a derrubada de árvores na Amazônia. Um de seus grandes feitos foi em 1951, durante a Conferência da Organização das Nações Unidas, onde propôs uma ideia ousada naqueles dias: a criação de reservas ecológicas – as quais, depois disso, difundiram-se mundo afora. E, no Brasil, resultou em áreas de preservação, como a Reserva de Santa Lúcia, em Santa Teresa (ES), sobre a qual há uma emblemática – para não dizer heroica história.
Em 1977, o governador capixaba Élcio Álvares decidiu implantar uma fábrica de palmitos no terreno da reserva, a qual Ruschi defendeu, literalmente, com “unhas, dentes e uma arma de fogo engatilhada”. No dia em que os fiscais do Estado apareceram para desapropriar a área, o ecologista, empunhando uma espingarda, os advertiu de que “ou o governador mudava de ideia ou iria pessoalmente ao palácio para matá-lo”. No fim, a reserva foi salva e, com ela, os beija-flores (dos quais ele fora grande autoridade mundial) que nela moravam. “A alegria do canto desses beija-flores ninguém vai silenciar enquanto eu existir”, bradou. Que neste momento de legitimação do Código Florestal, o espírito de Augusto Ruschi – e a proteção de Curupira e do Boitatá – estejam com o Brasil.