Há cinco décadas, antes de se tornar um titã do rock progressivo, o grupo dava vazão à mente visionária de Syd Barrett
Antes de se tornarem titãs do rock progressivo, os músicos que iriam formar o Pink Floyd começaram de forma convencional. O repertório era basicamente constituído de covers de artistas norte-americanos de R&B, algo bastante similar ao que Rolling Stones, Yardbirds e outras bandas britânicas faziam. Sob o comando inicial de Roger “Syd” Barrett, porém, o grupo iria muito além do blues. O destino de Barrett era borrar os limites entre som e imagem, transformando de maneira sinestésica o que passava em sua mente em um tipo de música nunca ouvido até então.
Logo no início, a formação se fixou em Barrett (guitarra), Roger Waters (baixo), Nick Mason (bateria) e Richard Wright (teclados). Barrett, que rebatizou a banda como Pink Floyd (The Abdabs e The Tea Set foram alguns dos primeiros nomes), era o líder e frontman. A imaginação do jovem se comparava ao entusiasmo que ele mantinha pela ingestão de substâncias alucinógenas.
As apresentações do nascente Pink Floyd em clubes underground de Londres não demoraram a ficar concorridas. A banda apimentava a performance com efeitos eletrônicos e muito feedback, antecipando o rock psicodélico que iria invadir a cena inglesa. Em umas dessas ocasiões, o quarteto foi visto por um professor chamado Peter Jenner, que acabou se tornando empresário dos músicos. Uma de suas primeiras providências foi incentivar Barrett a desenvolver suas próprias e estranhas canções.
Jenner conseguiu um contrato com a gravadora EMI Columbia, resultando nos singles “Arnold Layne” e “See Emily Play”, lançados no primeiro semestre de 1967. A primeira canção falava de um rapaz que roubava peças íntimas femininas de varais de roupa; a segunda era sobre uma garota que Barrett viu dormindo no mato. Não eram faixas convencionais, nem na estrutura nem nas letras. Mas as cativantes melodias de Barrett pegavam instantaneamente. Esses discos de 7 polegadas se tornaram sucesso nas paradas e transformaram o Pink Floyd na nova sensação do rock inglês. Barrett virou um astro, algo com que ele não lidava bem. Começou a exagerar na dose de LSD; seu comportamento foi se tornando cada vez mais errático.
Em maio de 1967, a banda se juntou ao produtor Norman Smith para gravar o primeiro álbum da carreira, no complexo de estúdios Abbey Road. Simultaneamente, em uma outra sala, os Beatles elaboravam Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Mas, apesar de compartilharem da psicodelia, o álbum do Pink Floyd, que iria se chamar The Piper at the Gates of Dawn (o título foi inspirado em um capítulo do livro O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame), não tinha muita coisa em comum com a influente obra dos Beatles. The Piper at the Gates of Dawn era uma lisérgica viagem espacial, filtrada através de uma visão que juntava curiosidade infantil e ironia adulta. Se o trabalho do Fab Four transpirava um espírito coletivo, o do Pink Floyd era uma criação quase que exclusiva da mente visionária de Syd Barrett. Como cantor e guitarrista, Barrett se mostrava imprevisível e inovador. As melodias fluíam, mas em um determinado instante, sem que ninguém esperasse, se partiam em dissonâncias e desaguavam em improvisos. Ele sempre fugia do lugar-comum ou do que se esperava dele.
“Astronomy Domine”, a faixa de abertura, mostra a peculiar visão de Barrett sobre o espaço sideral – ficava claro que era em Netuno, Júpiter ou Saturno, citados na letra, que a mente dele estava. “Interstellar Overdrive”, criação coletiva do quarteto, segue pela mesma linha do space rock – é uma longa digressão instrumental simulando gravidade zero e cujo riff principal foi inspirado em uma canção da banda californiana Love.
O gato de Barrett ganha uma homenagem no agitado rock de garagem “Lucifer Sam”. “Matilda Mother”, com jeito de conto de fadas medieval, é uma parceria de Barrett com Richard Wright, e nela o tecladista toma conta de parte dos vocais. Em “Flaming”, a visão surreal das letras de Bob Dylan se une a uma encantadora melodia de canção de ninar. “The Gnome” é uma composição ingênua, que reflete o interesse de Barrett pelo universo de fantasia criado pelo escritor J.R.R. Tolkien (O Senhor dos Anéis). A instrumental “Pow R. Toc H.” é outra criação coletiva. Cheia de ruídos, ela começa jazzística, regida pelo piano de Wright, e acaba como um pesadelo sonoro. Os sons da música hindu e uma letra inspirada no I Ching formam a estrutura de “Chapter 24”. Com uma levada de R&B, “Take Up Thy Stethoscope and Walk” é a única composição de Roger Waters. O folk se une à psicodelia na barroca “Scarecrow”, que já prenunciava o colapso mental que Barrett iria sofrer mais tarde. O disco fecha de forma lúdica e barulhenta com “Bike”, um passeio de bicicleta cujo percurso é dominado por criaturas bizarras.
O LP chegou às lojas no dia 5 de agosto de 1967 e alcançou o sexto lugar da parada inglesa. Anos depois, Roger Waters recordou esses primórdios: “Nós achávamos que havia mais dentro do rock do que simplesmente tocar ‘Johnny B. Goode’ ou então reciclar os riffs de ‘Louie Louie’”. The Piper at the Gates of Dawn, o fugidio momento de Syd Barrett ao sol, é um dos ápices da experiência lisérgica na música; como poucas obras dentro do rock and roll, o disco emula o efeito da expansão da mente, mas também reflete o caos e a confusão que as drogas alucinógenas podem
causar.